quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

CARTA DO ANO QUE NÃO TERMINOU

Belém, Pará, 24 de dezembro de 2010

Queridos e Queridas,

É bastante sincero para mim dizer, e não digo em primeira pessoa porque quero que vocês se reconheçam quando digo, estamos a fechar um ciclo. Há, portanto, uma pitada de coletividade e outra de subjetividade no que estou a dizer. O dado comum é que estamos ao final de nosso calendário cristão. O dado pessoal é que me encontro a poucos meses de terminar minha carreira de estudante de graduação da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Pará, o que é dizer que, para mim, a passagem do ano de 2010 não simboliza o término de um ciclo de 12 meses, mas sim de 60 meses.

Dediquei boa parte desses 60 meses, isto é, exatamente 48 meses ao trabalho com a Assessoria Jurídica Popular através do Núcleo de Assessoria Jurídica Universitária Popular Aldeia Kayapó. Nesse sentido, gostaria de fazer um relato sobre a contribuição da AJP para minha formação pessoal o que também pode ser entendido como a contribuição da AJP para o curso de graduação em Direito em uma Universidade Pública no norte do Brasil.


(1) FUNÇÃO SOCIAL DO CONHECIMENTO. A primeira contribuição da AJP é uma nova forma de entender o Conhecimento Científico e de produzi-lo. Assim, os aprendizados com a teoria do conhecimento de Paulo Freire, autor elementar do arcabouço da AJP, tornam visíveis a necessidade axiomática da função social do conhecimento. Não basta haver uma função social da propriedade, faz-se necessário haver um constructo que sustente tal idéia. Afinal, não existe realidade sem uma boa dose de imaginação, quer dizer, de elaboração mental para aquilo que pode vir a ser. Relacionando tal teoria com o pensamento pós-colonial de Enrique Dussel, busca-se agigantar a função social do conhecimento para a dimensão da América Latina.

Há, então, a evidente e crescente necessidade de se pensar o Direito a partir dos valores locais, de repensar a "reserva do possível" e a soberania popular. Com efeito, o papel do assessor jurídico popular é o de problematizar os manuais de direito, as regras do código civil com base nas vivências cotidianas ("A cabeça pensa onde os pés pisam" já diria Nildon do NAJUP Isa Cunha, citando Leonardo Boff); e ser o elo entre o programa normativo pátrio, não só aquele que existe, mas aquele que pode existir, e a sociedade. É neste processo dinâmico que reside o caráter da função social do conhecimento assentada como pilar da AJP a qual antevejo, outramente (para dialogar com Guimarães Rosa), como enraizada em minha formação jurídica.

(2) A DIMENSÃO HUMANA SUBJETIVA E PROFISSIONAL. A segunda contribuição pode ser entendida como parte da anterior, mas me parece algo radicalmente diferente, razão pela qual a sublinho. A AJP baseada que está na função social do conhecimento, traça um continuum entre Ciência e Pessoa Humana o que faz (re)descobrir a alteridade. Conhecer, como diria Paulo Freire, é um ato de amor e envolve pessoas, algo que me parece tão caro ao Direito e seus discípulos, compreender que se está a lidar com o ser humano em todas as suas singularidades. Assim, parece óbvio que as várias horas diárias em uma cadeira de Faculdade, por mais renomada que seja, não chegam ao menos perto da dimensão real do que é o fenômeno jurídico e que há um déficit na Educação Jurídica que não prepara seus e suas estudantes para lidar com pessoas.

A prática da AJP que é onde reside sua essência, daí que não haja "projeto de AJP" em um sentido que posso denominar de RENAJUano, sem prática; mostra com vigor a dificuldade do trabalho com pessoas e, especialmente, com coletividades em busca do exercício de suas dimensões de liberdade como é o Direito. Trabalhar com gentes ensina a ter paciência, ouvidos e sorrisos, significando não só um crescimento pessoal, mas profissional uma vez que durante a prática causídica, por exemplo, é necessário utilizar estes instrumentos os quais parecem rudemente desenvolvidos na maioria dos estudantes de Direito em decorrência, de uma certa maneira, do currículo das Faculdades de Direito focados que estão em conteúdo (e não em habilidades).

(3) UMA NOVA UNIVERSIDADE. Dito que está que a AJP critica e é de per si uma oposição não só a Ciência, mas também a Educação (especialmente a de cunho Jurídico), é fatal concluir que neste interim encontra-se a Universidade. Neste ponto, saliento que se trata menos de uma contribuição a minha formação pessoal e mais de uma para o segundo aspecto o qual tencionei acima. O modo de estruturação da AJP parece-me que aponta para uma reorientação das metas e organização da Universidade em que a extensão seja pauta principal. No entanto, não se trata da extensão vista como realização de seminários e assistência jurídica, mas um tipo centrado em dois aspectos: a) o popular e b) o estudantil.

O tipo de extensão proposto a partir da AJP é popular, pois visa ir até a comunidade e trazê-la através de diálogos participativos para a Universidade. Daí o tradicional modo de realizar oficinas em que não há mediadores, representantes da opinião de alguém, mas sim atores e atrizes ativos no palco social. Isto é fundamental para que se diga que há AJP e há extensão popular.

Por outro lado, para o desenvolver deste projeto (sequência de etapas) faz-se vital a forte presença dos estudantes, que devem conduzir o processo e tomar a frente da organização junto a Universidade o que denota que a prática de AJP traz um modelo de extensão diferente do tradicional em que os projetos atendem a fins denominados por figuras institucionais a exemplo dos professores. Há um protagonismo estudantil que implica na renovação das estruturas das diretorias de extensão para o atendimento desta demanda, ou seja, para a proposição de projetos de extensão a serem gerenciados por estudantes. A necessidade própria da AJP relacionada com a atuação em redes de direitos humanos não pode ser esquecida e colocada em segundo plano por conta das diretrizes universitárias. Não se trata somente de pesquisa e intervenções pontuais, mas de um projeto contínuo de formação de uma cultura de direitos humanos em que as coletividades figuram como peças chave. (Aí, pode-se vislumbrar o tênue equilíbrio que é criado para o relacionamento entre Universidade e Sociedade).


Ao cabo, digo que salientei alguns dos aspectos principais de contribuição da AJP para minha formação pessoal e que acabam por criticar estruturas sociais e cognicitivas. Acho que nem todos os pontos mencionados são fortes pedras de apoio para os(as) assessores populares, mas acredito que muitos e muitas, dos e das, meus e minhas, amigos e amigas, puderam se identificar com o que eu me identifico. Eu também aprendi nesse tempo de militância que a AJP é uma esquizofrenia coletiva (para relembrar Lucas do CORAJE) e que, acima de tudo, o mais importante desse percusso são as dúvidas e não as respostas, é estar junto e acreditar porque, conforme diriam os queridos e queridas do NAJUP PUC-RS, citando Galeano, o mundo de que necessitamos não é menos real que aquele que conhecemos e padecemos.


com amor,
mariana



Foto: Kessia Moraes

2 comentários:

  1. Olá,Mariana!

    Obrigada por compartilhar este momento conosco...
    O que você sublinha na sua carta a respeito da extensão é algo que também vejo quanto a AJP- e acho que não só eu. Ela transcende o óbvio do que se tem por extensão em um ensino tradicional.Ela inclusive busca superar o ensino e atingir a educação, incluindo o elemento popular entre os fios que tecem seu propósito de existência- seu ponto de partida, seu caminho e seus objetivos. A educação toma a perspectiva que vai além do institucional.

    Devem ter sido experiências valiosas essas que você teve na AJP. Você poderia aproveitar e também compartilhá-las por aqui. O que acha?

    Grande abraço e tudo de bom na nova fase!

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  2. Mari-Mari, a mais waratiana das ajupanas desta região mais ao Norte do país. Eis a síntese da corporificação do pensamento-sentimento de vários anos de atuação ativa a frente do NAJUPAK.
    A você, assim como ao Saulo, seu irmão e também compa de AJUP, desejo o melhor da formação transcultural nas terras frias e humanamente quente da Alemanha, mas desejo (e espero), sobretudo, o retorno, ou seja, aquilo que tenho aprendido com os indígenas como o pensar coletivo a partir de seu povo, que os novos ares tragam todo o fresco e a vivacidade dos conhecimentos e do amadurecimento enquanto humano, mas que também traga a certeza de que da volta as terras tupiniquim, e mais especificamente as terras amazônidas, como condição ética de continuidade das lutas pelos direitos humanos em prol dos oprimidos, na universidade ou fora dela.
    Abraços, muitos invernos de reflexão e verões de viagens na Europa e até breve!
    Assis

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