sábado, 24 de março de 2012

O circo e a cerca: a Lei Geral da Copa e suas garantias reveladas

Por Thiago Hoshino, desde Curitiba, PR

Car@s companheir@s,

Como advogados(as) e assessores(as) jurídicos(as) populares, precisamos cotidianamente treinar nossa capacidade de ainda nos espantarmos frente à quantidade de desmandos, violências e arbitrariedades perpetrados no bojo do horizonte político-jurídico no qual nos situamos. Contudo, por vezes, o absurdo é tão evidente e cínico, e a indignação tão imediata, que nossa primeira reação é a de compartilhá-lo! Assim, para quem ainda não os viu, seguem os documentos recém disponibilizados pela mídia (extra-oficialmente), sobre as garantias oferecidas pelo Brasil à FIFA, em 2007, para candidatura à Copa do Mundo de 2014.

O grau de submissão política e teratologia jurídica é kafkiano: o governo se comprometeu, entre outras coisas a, independentemente das mudanças políticas que ocorreram no país, alterar (ou fazer tudo a seu alcance para nesse sentido) quaisquer leis, decretos e regulamentos em nível federal, estadual ou municipal para atender às exigências da FIFA. Tais contratos de estabilização legal, sabemos, são assinados muitas vezes com empresas transnacionais que pretendem investir temporariamente no país, como garantia de retorno pela redução de "riscos". Significam, na prática, a demolição de uma série de direitos e garantias arduamente conquistados pelo povo. Uma perversa noção de "segurança jurídica", calcada sobretudo na calculabilidade e previsibilidade demandadas pelo mercado guia esse processo. Mesmo elementos do mais republicano bom senso, como as noções de "pacto federativo" e "separação de poderes", nesse paradigma de vassalagem, tornaram-se termos "ultrapassados" no dicionário neoliberal: enfim, é a cidade e o Estado de exceção em funcionamento.

Os movimentos sociais, comunidades atingidas e demais grupos e entidades que integram os Comitês Populares da Copa e Olimpíadas há meses vêm questionando o governo federal para exibição desses documentos. Igualmente, membros do Ministério Público e parlamentares reiteraram os pedidos, sem resultado. É urgente nos posicionarmos criticamente em relação a esses compromissos, nos quais tomou parte uma parcela significativa dos chefes da burocracia estatal, pois eles estão sendo repetidamente utilizados como argumento para legitimar o pacote de mudanças legislativas previstas na Lei Geral da Copa e demais PLs relacionados. É também nossa tarefa denunciar enfaticamente todas as violações de direitos em curso (disponíveis em Dossiê Nacional), para a recepção dos megaeventos esportivos, alavancadas num modelo de desenvolvimento predatória, que acirra a segregação sócio-espacial, a militarização e a mercantilização das cidades.

Nesse sentido, segue o apelo e a Carta elaborada sobre a questão, encaminhada e publicada em 20 de março de 2012.

Sigamos na luta!
Thiago A. P. Hoshino




CARTA ABERTA DO POVO BRASILEIRO CONTRA A LEI GERAL DA COPA


Prezados(as) senhores(as) Deputados(as) Federais,


É com profundo sentimento de indignação que a sociedade brasileira, por meio dos Comitês Populares da Copa do Mundo e Olimpíadas, organizados nas 12 cidades-sede dos jogos, vem novamente manifestar-se contrária às atuais propostas de mudança de nossa legislação contidas no Projeto de Lei (PL) 2330/2011, a chamada Lei Geral da Copa, a qual encontra-se na iminência de ser votada no plenário desta Casa.

Sinteticamente, tal iniciativa é o carro-chefe de uma plataforma de ameaças a direitos e garantias arduamente conquistados pelo povo brasileiro, tais como os direitos do consumidor, o direito ao trabalho e o direito de ir e vir. O PL 2330 ofende também o devido processo legal e fere o patrimônio público e cultural do país. Como amplamente denunciado, o projeto chega a prever a criação de novos crimes, apenas para garantir monopólio de mercado à FIFA.

A nosso ver, toda a concepção da Lei Geral é em si mesma um grande equívoco, tanto do ponto de vista político como jurídico. Em primeiro lugar, ela é ilegítima, porque, baseada meramente em contratos estabelecidos entre o Brasil e uma entidade privada, tem pouco ou nada a ver com o atendimento do interesse público. O Caderno de Garantias e Responsabilidades, que tem servido como sua principal justificativa, foi entregue em 2007 à FIFA , sem qualquer respaldo, discussão ou conhecimento da população. Até hoje esses documentos de compromisso não encontram-se publicizados, não se tem  acesso a seu conteúdo integral e não se sabe afinal o que eles nos obrigam e nem a quem estamos "vinculados" por meio deles.

Além disso, esses compromissos são inválidos, uma vez que nem mesmo os membros do Poder Legislativo foram ouvidos, servindo agora de meros avalistas para um cheque-em-branco assinado há anos pelo governo, sem considerar suas conseqüências. Nossa Constituição Federal estabelece claramente, em seu art. 49, I, a competência exclusiva do Congresso Nacional para "resolver definitivamente sobre tratados, acordos ou atos internacionais que acarretem encargos ou compromissos gravosos ao patrimônio nacional". Não é outro o caso dos acordos entre Brasil e FIFA, especialmente diante de exigências como a responsabilidade objetiva da União Federal por "danos e prejuízos" causados durante os jogos prevista nos arts. 22 a 24 do PL 2330/2011. O Congresso Nacional, contudo, não foi convocado nem antes, nem após a assinatura desses contratos para apreciar seu conteúdo.

Como se não bastasse, a Lei Geral da Copa, bem como demais projetos (PLs n. 394/2009 e n. 728/2011), são também inconstitucionais, na medida em que pretendem restringir, extinguir ou flexibilizar direitos já regulamentados infra-constitucionalmente. Essa tentativa afronta não apenas a soberania nacional e popular, mas também viola a vedação de retrocesso social, que impede a descaracterização dos avanços históricos em matéria de direitos fundamentais, outra das nefastas conseqüências do PL 2330/2011, caso seja aprovado.

Nesse sentido, encaminhamos em anexo aos(às) senhores(as) nossa compreensão formulada em Nota Púbica (LEIA AQUI) sobre a gravidade da matéria disciplinada pelo projeto de Lei Geral da Copa, conclamando a todos(as) para sua responsabilidade diante do povo brasileiro e exigindo que o mesmo seja enfaticamente rejeitado por esta Casa, a qual, inclusive, foi recentemente objeto de desrespeitosas manifestações de agentes da FIFA. A sociedade brasileira, atenta e mobilizada, certamente saberá cobrar a seus representantes pela omissão e compactuação com interesses escusos e francamente anti-democráticos como esses.


Belo Horizonte, Brasília, Cuiabá, Curitiba, Fortaleza, Manaus, Natal, Porto Alegre, Recife, Rio de Janeiro, Salvador e São Paulo, 20 de março de 2012.


Articulação Nacional dos Comitês Populares da Copa do Mundo e Olimpíadas

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