domingo, 12 de dezembro de 2010

Ludovico Silva e a crítica à naturalização metódica

Se vivo estivesse, Ludovico Silva estaria completando seus 73 anos de vida no dia 16 próximo conforme o calendário ocidental eclesiástico. Certamente, há cerca de 20 anos - em 1988 - prematuramente o continente perdia um de seus grandes intelectuais. Como marxista venezuelano, Ludovico pode hoje muito nos falar a respeito de nosso tempoo, em especial a partir do resgate crítico da obra de Marx.

Acérrimo crítico de toda e qualquer naturalização promovida por forças humanas, Ludovico Silva se colocou sempre alerta para denunciar a ideologia vigente, que empenha os homens em um um consumo desatado, assim como para vociferar contra os dogmatismos de toda ordem. Dos mais significativos marxistas durante as décadas de 1970 e 1980, promoveu uma obra crítica das correntes manualistas e estruturalismos. Eram os caminhos que tomavam os marxistas soviéticos e franceses, à época. Aí já se denota uma verve em Ludovico de superar uma visão mecanicista e até mesmo eurocêntrica do marxismo (na melhor linha, ainda que seja preciso cuidado para afirmá-lo, de José Aricó). Constatou, portanto, que era possível fazer uma crítica dentro dos marcos marxistas desde a Nossa América.



Uma de suas grandes contribuições, e a qual creio deve ser levada muito a sério no âmbito da discussão entre direito e marxismo, é o problema do método. Ludovico Silva, em seu clássico "Anti-manual para uso de marxistas, marxólogos e marxianos", apresenta sua posição de forma incisiva: fazer parte do movimento de práxis proposto por Marx não é rezar sermão e recitar ladainhas. Ainda que possamos discutir sobre os ritos metafísicos nos trópicos e subtrópicos de Ábia-Iala (mesmo que sem a ajuda de Ludovico Silva), um pensamento crítico marxista não resiste a este dogmatismo, apesar de seu apelo inextricável com relação ao rigor teórico e à coerência prática.

Assim sendo, não se pode reduzir a potencialidade do marxismo, inclusive e até em especial na periferia do capitalismo, a um sistema lógico. A lógica dialética - ainda que diferente da lógica formal - não deixa de ser lógica e por isso mesmo não é capaz de apreender a realidade em todas as suas especificidades. Daí que a aposta em uma fórmula dialética pode fazer recair em determinismos e, o pior, em naturalizações. "Tudo é dialética", diria o jargão das esquerdas. No entanto, tornar natural esta construção humana significa querer fazer da história uma válvula compressora, que esmaga e sublima o não-identificável, em prol daquilo que já se pode fazer e conceituar. Enfatizar uma suposta dialética da natureza é dar um atestado de óbito ao não-lugar-ainda das utopias latino-americanas (mas não só). Dessa maneira, a lógica dialética não deixa de ser forma cuja utilização fica adstrita a uma forma de exposição metódica do que a crítica histórica oferece realizar. O sistema filosófico de Marx é maior que seu método, caso contrário reduziríamos as cidades a suas vias de acesso ou os homens a seus telefones.

Nem por isso, todavia, o problema do método deve ser afastado. Tema sempre em voga, em especial com o ascenso crítico do pensamento marxista latino-americano, o método se expressa na tensão entre o captar a totalidade e o partir da exterioridade ético-crítica dos que sofrem com o modo de produzir a vida atual. E é só esta expressão que justifica os lances da escada metódica proposta por Marx, ao dirigir-se da mercadoria ao capital, em sua obra máxima. Mas o ponto de partida da exposição dialética não tem de ser o mesmo ponto de partida do método (totalidade-exterioridade). Daí que faz muito mais sentido se falar em materialismo histórico que em materialismo dialético, mesmo porque este último nunca existiu na produção intelectual de Marx (e é Ludovico quem nos avisa!).

Em termos de discussão sobre o campo do direito, este alerta é deveras importante. A imponência do método nunca poderá sujigar o ímpeto crítico e a perspectiva do todo. Desse jeito, o direito não nasce pura e simplesmente da mercadoria, já que a centralidade do modo de produção capitalista está nas relações sociais que o capital forja. O direito é uma destas relações, e os teóricos soviéticos apreciaram-no muito bem. Entre os críticos contemporânos, esta percepção se desfez em boa medida. Ainda assim, mesmo estes têm o que nos oferecer, em virtude da própria crítica ínsita e cultivada pela figura de Marx.

Se pudésses fazer um paralelo metódico entre a economia política e o direito, poderíamos esboçar uma crítica que vai da norma à relação jurídica imposta pelo capital assim como se caminha da mercadoria ao capital em sua abstração maior. No meio do caminho encontraríamos, porém e por exemplo, o intercâmbio e a forma dinheiro, para a economia política burguesa, da mesma forma que a decisão e o poder estatal, para o direito. O segredo - se é que se trata de segredo mesmo, já que aparenta se tratar muito mais de práxis crítica - está em encontrar as franjas da economia para achar o trabalho vivo (não alienado, portanto), assim como procurar pelo poder dual que a transição socialista permitirá à reflexão jurídica. Esta dualidade está latente, hoje. É preciso impulsionar a organização política popular que ultrapasse a forma jurídica das relações sociais capitalistas, criando um outro valor político-jurídico, à reboque da superação do valor das relações sociais hegemônicas.

Crítica às naturalizações, historicidade material do método - esta é sensivelmente a postura que Ludovico Silva nos oferece, em sua intervenção histórica entre a filosofia e a literatura, a partir do marxismo: uma nova crítica jurídica passa pelo reconhecimento do papel do método e sua submissão à realidade cultural.

Conferir também:

- "Anti-manual para uso de marxistas, marxólogos e marxianos. Ludovico Silva", na página de Hugo Chávez;
- "Ludovico Silva: o problema da alienação", também na página de Chávez;
- o texto escaneado "Marx, Engels e a idelolgia", de Ludovico Silva;
- trecho de documentário da TVenezuela sobre Ludovico Silva.

2 comentários:

  1. Olá Ricardo

    O debate do método nos é muito caro e muito difícil, não é mesmo?

    Assim, gostaria de começar te perguntando: o que tu quis dizer com a metáfora dos telefones? Não entendi.

    O poder estatal e a decisão expressam o direito em nossa sociedade?

    Acredito que precisamos aprofundar esta discussão no sentido do conceito de direito.

    Há espaço para o direito na cultura popular?

    Justiça social é o mesmo que direito?

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  2. Camarada Luiz,

    Sem dúvida, debate caro e difícil. Demanda muita reflexão e contínuo aprofundamento, inclusive no sentido de sempre estarmos aperfeiçoando nossa compreensão.

    Quanto à suposta "metáfora dos telefones", não se tratou bem de uma metáfora, mas mais de uma ironia. Quis dizer que não podemos reduzir as coisas ao meio de acesso a elas. Hoje, num tempo em que só nos comunicamos telematicamente, é capaz de acharmos que o outro é o próprio meio de comunicação, se naturalizarmos o método de acesso à realidade.

    Já quanto ao problema do direito, fiz uma aproximação à economia política, como no debate de Marx. Marx não propõe uma economia política alternativa, mas sim uma crítica à economia política. Da mesma forma e analogamente, poderíamos pensar na questão jurídico-política. Por isso, o que eu quis dizer é que, mesmo se considerarmos a possibilidade de alternativas jurídicas ao direito, o direito oficial, hegemônico, estatal e monista tem como expressões o poder estatal e a decisão, assim como a norma e as relações jurídicas.

    Também acredito no aprofundamento desse debate no sentido de percorrermos um conceito complexo de direito. E, nessa toada, perquirir sobre a existência de um direito ou de um não-direito no âmbito do que você chamou de "cultura popular". Só assim é possível resolver a questão da justiça (que todos sabem que não é direito positivo) social.

    Um abraço e agradecido pela oportunidade de esclarecer vários dos meus argumentos

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