terça-feira, 28 de dezembro de 2010

Oração ignominiosa de uma habitante da escuridão






No início deste ano, um desafio foi proposto por uma professora aos alunos de uma especialização em direito público: escrever um artigo em primeira pessoa do singular. A proposta foi ostensivamente rejeitada, pelo menos de início, por um número considerável deles e delas. A professora insistiu um pouco mais e ao fim de alguns minutos de discussão sobre ABNT e regras da academia, a proposta terminou tendo alguma aceitação de parte da turma.

Durante a escolha do tema do artigo, muitos decidiram por abordar o ensino jurídico, aproveitando alguns questionamentos levantados no decorrer da disciplina. Na realização da pesquisa necessária, lendo as páginas virtuais de uma dissertação de mestrado sobre esta temática, um trecho de um parágrafo chamou a atenção de uma das alunas:

“aluno ( entendido como um ser desprovido de luz, de acordo com a origem etimológica da palavra.)”

Ficou com aquilo na cabeça. Apesar de, tempos atrás, já ter atentado para o sentido etimológico do termo, o contexto pós-curso de direito provocou uma sensação com uma intensidade diferente... Intensamente ruim.

Tentando expelir aquilo de si de alguma forma, pegou um papel e foi rabiscando umas palavras soltas:

“Aluno /Desprovido de luz/Na ânsia do saber/escuridão/as amarras/o vazio/ o não-olhar/brinquedo de auto-afirmação/papel que se esforça em cumprir/negação de seu próprio ser/o julgamento: o júbilo do sim e o abismo do não/o caminho a seguir/ a vida a seguir/ o caminho a desistir/a vida a desistir/A luz que cega/A luz que é escuridão.”

“Aluno/palavra que fere/palavra do não ser/ Palavra possuída/Palavra aliciada/Substantivo inquestionável/Substantivo sem substância/O oco a ser eternamente preenchido/o oco estéril de ecos./ O oco sinônimo de nada.”

Vendo que a inspiração não tomava forma, que a poesia que pretendia não nascia, decidiu, então, apelar para a divindade mais próxima:



Oração ignominiosa de uma habitante da escuridão


Absolva-me, ó Ser Provido de Luz, da culpa que pende sobre mim! Culpa de não saber. Culpa de não ser. Dá-me um pouco da dádiva que a ti foi concedida com a mesma intensidade que ma foi negada!

Aceita como oferenda minha mente que jaz vazia. Se não for possível, se a culpa for maior que a expiação, em sacrifício me ofereço, eu que sou nada.

Que o sangue escorra da pedra, ou da tua mesa de trabalho. Que macule os papéis em que está escrita a Verdade. Entre eles estará, talvez, o papel que não consegui desempenhar.

Um dia, quem sabe, eu renascerei. Se este dia acontecer, permita-me um dia apenas ser. Um dia ser. Ou um dia também ser sobre o não-ser, para que então eu possa sentir-me divina como tu és. Ó, Ser Provido de Luz!

Amém.




Dissertação de onde foi colhida a citação:

http://bdtd.bce.unb.br/tedesimplificado/tde_busca/arquivo.php?codArquivo=2637

7 comentários:

  1. Nayara,
    Que incrível e sombria narrativa e oração. Sem dúvida, o melhor da poética no pior da ideologia da "tabula rasa" da relação educador e educando.
    Aliás, alguém me disse, certa vez, que professor vem de professar, verbo que significa "dizer a verdade".
    Diante deste insólito momento crítico negativo da crítica à educação, só nos resta atuar em prol de que esta poesia-oração seja repassada e recitada antes de uma bela exibição e discussão) de "Another brink in the wall" do Pink Floyd, o que acha?
    Abraços e belíssimo post!

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  2. Oi, Assis!

    Hum... Obrigada pelas palavras!Sempre que vou postar alguma coisa aqui fico com um receio tremendo,por conta da forma como escrevo. Enfim...

    E sua sugestão é muito interessante. E assustadora, quando olho para o conteúdo do que escrevi. Acho que um momento como esse deve ser conduzido por alguém com sensibilidade suficiente para não permitir que a negatividade prevaleça. Um educador.

    A imagem do filme do Pink Floyd era uma das coisas que estava na minha mente quando postava essa "oração"...

    Acho que vou fazer uma pequena alteração na postagem. Resgatar uma imagem de uma anterior. Veja se fica melhor.

    =)

    Abração!

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  3. Olá Nayara
    Não engane-se ao pensar que a posição do professor é mais confortável que a do aluno. Imagino que o Assis concorde comigo, pelo que escreveu.
    Precisamos significar esta relação aluno-professor. O diálogo comunicativo proposto por Paulo Freire me parece interessante, neste sentido.
    O reconhecimento da própria ignorância e do próprio conhecimento, possível no diálogo.
    A contestação das instituições também é relevante. A escola, a universidade etc. Estas funcionam, hoje, como máquinas, muito eficientes, de formação de reprodutores da relação de encobrimento da cultura popular, e manutenção de um conhecimento "erudito", elitista, para poucos.
    Alimentemos nossa imaginação, seja pela poesia, "oração", ou que mais lúdico possamos brincar.

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  4. Ô, Ribas querido!

    Que malcriada que sou... Convivo há 25 anos com uma professora absolutamente dedicada e escrevo uma coisa dessas...

    Mas confio que minha mãe, assim como você e todos os professores e professoras que frequentam este blogue ( e meus amigos e amigas professoras daqui de pertim) hão de perdoar esta minha invenção. A intenção era "caçar-conversa", mesmo... hehehe!

    O educando precisava ter voz, oras! Cabe aos meus queridos e queridas professoras desconstruirem esta imagem horripilante que expus aqui- a partir da violência que a palavra "aluno" é.

    Bom trabalho para nós!

    Beijão!

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  5. Verdade... luz... saber...interessante o poder das metáforas qiue nos cercam, especialmente no labor docente.

    Excelente provocação, Nayara!

    Abç

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  6. Muito interessante a história da "aluna" - e, claro, na tradicional terceira pessoa...

    Só devo fazer um comentário de alerta: a palavra "aluno" vem do latim mas não é aceita pelos etimólogos, em geral, como junção de a (-sem) + luminis (-luz). Na verdade, a explicação mais aceita para esta etimologia é de que "aluno" vem do verbo "alére", que significa, segundo o Houais, "fazer aumentar, crescer, desenvolver, nutrir, alimentar, criar, sustentar, produzir, fortalecer etc." Ou seja, quer dizer "dar de mamar".

    Ainda assim, acredito que a reflexão não perde efeito.

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  7. Ah, Vladimir...Brigada!Gosto de metáforas!

    =)


    Oxe,Pazello, e por que eu escreveria em primeira pessoa? Sou eu por acaso a moça da narrativa?

    hehehe!Brincadeira.Foi uma..."opção literária", meu etimolólogo de plantão!

    Abraço galera!

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