quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

A tradução na assessoria jurídica popular

Por Luiz Otávio Ribas

Após apresentar uma pequena tese sobre a conscientização de direitos, e em outro momento ter abordado a proposta de Paulo Freire, passo a comentar o que entendo pelo conceito de tradução.

Parto da mesma idéia pensada por Jacques Alfonsin, de que a tradução envolve o esforço para explicar o processo ao cliente, assim como outras práticas educativas, que envolvem cartilhas, trabalho com assessores estudantis e oficinas de educação política.

Ainda conforme Alfonsin, é preciso atuar em três frentes: tradução, assistência e formação. A assistência consiste no acompanhamento processual de grupos e movimentos sociais, e a formação significa a atualização em matéria processual e pesquisa acadêmica. Alfonsin relata que essa divisão foi inspirada na proposta da Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares (RENAP), fundada em 1986, em São Paulo, que une o esforço de elaboração teórica (com publicações) e advocacia preventiva (tradução da teoria e organização popular).

É possível observar nos textos de Alfonsin que sua escrita está implicada com a tradução, isto é, com uma grande preocupação com a linguagem e com a compreensão pelo leitor, inclusive usando metáforas que o aproximam da linguagem falada.

Acredito que a linguagem dogmática do direito oferece dificuldades para o diálogo que não está presente na linguagem artística, por exemplo.

Stédile, Saramago, Sebastião Salgado e Chico Buarque: precisam de tradução?

Também na página do Centro de Assessoria Jurídica Popular Mariana Crioula, do Rio de Janeiro, consta que "a tradução da lei e das ações judiciais para uma linguagem acessível às populações desprovidas de direitos é uma das mais importantes contribuições daqueles que tem o domínio (ou a possibilidade de dominar) o instrumental processual-jurídico. É a atuação destes agentes que contribuiu para a apropriação do direito não somente como reprodutor das desigualdade sociais, mas também como um instrumento de emancipação".

Desta forma, acredito que a assessoria jurídica popular, como metodologia do trabalho popular, pode facilitar diálogos entre conhecimentos. O apoio a movimentos sociais por estudantes, advogadas e advogados, militantes, entre outros, configura a assessoria jurídica popular. Agora, esta também pode ser levada adiante por "não iniciados" na ciência do direito, por membros de uma comunidade participantes das atividades, como constatado na experiência de alguns movimentos. Assim, a tradução é necessária, mas não imprescindível - conforme a radicalidade do envolvimento do assessor com o movimento esta preocupação diminui. No entanto, a tradução ainda constitui um conceito que precisa de delimitação e muita discussão pelos grupos brasileiros.

Então deixo uma questão para o debate: "a tradução cumpre qual papel no diálogo entre conhecimentos presente na prática dos assessores jurídicos populares?"

Leia também:
Coluna de Jacques Alfonsin no blogue RS Urgente "O Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social: ao que vem, ao que deve e ao que pode".

2 comentários:

  1. Olá Ribas!
    Hum, esse idéia de tradução é interessante. Tava aqui pensando como é a questão da tradução inversa: A tradução do conhecimento e da linguagem popular para os processos, para judiciário?
    Parece uma coisa simples, mas não é.
    Embora, em boa medida, as noções de Justo, de certo e errado das classes populares não distoa das do meio Jurídico: a sacralidade da propriedade privada, individualismo, confiança na punição como princípio ordenador, há também um núcleos rebeldes que se colocam aquém da ética burguesa.
    Por exemplo: "A propriedade deve ser dividida", ou "quando preciso, pode-se apropriar da propriedade de outrem ,sem o consentimento do dono, para morar ou trabalhar", "o estado não tem direito de me tirar da terra de meus ancestrais".
    Embora possam até ter certos correspondentes jurídicos, essas noções populares não se confundem com estes, não podendo serem simplificadas ao ponto de de matar-lhe o seu significado.
    Não sei se o caso é mesmo de traduzir, mas, creio que, por enquanto, existe a necessidade de uma tradução, pelos dois caminhos, como forma de, por um lado, fortalecer os movimentos populares, com o conhecimento dos instrumentos postos, por outro, arar esse chão de pedra judicial, pra ver se dele nasce alguma planta para quem sabe, futuramente, colhermos seus frutos.

    Abraços!
    Ciro Monteiro

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  2. Olá Ciro
    Também me sinto desconfortável com o termo "tradução", justamente porque, num primeiro momento, não deixa clara esta dialogicidade reivindicada em teu comentário.
    Temos que nos perguntar se é possível incluir esta definição neste conceito, ou então se precisamos de outro.
    Para pensar sobre isto, basta lembrar que quem utiliza este termo são advogados populares que com certeza preocupam-se com a voz e vez dos populares no processo judicial, assim como a "tradução" de suas histórias, suas narrativas fragmentadas, em argumentos compreensíveis para o juiz (com raríssimas exceções, ignorantes em relação a linguagem do povo).
    Lembremos também, que conforme o conceito das advogadas do Mariana Crioula, não é preciso ser advogada para ser assessora popular. Na Bahia, a AATR sempre preocupou-se em formar a militância dos movimentos para argumentar em juízo, inclusive peticionar. Desta forma, existe sim, uma demanda muito grande por estas traduções.
    Vamos pensar juntos: da linguagem popular para o jurisdiquês, do jurisdiquês para a linguagem popular.
    Sobre a propriedade, quero provocar os juízes leitores deste blogue, no sentido de que dificilmente os juízes conservadores estão dispostos a discutir a propriedade em algum processo. Basta juntar o registro do cartório e a discussão está encerrada. Exemplifiquemos com a sentença vanguardista do juiz crítico gaúcho-argentino Christiano Aires, que exigiu a comprovação do cumprimento da função social de um proprietário, e logo depois teve sua sentença reformada pelo argumento simples, formalista e repugnante da desnecessidade desta comprovação.

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