domingo, 20 de março de 2011

A divisão social do trabalho intelectual: perplexidades antropológicas

Em um velho texto, Marx e Êngels apreciavam o eixo central de sua análise da realidade:

assim se desenvolve a divisão do trabalho, que na origem nada mais era do que a divisão do trabalho no ato sexual, para depois virar uma divisão do trabalho espontânea ou introduzida de um modo "natural", contemplando os dotes físicos (por exemplo a força corporal), as necessidades, as coincidências fortuitas etc. etc. A divisão do trabalho só se converte em verdadeira divisão a partir do momento em que se separam os trabalhos material e espiritual. A partir desse momento, a consciência já pode imaginar realmente que é algo mais e distinto da práxis vigente, pode realmente representar alguma coisa sem representar algo real – a partir desse momento, a consciência se acha em condições de se emancipar do mundo e de se entregar à criação da teoria “pura”, da teologia “pura”, da filosofia “pura”, da moral “pura” etc. (“A ideologia alemã”).

A divisão do trabalho social seria tema de todas as nascentes ciências humanas do século XIX, mas meta-analiticamente pode ser reconhecida como fruto de uma divisão anterior, indicada por Marx: a divisão entre os trabalhos material e espiritual.
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A crescente especialização das ideologias, cada vez mais autonomizadas, faz surgir pensadores sociais distantes de seus grandes objetos de estudo. A universidade, que na Europa já surgira com tais traços mas que mantinha seu elo com a realidade transmetafísica (para fazer uma brincadeira vernacular), abandona os rituais religiosos e, posteriormente, os conhecimentos físico-químicos, para se tornar o celeiro da ciência moderna, a qual passa a emprestar sua metodologia, indiscriminadamente, tanto aos estudos naturais quanto aos sociais.
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Dessa forma, várias cisões acompanham a construção oficial do conhecimento moderno: manualidade-intelectualidade; natureza-cultura; generalização-especialização...
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"Tempos modernos", de Di Cavalcânti (1961)

O mais interessante é perceber que grandes estruturas permaneceram, com relação à história colonial da divisão social do trabalho intelectual, e se apresentam como sendo a especialização científica consolidada nas universidades de todo o mundo. Em geral, o colonialismo intelectual é a marca de toda a organização dos saberes, uma vez que se procurou transplantar e reproduzir a universidade européia em todas as demais realidades continentais.

Daí que pensar uma universidade popular ou a crítica ao direito, como nós fazemos aqui, se torna uma tarefa hercúlea, já que a departamentalização dos saberes e a sua estandardização em disciplinas, faz com que fiquemos, em muito, reféns de uma história do conhecimento que nos separa da realidade.

Como professor de antropologia jurídica, não é pouco freqüente um sentimento de perplexidade frente à “disciplina” que ministro no dia-a-dia universitário. Defendo ante os estudantes: a antropologia tem por objeto a totalidade! Ainda que fazendo uso de uma terminologia cientificista (a pressuposição da cisão entre sujeito e objeto), a totalidade como a busca antropológica é uma pretensão que, via de regra, permanece aprisionada ao campo que foi considerado como o antropológico.

A realidade total é muito mais complexa do que a divisão social do trabalho intelectual e esta já mostra claros sinais de absurda defasagem para com seus objetivos históricos. Não é mais possível pensar o direito de uma maneira institucionalista ou normativista, mas os antropólogos insistem nesses enfoques. Também não é mais possível rejeitar a discussão sobre a particularidade do fenômeno jurídico, mas os juristas críticos se recusam a encará-la.

Enfim, a divisão social do trabalho intelectual não mais atende aos anseios de amplos setores acadêmicos que querem que seu conhecimento tenha alguma serventia, comunicando-se com a realidade, tendo importância para seu povo. Por mais que este tenha sido o discurso dos nacional-desenvolvimentistas, precisamos acolhê-lo naquilo que não foi superado: devemos fazer com que nosso conhecimento e nossa universidade (junto a todo o aparelho de ensino) sirva a nosso povo. Mas com a distinção histórica de que devemos, nisto, operar também a superação da divisão do trabalho em material e intelectual: alguns praticam, outros pensam...

Insustentável esse pesado ser chamado ciência moderna e junto dele o distanciamento para com a realidade. Não se trata, aqui, de negar a verdade ou as verdades. Ao contrário, afirmá-la(s) é essencial e o ponto de partida assumido: a divisão do trabalho social é também reflexo, quer queiramos ou não, da divisão de nossa sociedade, cisão classista, sexista, racialista... Cisão, igualmente, de poderes no plano internacional: é o que se percebe hoje, quando as grandes potências capitalistas “determinam” os destinos das nações periféricas, estejam estas sob lideranças legítimas ou não.

Sendo assim, é preciso que comecemos, com urgência, a produzir um conhecimento novo, ainda que não precisemos encontrar fórmulas novas de acesso à verdade. É hora de fazer valer um velho predicado da modernidade capitalista e que, na medida de sua preponderância, tornar-se-á sujeito gramatical: a prática, a práxis, a totalidade antropológica!

Um comentário:

  1. A idéia de uma busca pela totalidade como esta empreitada a ser realizada por um antropólogo é de arrepiar. Trabalho de uma vida, ou de várias, em várias pessoas.

    É importante, assim, estar aberto inclusive a ressignificações do que se achava até então sabido, para que o novo nasça do que realmente é, o real em toda sua multiplicidade.

    Muito boa sorte nisto, caro amigo Pazello!

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