quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Relatos de um jovem professor (1)

Neste primeiro ano de docência, em Juína, no Mato Grosso, e em Curitiba, no Paraná, já percebi a dimensão do desafio que representa o ofício de ensinar/aprender. Trata-se de um ato de amor que envolve dedicação, paciência e crítica.

Nas cidades existem realidades distintas, por serem duas regiões diferentes do país, por processos de ocupação separados por longos anos, mas, por processos migratórios que se entrecruzam - uma boa porção do norte do Mato Grosso foi povoado por paranaenses.

A ditadura militar nas décadas de 1960 e 1970 foi irresponsável pelos projetos de colonização daquela região e em boa parte da Amazônia.

O primeiro projeto foi uma prática genocida em relação aos índios nativos. Inclusive, no filme "Avaeté" está representado o uso de mão-de-obra de encarcerados brasileiros para abrir picada na mata amazônica e aniquilar os seres humanos da floresta - fosse com banana de dinamite lançada de aviões nas ocas, seja com o oferecimento de açúcar envenenado, seja a golpe de facão (como faz o personagem Diabo Loro quando dilacera a mãe de Avaeté). Claro que a obra de ficção não tem compromisso com a totalidade do projeto inicial de colonização, mas é um bom exemplo da política em relação aos índios nesta região do país naquele período.

Após esta "primeira leva" de serviço público, eram contratados colonizadores - homens de confiança do regime, com habilidade política e visão empreendedora. Não sei o caso de Juína, mas os pioneiros costumavam ter o privilégio de escolher as melhores glebas de terra agricultáveis e com pedras preciosas. Estes convenceram agricultores do sul do Brasil a atravessarem o país para plantar a vida no meio do mato.

As campanhas de propaganda da ditadura deste período estão representadas no filme "Bye Bye Brasil", em que o personagem Lorde Cigano é convencido a viajar para Altamira, no Pará. As frases utilizadas são "Venham para a Amazônia! Aqui os abacaxis são do tamanho de jacas, árvorés o tamanho de um arranha-céu, as predras preciosas estão expostas na terra para quem quiser apanhar. Todo mundo é rico e não tem onde gastar o dinheiro".

Com campanhas tão atraentes muitos paranaenses deixaram suas cidades para viver em Juína. Lá não foi utilizada mão-de-obra carcerária, mas trabalhadores acostumados com a lida do campo no nordeste, norte, até mesmo de países vizinhos como Bolívia e Paraguai. Após a derrubada das árvores mais altas, o desmatamento, a queimada do campo, um plano de ocupação era posto em prática pelos pioneiros colonizadores. Conforme relatou um baiano que atuou na derrubada da mata, e hoje é empresário na cidade, era preciso comer carne de caça, plantas nativas e improvizar muito nos longos dias de calor escaldante.

Os primeiros anos dos migrantes no Mato Grosso foram desastrosos. O calor de média de 35 graus, as chuvas incessantes do verão, a seca interminável do inverno, a malária, os animais silvestres, a violência dos homens, entre muitos outros fatores desafiavam a boa vontade daquele povo trabalhador.

Um dos primeiros "causos" que ouvi do baiano ao chegar na cidade foi sobre o churrasco de fígado. Um homem teria roubado um taxista, um grupo foi a caça deste, o espancaram, arrastaram seu corpo ainda vivo pelas ruas, até chegar na região central da cidade, abriram seu peito a faca, retiraram seu fígado e o assaram para deleito dos presentes. A partir do ponto do homicídio na Praça as versões são contraditórias: alguns dizem que não houve churrasco algum, outros dizem que não só houve, como muitos comeram a carne, inclusive alguns teriam ficado com problemas de pele e outros teriam enlouquecido, por maldição do morto.

Muitos outros relatos de violência surgem quando o assunto são os garimpos. Após uma primeira tentativa de plantio de café mal-sucedida - pelas características da terra e clima amazônicos -, alguns partiram para o plantio de pasto para o gado de leite ou de corte. Mas, a maioria ficou sem alternativa, e partiu para a aventura de encontrar o "ouro de tolo". Um porteiro gaúcho, um dos primeiros moradores da cidade, relatou que nesse período - década de 1970 - os homens morriam como moscas, numa média de 2 a 3 por dia. Levados pela ganância, disputavam a faca e fogo os diamantes.

Outro episódio foi relatado nas salas de aula, da expulsão das organizações Opan e Greenpeace pelo Prefeito, vereadores, empresários e outros habitantes da cidade, em 2007. O discurso inflamado, as filmagens sem autorização, o desconhecimento da realidade local, tudo isto teria levado os militantes verdes a enfrentarem os políticos da cidade, quase chegando as vias de fato.

É fácil constatar nestes depoimentos características de um povo violentado e violento. Reféns das distâncias continentais do país e do isolamento da floresta. A Amazônia nos deixa mais próximos de nossa natureza e cultura.

8 comentários:

  1. Belo texto amigo Luiz.
    Realmente o exercício de trocar, guiando e aprendendo, requer algo que se aproxima da fé. Tenho refletido muito sobre nosso papel de guiadores (nada além disso, penso eu) pelos caminhos do conhecimento e preocupado com o objetivo que pretendemos atingir quando ganhamos a benção da palavra diante da heterogeneidade dos alunos. É uma missão. Belíssima, antes de tudo, porque solicita amor para cada um dos que nos ouvem.

    Abração e boa caminhada.

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  2. Fico imaginando a quantidade de experiências que você já tem a compartilhar conosco, Ribas, mesmo esta sua jornada de educador tendo começado agora...

    Importante este seu relato. A formação das cidades Brasil a dentro de fato seguiram um caminho de violência e sangue- cada uma com suas peculiares atrocidades, claro. Por aqui (Teresina) ainda tivemos o fogo- e merece uma postagem futura.

    Grande abraço!

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  3. Falando em filmes, taí uma boa:

    http://www.cinedireitoshumanos.org.br

    Até na longínqua e corisca Teresina tem... e já começou!

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  4. Vero, amigo!
    A formação do centro-oeste brasiliano ainda faz ressoar os gritos das ruas, das matas, das florestas...
    É um Brasil que vai se formando a golpes de machado!
    Abraços

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  5. Olá pessoal

    Fiquei muito feliz com os comentários!
    Vou refletir um pouco sobre este ato de fé, e o que representa seu sentido pedagógico. Fico receoso de assumir esta postura de guia, penso que a horizontalidade e o diálogo são pressupostos indispensáveis.
    Vou aguardar a postagem de Teresina!
    Vou comparecer nesta mostra de cinema, inclusive em companhia do próprio Lao.
    Amico italiano, que saudades do café, da cerveja, do Chico Buarque e das bicicletas!

    Aguardem mais postagens de relato de experiências. Escrevi uma sobre Curitiba, mas não gostei, se conseguir melhorar publico.

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  6. Luiz,

    Sua reflexão tem muita razão de ser. A história dos vencidos se constrói com muito sangue e os corpos pavimentam a sua estrada. Intepretação historiográfica meio messiânica, sem dúvida, mas da maior coerência possível.

    Aproveito a ocasião para sugerir um paralelo entre a colonização do centro-oeste, aludida por você, e a do sul inabitado ainda há 50 anos. Um dos ápices dessa história é a revolta dos posseiros, de 1957, no sudoeste do Paraná, em que os camponeses tomam o poder político de várias cidades e fazem de sua rebeldia uma organização contestatória que deveria ser cruelmente massacrada. Vale a pena dar uma olhada nos livros "1957: a revolta dos posseiros" (historiográfico), de Íria Zanôni Gomes; "Os dias do demônio" (romance), de Roberto Gomes; e no documentário "A revolta", de João Marcelo Gomes e Ali Muritiba (ver o blogue: http://www.filmearevolta.blogspot.com ). Mãe, pai e filho empenhados no resgate da insurgência no sul do País. E cada estado tem vários desses exemplos. Este é mais um projeto coletivo a se empreender: uma história das insurgências no Brasil e seu reflexo para se pensar uma outra organização política para nossa realidade! Abraços

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  7. O livro do Roberto Gomes já está na minha prateleira ( tenho um excelente fornecedor de literatura "sulista"!) e mal vejo a hora de traçar um paralelo entre as literaturas SUL-NE como eu havia combinado com um certo amigo meu no inicio do ano.

    Esta questão da insurgência vai ser um ponto sensível... Mas isso eu vou deixar para falar depois.

    Abraço galera!

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  8. Ótima esta idéia de traçar este paralelo entre as literaturas sulinas e nordestinas, hein!

    Aproveito para perguntar aos camaradas do Atlântico norte do país, em especial para os que estão antes do Rio Gurupi: quais são os grandes movimentos insurgentes que a história de vocês registra? Sei que há vários desconhecidos aqui pelas bandas do sul...

    Abraços!

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