A coluna “Direito e conjuntura” apresenta
neste momento pós-afastamento por 180 dias da Presidenta da
República, a última parte do artigo de Diego Diehl intitulado “O
Brasil à beira de um golpe de Estado de novo tipo”. Como é
possível perceber, este artigo foi “fazendo-se” no desenrolar
acelerado da conjuntura política, no “calor dos acontecimentos”.
Só o tempo dirá sobre seus acertos e seus erros. Assim como só o
tempo dirá se a nova geração que surge hoje na AJP estará à
altura dos desafios que terá pela frente.
***
5. E aí, AJP: vai ter golpe ou vai ter luta?
Diego Augusto Diehl
A Assessoria Jurídica Popular enquanto práxis de
defesa da classe-que-vive-do-trabalho, dos movimentos sociais, das
organizações populares, está longe de ser algo novo na História,
como já lembravamos há bastante tempo atrás neste blogue, com o
exemplo do advogado dos operários ingleses reverenciado pelo jovem
Engels no livro “A situação da classe trabalhadora na
Inglaterra”. Também esteve presente no Brasil nas lutas durante a
ditadura empresarial-militar, na militância de Pressburguer, Baldez
e de tantos e tantas companheiras que já faziam AJP antes que o
próprio conceito tivesse sido formulado.
Aquilo que nossa jovem geração conhece hoje como
“AJP” é um conceito que começa a ser formulado em meados dos
anos 1990, e que chegará a uma conformação mais clara a partir dos
anos 2000 com a consolidação da RENAJU (Rede Nacional de Assessoria
Jurídica Universitária), com o fortalecimento da RENAP (Rede
Nacional de Advogadas e Advogados Populares), e com o início da
formação de uma reflexão teórica em torno desta práxis jurídica
insurgente. É certo que muito há ainda por se fazer para avançar
em suas concepções, práticas, métodos etc., mas também já é
certo que muitas falsas dicotomias estão hoje superadas: assistência
x assessoria; comunidade x movimento social; rede x coordenação;
movimento estudantil tradicional x alternativo etc etc...
Por ser tão nova e por representar sobretudo uma
jovem geração que começa hoje a trilhar os primeiros passos na
vida profissional dentro do “campo jurídico”, a AJP ainda tem
pouco “capital político” ou “capital jurídico” para assumir
qualquer papel de destaque na luta contra o golpe de Estado que segue
seu curso no Brasil (lembrando que ele só estará sacramentado com o
afastamento definitivo da Presidenta da República). Não queremos
portanto sobredimensionar o papel da AJP, mas queremos sim provocar a
reflexão dxs estudantes e professorxs universitárixs, dxs jovens
advogadxs, enfim, da militância do campo da AJP sobre alguns
desafios que seremos convocadxs a enfrentar no novo período
histórico que se abre neste momento no Brasil.
Como vimos no post anterior, o golpe
midiático-jurídico-parlamentar tem um conjunto complexo de
mecanismos, que ademais colocam o campo jurídico como arena decisiva
de legitimação do novo regime jurídico-político que se pretende
instaurar a partir da dissolução da “Nova República”. Seu
objetivo é resgatar as taxas de lucro dos capitalistas por meio do
ataque direto ou indireto às pequenas mas importantes conquistas
econômicas e sociais da classe-que-vive-do-trabalho nos últimos
anos no Brasil. E os modos de fazê-lo perpassarão pela mídia, pelo
Congresso Nacional, pelo Poder Judiciário, pelo Ministério Público,
e agora também pelo Poder Executivo federal. Como enfrentar um
inimigo tão poderoso, que ainda tem por trás o (ainda) poderoso
imperialismo estadunidense?
Em primeiro lugar, podemos recorrer às fontes do
pensamento revolucionário do séc. XX para lembrar que todo
imperialismo é um “tigre de papel” diante da potência de um
povo unido e organizado. De fato não é papel da AJP enfrentar o
golpe, pois esta tarefa cabe ao povo brasileiro. À AJP, como uma das
ferramentas de luta jurídico-política que o povo tem à sua
disposição, cabe em realidade atuar no sentido de empoderar as
massas, de animá-las para a luta, de assessorá-las quanto aos
aspectos jurídico-políticos da luta, de assisti-las em suas
demandas jurídicas. As experiências mais recentes de trabalhos de
AJP com movimentos sociais de forte caráter comunitário demonstram
o papel empoderador e encorajador que essa práxis jurídica
insurgente exerce.
Em segundo lugar, é preciso compreender quais são
as ferramentas que a AJP oferece hoje e quais são seus limites mas
também seus potenciais para o fortalecimento da luta popular. Hoje
podemos dizer que a AJP tem diversas experiências exitosas nas áreas
da advocacia popular, da educação popular, da assessoria
jurídico-política, e também nas atividades de apoio
jurídico-político a pautas e demandas de comunidades e de
movimentos sociais perante o Poder Legislativo, o Ministério
Público, as Universidades etc. O muito que já se fez e que se faz
hoje não significa que se esteja fazendo o suficiente para evitar
que nos últimos anos houvesse uma sistemática violação – ou
mesmo a perda – de direitos historicamente conquistados. Também
caberá à AJP fazer uma autocrítica (junto com a esquerda
brasileira em geral) sobre seus descaminhos e suas debilidades nos
últimos anos, mas isso não significa que se possa sobredimensionar
o seu papel histórico, e muito menos que se tenha que simplesmente
“jogar fora” toda essa experiência histórica acumulada para
ingenuamente “começar tudo do zero”, agora de forma “pura e
sem contradições” (como alguns setores da esquerda brasileira
parecem querer propor ao menos no plano político neste momento de
auge da ofensiva golpista no país; algo como “desistir sem lutar,
já que 'eles' não valem a pena mesmo” - como se o golpe fosse
contra o governo apenas e não contra o povo...).
Em terceiro lugar, a AJP tem uma série de “fontes
teóricas” que precisam ser revisitadas, rediscutidas, ampliadas, e
que também deverão passar por este exame crítico e autocrítico.
Nossa geração foi formada em torno das diversas vertentes do
pensamento jurídico crítico brasileiro dos anos 1970-1990, de inegável qualidade teórica, mas que foi perdendo seu potencial
transformador e por vezes até sua coerência política em virtude de
tudo aquilo que veio junto com a derrota ideológica das esquerdas
que representou o fim do socialismo soviético e a ascensão do
neoliberalismo e do pós-modernismo no campo cultural. A impressão
que fica aos jovens juristas de hoje é que, de fato, a teoria
crítica do Direito “morreu” no Brasil, e que o golpe de 2016
exige que ela renasça imediatamente.
Em quarto lugar, a compreensão da conjuntura
(nacional e internacional) é a sabedoria fundamental para a
“antecipação de situações”, para a previsão de cenários
possíveis da luta política, e portanto da movimentação dessas
complexas peças do xadrez político (e também jurídico) atual. A
AJP figura hoje como uma pequena e singela peça, mas que pode
“crescer no jogo” desde que passe a ocupar determinados espaços
estratégicos. Uma ocupação inteligente de espaços (considerando
nossas parcas forças neste momento) exige compreender e antecipar os
próximos capítulos da conjuntura política internacional e nacional
(nessa ordem), para então estabelecer o que de fato deve ser feito
no atual momento histórico.
O povo brasileiro está neste momento confundido e
iludido com a promessa de melhoria do cenário econômico pós-golpe.
A mídia trata de dar ares de “normalidade democrática”,
“respeito às instituições”, e propagação de um falso
otimismo sobre o futuro do Brasil, sobretudo no plano da economia. Em
breve toda essa “cortina de fumaça” desaparecerá, pois se é
verdade que num primeiro momento os chamados “agentes econômicos”
(leia-se: a burguesia financeira, industrial, comercial etc) deverão
começar a sair da paralisia (o golpe atual tem também um componente
econômico que foi a “greve de investimentos” de muitas
empresas), o fato é que o Brasil trocará de forma “lenta, segura
e gradual” aquilo que chamamos aqui de “nova dependência” (a
parceria estratégica – ainda que dependente – com os BRICS, a
porção mais saudável e promissora da economia mundial do séc.
XXI) pela já conhecida “velha dependência” em relação a
potências ocidentais em franco processo de decadência política e
econômica (certamente a crise migratória europeia de um lado, e a
figura nefasta de Donald Trump nos EUA de outro, são sintomas
emblemáticos dessa decadência do “Ocidente”). Ademais, a
imposição de uma agenda econômica recessiva, a redução do
salário-mínimo e a redução de direitos sociais enfraquecerão o
mercado consumidor interno, contribuindo para agravar ainda mais a
recessão econômica.
Caídas todas as ilusões com o governo
Temer-Cunha (que procurará evitar medidas impopulares enquanto o
impeachment de Dilma não for sacramentado), o que restará ao povo
brasileiro será lutar contra a perda de direitos, ao mesmo tempo em
que formata uma frente política coesa (ainda que com muitos partidos
e candidatos) e consistente para apresentar-se em 2018, não apenas
para disputar a Presidência da República e demais cargos no
Congresso Nacional e nos governos estaduais, mas sobretudo para
disputar o projeto de nação que deverá orientar o Brasil neste
início do séc. XXI, após o esgotamento histórico da chamada “Nova
República”. Isso exigirá, da parte da esquerda brasileira
(movimentos sociais, partidos políticos críticos, frentes políticas
etc) apresentar um autêntico e renovado projeto popular para o
Brasil, com começo, meio e fim, e que envolva a dissolução de
todas as barreiras político-jurídicas instituídas no contexto da
“Nova República” pela CF/1988 para a execução das chamadas
“reformas estruturais”, pelas quais o país jamais passou. Nesse
sentido, deverá readquirir força a luta por uma Assembleia
Constituinte exclusiva e soberana sobre o sistema político, que terá
agora como tarefa histórica não só promover a instituição de um
novo modelo de democracia participativa e de controle sobre a
influência eleitoral da mídia e das grandes empresas, mas também
de reafirmar um conjunto de direitos fundamentais afirmados na
Constituinte de 1986/87, mas que foram na prática neutralizados
pelos diversos agentes e instituições comprometidos de algum modo
com o golpe de Estado em curso.
Dispensar o aprendizado histórico de erros mas
também de acertos de governos petistas; descartar o capital político
que alguns de seus quadros históricos ainda possuem; ou promover uma
espécie de “caça às bruxas” nas esquerdas são atitudes que
levarão certamente à derrota nesta disputa de projetos na qual o
Brasil já está profundamente mergulhado. A autocrítica é sem
dúvidas fundamental, mas terá que ser promovida ao mesmo tempo em
que a luta popular segue seu curso. E o papel da AJP é justamente o
de assessorar os movimentos populares e as organizações
comunitárias nestas lutas bastante duras que certamente virão pela
frente.
Quando perguntamos à AJP se vai ter golpe ou vai
ter luta, isso não significa dizer que, em havendo luta, o golpe não
ocorrerá. Pelo contrário, é perfeitamente possível (e quiçá
mesmo provável) que, mesmo participando da luta, o golpe venha a ser
definitivamente sacramentado. No entanto, o simples ato de engajar-se
na luta significará que a AJP participará do processo de formatação
do novo, que virá necessariamente dos movimentos sociais, em
especial daqueles com maior potencial de mobilização das massas
populares. Nesse cenário, a AJP deixaria de ter o papel pouco
relevante que jogara até agora no cenário político, para assumir
posições estratégicas seja no monitoramento dos movimentos do
campo adversário (afinal de contas os juristas são fundamentais no
golpe atual), seja na conformação das forças populares e de suas
bandeiras de luta para o próximo período.
Com esta nova coluna “Direito e conjuntura”, o
blogue da AJP buscará trazer contribuições nestes 2 aspectos,
porém com maior destaque ao monitoramento dos “inimigos do povo”,
sobretudo no Congresso Nacional, no Poder Executivo federal (cuja
composição deixaremos para analisar nas próximas semanas), e nas
agendas institucionais do Poder Judiciário e do Ministério Público
Federal. Esperamos poder assim contribuir para uma melhor coordenação
das ações das forças populares, para a consolidação de lutas
unificadas e para a produção de consciência crítica junto à
militância da AJP e dos movimentos sociais, enfim, ao povo brasileiro.
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