quarta-feira, 19 de novembro de 2014

Parecer sobre direito a moradia como direito humano e fundamental


1475- PARECER do Prof. Dr. José Luiz Quadros de Magalhães sobre as decisões judiciais que mandam despejar cerca de 8 mil famílias nas Ocupações Rosa Leão, Esperança e Vitória, na Região do Isidoro, em Belo Horizonte e Santa Luzia, MG.

PARECER do Prof. Dr. José Luiz Quadros de Magalhães sobre as decisões judiciais que mandam despejar cerca de 8 mil famílias nas Ocupações Rosa Leão, Esperança e Vitória, na Região do Isidoro, em Belo Horizonte e Santa Luzia, MG.

PARECER

DIREITO À MORADIA COMO DIREITO HUMANO E FUNDAMENTAL. IMPOSSIBILIDADE DE DESPEJO DE MILHARES DE FAMÍLIAS SEM ALTERNATIVA DE MORADIA DIGNA. NÃO SUBORDINAÇÃO DO DIREITO À VIDA DIGNA AO DIREITO DE PROPRIEDADE. SOBRE A INCONSTITUCIONALIDADE, ILEGALIDADE E IMORALIDADE DA DECISÃO DE DESPEJO DE MAIS DE OITO MIL FAMILIAS.

Consulente: Moradores das Ocupações Rosa Leão, Esperança e Vitória.
Parecerista: José Luiz Quadros de Magalhães[1]


1-   DA CONSULTA

Os moradores das Ocupações Rosa Leão, Esperança e Vitória fazem uma consulta sobre a ameaça de despejo de mais de 8.000 (oito mil famílias) por decisão flagrantemente ilegal e inconstitucional da Juíza de Direito Luzia Divina Peixoto, nos autos de reintegração de posse de número 0024.13.242.724-6, 0024.13.313.504-6. 0024.13.304.260-6 e 0024.13.297.889-1, em trâmite na 6ª Vara da Fazenda Pública Municipal de Belo Horizonte.
De acordo com os consulentes, além da flagrante inconstitucionalidade da decisão de despejo, outras ilegalidades e inconstitucionalidades estão presentes no processo, pela inobservância do princípio da igualdade perante a lei, e dos princípios processuais constitucionais da ampla defesa e do contraditório, princípios estes que se desdobram na lei processual federal que assegura igualdade de tratamento às partes. A Juíza do processo vem dificultando a defesa e o acesso aos autos para a Defensoria Pública e o Ministério Público de Minas Gerais
Diante dos fatos narrados, a consulente questiona sobre a legalidade e a constitucionalidade da decisão e sobre o direito dos moradores, pessoas portadoras de direitos constitucionais, com direitos iguais assegurados pela Constituição, à moradia, à dignidade, à segurança e integridade física e moral.


2 - DO DIREITO

         São várias as obras e autores no campo do Direito que estudam a questão dos princípios e regras constitucionais. A questão em análise não poderia implicar em dificuldade de compreensão ou interpretações divergentes diante dos princípios que se densificam diante do caso concreto, em análise, em direitos constitucionais fundamentais. No caso, estamos diante de direitos que decorrem de princípios constitucionais fundamentais como a dignidade da pessoa; a integridade física e moral; a segurança; a vida; a liberdade; a moradia, e outros destes decorrentes. São mais de 8.000 famílias, milhares de pessoas portadoras destes direitos inalienáveis que serão prejudicadas e terão seus direitos violados com esta decisão incompreensível, e que de tamanho o absurdo, é também imoral.
         Como mencionamos, vários são os autores, que a partir de teorias construídas sobre a relação entre princípios e regras nos mostram a solução para o caso. Dworkin, Habermas, Alexy, e, no Brasil, um grande número de teóricos do Direito e constitucionalistas como o atual Ministro do STF Luis Roberto Barroso, se dedicam ao estudo do neo-constitucionalismo e a questão dos princípios.
         A Constituição brasileira de 1988 contém tipos distintos de normas jurídicas como as regras, os princípios setoriais e os princípios fundamentais expressos e princípios e normas deduzidas a partir da interpretação sistêmica do seu texto, sempre diante do caso concreto.
         Ao aplicar qualquer norma jurídica infraconstitucional (uma regra do Código de Processo, por exemplo), o interprete das normas que regulam o caso concreto, que irá construir uma norma para o caso (a decisão de um juiz no processo por exemplo), deve partir sempre da complexidade de cada caso. A decisão judicial é uma norma para o caso concreto, construída pelo Juiz, levando em consideração toda a complexidade deste caso e todas as normas que o regulam, ou seja, as regras infraconstitucionais, as regras constitucionais e os princípios expressos e deduzidos do texto constitucional. Toda lei só pode ser aplicada em consonância com a Constituição, que por sua vez só pode ser compreendida como um sistema.
         Assim, ao aplicar uma regra infraconstitucional (uma regra do Código de Processo, por exemplo), o interprete deverá cuidar para que a sua aplicação não seja contrária ao texto constitucional e não viole nenhum direito constitucional. Neste sentido, uma lei, que em abstrato é constitucional, pode, diante da complexidade do caso, ter uma aplicação inconstitucional. A lei e a Constituição têm uma finalidade, e sua aplicação fora desta finalidade também é inconstitucional.
         Por este motivo, muitos constitucionalistas e teóricos do direito têm dedicado muitas e muitas páginas, livros, artigos, teses e dissertações sobre a interpretação e aplicação do direito. Aplicar o direito ao caso concreto não é uma operação simples. Para aplicar o direito é necessário interpretá-lo, e a sua interpretação deve compreender o direito como um sistema integrado e coerente de normas (princípios e regras) que serão adequadas, sempre, ao caso concreto. Daí que para cada caso, haverá uma norma construída a partir do sistema jurídico constitucional.
         O jurista Ronald Dworkin desenvolveu uma ideia que é muito importante para entendermos melhor o processo de construção da norma (da decisão judicial) para o caso concreto. Em sua teoria, ele menciona a ideia da “integridade” do direito, que deve ser mantida quando da decisão judicial.
         Podemos entender a integridade de duas maneiras: a “integridade” como a coerência sistêmica do ordenamento jurídico e o respeito a sua totalidade; e “integridade” enquanto coerência histórica, quando então, em cada decisão, cada juiz escreve um novo capítulo de um romance em cadeia, que guarda coerência com o capítulo anterior, e evolui e se transforma a partir deste processo histórico. Assim, um juiz não vai inventar um conceito de um princípio do nada, mas pode fazer evoluir a compreensão deste princípio guardando coerência com a história e as decisões anteriores frente às transformações sociais.
         Decorre desta compreensão que o Juiz, ao construir a decisão para o caso concreto não pode escolher uma regra em detrimento de outra segundo sua vontade e seus valores pessoais. Isto seria a mais completa insegurança jurídica. A sua decisão deve ser a que guarda a integridade de todo o sistema. Assim, não haveria escolha entre o direito de propriedade e o direito à vida, a integridade física e moral; à moradia; à segurança. Todos devem ser respeitados. Acontece, que diante do caso concreto, este sistema integral pode tencionar-se. Ou seja, se em abstrato dizemos que propriedade, vida, segurança, dignidade e outros devem ser respeitados simultaneamente, diante de situações complexas da vida, muitas vezes estes princípios entrarão em conflito.
         Como solucionar este conflito? O conflito entre regras é de fácil solução. As regras regulam situações específicas. O seu grau de abrangência é menor. Não podem existir duas regras regulando a mesma situação: assim a regra posterior revoga a anterior, a específica prevalece sobre a genérica, e a hierarquicamente superior prevalece sobre a inferior. Já entre os princípios não é assim. Os princípios são normas com um grau de abrangência muito maior, eles regulam diversas situações simultaneamente, e diversos princípios se aplicam à mesma situação. Este é o caso.
         Na situação em tela, qual será a única decisão possível que preserve o sistema jurídico constitucional em sua integridade, ou seja: preserve a vida, a integridade física e moral destas mais de 8.000 famílias; preserve o seu direito de moradia, de dignidade, e ao mesmo tempo preserve o direito de propriedade?
         Certamente, uma decisão absolutamente inconstitucional, que destrói a integridade do Direito é a que implica nos despejos. Esta não tem nenhuma sustentação lógica constitucional além de ser imoral. Uma decisão deste teor deve gerar a responsabilização criminal do Juiz que a proferir.
         Supondo que haja ainda um direito de propriedade a ser garantido, pois o direito deve ser exercido para que seja protegido, a única solução possível, que mantenha a integridade do sistema deve ser a que mantenha estas pessoas nos espaços e moradias que atualmente ocupam e se desaproprie a área pagando a indenização devida, caso contrário, estas pessoas só poderiam sair diante de uma negociação (jamais com o uso da força por tudo que foi explicado) onde lhes seja garantida moradia com dignidade e respeito, e sempre, a sua integridade física e moral.
         Não há justificativa possível, para o direito constitucional, a violação de princípios dos quais decorrem direitos fundamentais como a vida; a segurança; a integridade física e moral; a moradia, de mais de oito mil famílias (8.000) para se garantir um suposto direito de propriedade.
         Além de todo o exposto, a análise do processo aponta uma série de ilegalidades e inconstitucionalidades, decorrentes da inobservância dos princípios processuais constitucionais da ampla defesa, do devido processo legal e do contraditório. Essas ilegalidades foram arguidas pela Defensoria Pública do Estado de Minas Gerais, em Agravo negado por dois desembargadores; pelo Ministério Público em Ação Civil Pública impetrada na 2ª Vara de Fazenda Pública Estadual, dia 15 de julho de 2014, ação ainda não julgada; em exceção de suspeição da juíza, recurso não julgado também ainda; e em Mandado de Segurança. E deverão ser arguidos em outros recursos judiciais ainda cabíveis.


CONCLUSÃO

Por todo o exposto, é o presente parecer pela inconstitucionalidade da retirada dos moradores (8.000 famílias) das ocupações Rosa Leão, Esperança e Vitória, pois isto implicará na grave violação de princípios e direitos constitucionais fundamentais destes decorrentes. 
É o parecer.
Belo Horizonte, 10 de Agosto de 2014.

José Luiz Quadros de Magalhães


[1] Possui graduação em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (1986), graduação em Língua e Literatura Francesa pela Universidade Nancy II (1983), mestrado em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (1991) e doutorado em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (1996). Atualmente é professor titular da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, professor associado da Universidade Federal de Minas Gerais e professor do programa de mestrado da Faculdade de Direito do Sul de Minas. É coordenador de projeto do programa Pólos de Cidadania da UFMG e coordenador regional (região sudeste - Brasil) da Rede pelo Constitucionalismo democrático latino americano. Professor visitante no mestrado em filosofia da Universidad Libre de Bogotá; do doutorado da Faculdade de Direito da Universidad de Buenos Aires; foi professor visitante na Universidad de la Habana (Cuba) e pesquisador na Universidad Nacional Autónoma de México. Tem diversos livros e artigos científicos e jornalísticos publicados. Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito Constitucional, Internacional, Teoria do Estado e da Constituição, atuando principalmente nos seguintes temas: plurinacionalidade, diversidade, democracia, federalismo, direitos humanos, poder, ideologia e constituição.

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