Enviado por José Luiz Quadros de Magalhães.
1475- PARECER do Prof. Dr. José Luiz
Quadros de Magalhães sobre as decisões judiciais que mandam despejar cerca de 8
mil famílias nas Ocupações Rosa Leão, Esperança e Vitória, na Região do
Isidoro, em Belo Horizonte e Santa Luzia, MG.
PARECER do Prof. Dr. José Luiz
Quadros de Magalhães sobre as decisões judiciais que mandam despejar cerca de 8
mil famílias nas Ocupações Rosa Leão, Esperança e Vitória, na Região do
Isidoro, em Belo Horizonte e Santa Luzia, MG.
PARECER
DIREITO À MORADIA COMO DIREITO
HUMANO E FUNDAMENTAL. IMPOSSIBILIDADE DE DESPEJO DE MILHARES DE FAMÍLIAS SEM
ALTERNATIVA DE MORADIA DIGNA. NÃO SUBORDINAÇÃO DO DIREITO À VIDA DIGNA AO
DIREITO DE PROPRIEDADE. SOBRE A INCONSTITUCIONALIDADE, ILEGALIDADE E
IMORALIDADE DA DECISÃO DE DESPEJO DE MAIS DE OITO MIL FAMILIAS.
Consulente: Moradores das Ocupações
Rosa Leão, Esperança e Vitória.
Parecerista: José Luiz Quadros
de Magalhães[1]
1- DA CONSULTA
Os moradores das Ocupações Rosa
Leão, Esperança e Vitória fazem uma consulta sobre a ameaça de despejo de mais
de 8.000 (oito mil famílias) por decisão flagrantemente ilegal e
inconstitucional da Juíza de Direito Luzia Divina Peixoto, nos autos de
reintegração de posse de número 0024.13.242.724-6, 0024.13.313.504-6.
0024.13.304.260-6 e 0024.13.297.889-1, em trâmite na 6ª Vara da Fazenda Pública
Municipal de Belo Horizonte.
De acordo com os consulentes, além
da flagrante inconstitucionalidade da decisão de despejo, outras ilegalidades e
inconstitucionalidades estão presentes no processo, pela inobservância do
princípio da igualdade perante a lei, e dos princípios processuais
constitucionais da ampla defesa e do contraditório, princípios estes que se
desdobram na lei processual federal que assegura igualdade de tratamento às
partes. A Juíza do processo vem dificultando a defesa e o acesso aos autos para
a Defensoria Pública e o Ministério Público de Minas Gerais
Diante dos fatos narrados, a
consulente questiona sobre a legalidade e a constitucionalidade da decisão e
sobre o direito dos moradores, pessoas portadoras de direitos constitucionais,
com direitos iguais assegurados pela Constituição, à moradia, à dignidade, à
segurança e integridade física e moral.
2 - DO DIREITO
São várias as obras e autores no campo do Direito que estudam a questão dos
princípios e regras constitucionais. A questão em análise não poderia implicar
em dificuldade de compreensão ou interpretações divergentes diante dos
princípios que se densificam diante do caso concreto, em análise, em direitos
constitucionais fundamentais. No caso, estamos diante de direitos que decorrem
de princípios constitucionais fundamentais como a dignidade da pessoa; a
integridade física e moral; a segurança; a vida; a liberdade; a moradia, e
outros destes decorrentes. São mais de 8.000 famílias, milhares de pessoas
portadoras destes direitos inalienáveis que serão prejudicadas e terão seus
direitos violados com esta decisão incompreensível, e que de tamanho o absurdo,
é também imoral.
Como mencionamos, vários são os autores, que a partir de teorias construídas
sobre a relação entre princípios e regras nos mostram a solução para o caso.
Dworkin, Habermas, Alexy, e, no Brasil, um grande número de teóricos do Direito
e constitucionalistas como o atual Ministro do STF Luis Roberto Barroso, se
dedicam ao estudo do neo-constitucionalismo e a questão dos princípios.
A Constituição brasileira de 1988 contém tipos distintos de normas jurídicas
como as regras, os princípios setoriais e os princípios fundamentais expressos
e princípios e normas deduzidas a partir da interpretação sistêmica do seu
texto, sempre diante do caso concreto.
Ao aplicar qualquer norma jurídica infraconstitucional (uma regra do Código de
Processo, por exemplo), o interprete das normas que regulam o caso concreto,
que irá construir uma norma para o caso (a decisão de um juiz no processo por
exemplo), deve partir sempre da complexidade de cada caso. A decisão judicial é
uma norma para o caso concreto, construída pelo Juiz, levando em consideração
toda a complexidade deste caso e todas as normas que o regulam, ou seja, as
regras infraconstitucionais, as regras constitucionais e os princípios
expressos e deduzidos do texto constitucional. Toda lei só pode ser aplicada em
consonância com a Constituição, que por sua vez só pode ser compreendida como
um sistema.
Assim, ao aplicar uma regra infraconstitucional (uma regra do Código de
Processo, por exemplo), o interprete deverá cuidar para que a sua aplicação não
seja contrária ao texto constitucional e não viole nenhum direito
constitucional. Neste sentido, uma lei, que em abstrato é constitucional, pode,
diante da complexidade do caso, ter uma aplicação inconstitucional. A lei e a
Constituição têm uma finalidade, e sua aplicação fora desta finalidade também é
inconstitucional.
Por este motivo, muitos constitucionalistas e teóricos do direito têm dedicado
muitas e muitas páginas, livros, artigos, teses e dissertações sobre a
interpretação e aplicação do direito. Aplicar o direito ao caso concreto não é
uma operação simples. Para aplicar o direito é necessário interpretá-lo, e a
sua interpretação deve compreender o direito como um sistema integrado e
coerente de normas (princípios e regras) que serão adequadas, sempre, ao caso
concreto. Daí que para cada caso, haverá uma norma construída a partir do
sistema jurídico constitucional.
O jurista Ronald Dworkin desenvolveu uma ideia que é muito importante para
entendermos melhor o processo de construção da norma (da decisão judicial) para
o caso concreto. Em sua teoria, ele menciona a ideia da “integridade” do
direito, que deve ser mantida quando da decisão judicial.
Podemos entender a integridade de duas maneiras: a “integridade” como a
coerência sistêmica do ordenamento jurídico e o respeito a sua totalidade; e
“integridade” enquanto coerência histórica, quando então, em cada decisão, cada
juiz escreve um novo capítulo de um romance em cadeia, que guarda coerência com
o capítulo anterior, e evolui e se transforma a partir deste processo
histórico. Assim, um juiz não vai inventar um conceito de um princípio do nada,
mas pode fazer evoluir a compreensão deste princípio guardando coerência com a
história e as decisões anteriores frente às transformações sociais.
Decorre desta compreensão que o Juiz, ao construir a decisão para o caso
concreto não pode escolher uma regra em detrimento de outra segundo sua vontade
e seus valores pessoais. Isto seria a mais completa insegurança jurídica. A sua
decisão deve ser a que guarda a integridade de todo o sistema. Assim, não
haveria escolha entre o direito de propriedade e o direito à vida, a
integridade física e moral; à moradia; à segurança. Todos devem ser
respeitados. Acontece, que diante do caso concreto, este sistema integral pode
tencionar-se. Ou seja, se em abstrato dizemos que propriedade, vida, segurança,
dignidade e outros devem ser respeitados simultaneamente, diante de situações
complexas da vida, muitas vezes estes princípios entrarão em conflito.
Como solucionar este conflito? O conflito entre regras é de fácil solução. As
regras regulam situações específicas. O seu grau de abrangência é menor. Não
podem existir duas regras regulando a mesma situação: assim a regra posterior
revoga a anterior, a específica prevalece sobre a genérica, e a
hierarquicamente superior prevalece sobre a inferior. Já entre os princípios
não é assim. Os princípios são normas com um grau de abrangência muito maior,
eles regulam diversas situações simultaneamente, e diversos princípios se
aplicam à mesma situação. Este é o caso.
Na
situação em tela, qual será a única decisão possível que preserve o sistema
jurídico constitucional em sua integridade, ou seja: preserve a vida, a
integridade física e moral destas mais de 8.000 famílias; preserve o seu
direito de moradia, de dignidade, e ao mesmo tempo preserve o direito de
propriedade?
Certamente, uma decisão absolutamente inconstitucional, que destrói a
integridade do Direito é a que implica nos despejos. Esta não tem nenhuma
sustentação lógica constitucional além de ser imoral. Uma decisão deste teor
deve gerar a responsabilização criminal do Juiz que a proferir.
Supondo que haja ainda um direito de propriedade a ser garantido, pois o
direito deve ser exercido para que seja protegido, a única solução possível,
que mantenha a integridade do sistema deve ser a que mantenha estas pessoas nos
espaços e moradias que atualmente ocupam e se desaproprie a área pagando a
indenização devida, caso contrário, estas pessoas só poderiam sair diante de
uma negociação (jamais com o uso da força por tudo que foi explicado) onde lhes
seja garantida moradia com dignidade e respeito, e sempre, a sua integridade
física e moral.
Não
há justificativa possível, para o direito constitucional, a violação de
princípios dos quais decorrem direitos fundamentais como a vida; a segurança; a
integridade física e moral; a moradia, de mais de oito mil famílias (8.000)
para se garantir um suposto direito de propriedade.
Além de todo o exposto, a análise do processo aponta uma série de ilegalidades
e inconstitucionalidades, decorrentes da inobservância dos princípios
processuais constitucionais da ampla defesa, do devido processo legal e do
contraditório. Essas ilegalidades foram arguidas pela Defensoria Pública do
Estado de Minas Gerais, em Agravo negado por dois desembargadores; pelo
Ministério Público em Ação Civil Pública impetrada na 2ª Vara de Fazenda
Pública Estadual, dia 15 de julho de 2014, ação ainda não julgada; em exceção
de suspeição da juíza, recurso não julgado também ainda; e em Mandado de
Segurança. E deverão ser arguidos em outros recursos judiciais ainda cabíveis.
CONCLUSÃO
Por todo o exposto, é o presente
parecer pela inconstitucionalidade da retirada dos moradores (8.000 famílias)
das ocupações Rosa Leão, Esperança e Vitória, pois isto implicará na grave
violação de princípios e direitos constitucionais fundamentais destes
decorrentes.
É o parecer.
Belo Horizonte, 10 de Agosto de
2014.
José Luiz Quadros de Magalhães
[1] Possui graduação em Direito pela
Universidade Federal de Minas Gerais (1986), graduação em Língua e Literatura
Francesa pela Universidade Nancy II (1983), mestrado em Direito pela
Universidade Federal de Minas Gerais (1991) e doutorado em Direito pela
Universidade Federal de Minas Gerais (1996). Atualmente é professor titular da
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, professor associado da
Universidade Federal de Minas Gerais e professor do programa de mestrado da
Faculdade de Direito do Sul de Minas. É coordenador de projeto do programa
Pólos de Cidadania da UFMG e coordenador regional (região sudeste - Brasil) da
Rede pelo Constitucionalismo democrático latino americano. Professor visitante
no mestrado em filosofia da Universidad Libre de Bogotá; do doutorado da
Faculdade de Direito da Universidad de Buenos Aires; foi professor visitante na
Universidad de la Habana (Cuba) e pesquisador na Universidad Nacional Autónoma
de México. Tem diversos livros e artigos científicos e jornalísticos
publicados. Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito
Constitucional, Internacional, Teoria do Estado e da Constituição, atuando
principalmente nos seguintes temas: plurinacionalidade, diversidade,
democracia, federalismo, direitos humanos, poder, ideologia e constituição.
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