sábado, 31 de julho de 2010

Lira Filho: porque a crítica jurídica não pode morrer



Em tempos de forte tensão, em que conquistas populares são minadas pelos interesses egóicos das classes dominantes; em tempos de refluxo da organização popular, acometida pelo vicarismo histórico de ou quase desaparecer ou de ser cooptada quase integralmente; em tempos de realidade virtual e nauseante separação de homem e mundo; em tempos difíceis, portanto, é preciso re-vidar (na ambigüidade que que o uso neológico da palavra pode oferecer) a crítica dos que nunca se conformaram com sua realidade.

Para o contexto do pensamento jurídico latino-americano, uma figura não pode nunca ser esquecida. Lembrá-la é um dever revolucionário, ainda que suas concepções pressupusessem um humanismo dialético. Não temos, por isso, de concordar com todas as suas concepções de mundo. No entanto, reavivar seu espírito - da forma mais materialista possível - é tarefa do hoje. E, entrementes, superá-lo. Isto seria seguir sua lição, dialeticamente.

Para o mundo jurídico-político, pouco plausível seria tentar descrever quem foi Roberto Lira Filho (a grafia "oficial" é Lyra, com ípsilon): filho de Roberto Lira, dos maiores juristas brasileiros do primeiro meado do século XX? dos primeiros teóricos críticos e marxistas do direito no continente latino-americano? fundador da Nova Escola Jurídica Brasileira e inspirador do Direito Achado na Rua? poeta, tradutor, músico, crítico literário, teólogo, penalista, filósofo e sociólogo do direito? Não. Tudo isso e mais, pois um crítico feroz e mordaz do direito e da realidade de opressão do Brasil e de toda a América Latina, um exemplo de rebeldia e inconformismo a ser seguido coetaneamente.

No contexto brasileiro, três são os grandes nomes para a fundação de uma teoria crítica do direito: Roberto Lira Filho, Luis Alberto Vará (ou Warat) e Luiz Fernando Coelho (ainda que bastante distintos e, até mesmo, violentamente divergentes). Lira Filho foi o que mais prematuramente deixou sua carcaça terrestre e o que mais falta faz hoje, com seu ímpeto agitador e destruidor de todas as mesmices do mundo jurídico-político tupiniquim. Seu grande legado, a luta contra a ditadura, a visão plural da normatividade e a contribuição marxista para as análises do direito moderno, superando as velhas ideologias do jusnaturalismo e do juspositivismo, ainda hoje insistentemente renovadas com outros signos e escaramuças as mais inacreditáveis (as que envolvem o judiciário, enovelam o legislativo e enlaçam o executivo - toda a burocracia estatal, enfim).

Como não ficar com suas palavras? Convido os que acompanham nosso blogue para lerem Lira Filho, sob o pseudônimo de Noel Delamare:
-
Envio
-
Não me lamento, porque canto,
Faço do canto manifesto.
Sequei as águas do meu pranto
Nos bronzes fortes do protesto.
-
Acuso a puta sociedade,
Com seus patrões, seus preconceitos.
O teto, o pão, a liberdade
Não são favores, são direitos.

Eis um poema do livro "Da cama ao comício, poemas bissextos" (Nair, 1984), disponível no sítio do Núcleo de Pesquisa Lyriana - NPL, o qual fazemos questão de divulgar, mesmo porque não compreendemos a razão pela qual sua obra continua embargada nas gavetas do individualismo e da incompreensão, tão na contra-mão de seus ensinamentos enquanto cultor do saber e democratizador do conhecimento. Hoje, além de alguns textos esparsos em raras coletâneas, apenas o clássico "O que é direito", da coleção "Primeiros Passos" da editora Brasiliense está disponível para aquisição. Isto porque é obra com direitos autorais cedidos à editora. Mas a crítica jurídica se ressente de não poder mais consultar com facilidade, a não ser em boas bibliotecas em geral das grandes universidades públicas do país, textos fundamentais como "Criminologia dialética" (Borsoi, 1972), "Para um direito sem dogmas" (Fabris, 1980), "Razões de defesa do direito" (Obreira, 1981), "Direito do capital e direito do trabalho" (Fabris; Instituto dos Advogados do RS, 1982) e "Karl, meu amigo: diálogo com Marx sobre o direito" (Fabris; Instituto dos Advogados do RS, 1983), dentre muitos outros títulos.


Gostaríamos muitíssimo de sensibilizar, com nossa mensagem, os que detêm os direitos autorais da obra de Lira Filho para que tornassem possível um sonho, há tempos cultivado por vários professores e editores, que é o de publicar suas obras completas. Ao mesmo tempo, não deixamos cair no esquecimento este importante referencial da crítica jurídica latino-americana, o qual merece e precisa continuar sendo marco de estudos de tantos pesquisadores e trabalhadores do direito.

2 comentários:

  1. Ótimo, Sr. Ricardo Prestes Pazello!

    Uma postagem exclusiva para Lyra Filho. Divulgação muito importante já que a obra dele parece que é mais conhecida, hoje, apenas por quem decide enveredar pelo caminho das AJUPs. O que é um pena. Eu mesma conheci graças a meus amigos ajupianos "daqui" e "daí"...

    E Warat anda merecendo mais postagens, também.

    Grande abraço, piá!

    ResponderExcluir
  2. O Lyra Filho merece a publicação de suas obras completas! Sem dúvida. Isto irá facilitar, e muito, o acesso a obra, divulgação e usos (alternativos ou insurgentes).
    Vamos lutar juntos por esta idéia, tens todo meu apoio!
    Acho que precisamos fazer uma mobilização (abaixo-assinado eletrônico), ou algo assim. Além é claro de realizar os tramites necessários com os detentores dos direitos autorais, editoras, intelectuais críticos etc.
    Grande idéia, vamo que vamo!

    ResponderExcluir