A ditadura não morreu, está aqui, mais próximo do que pensamos e do lado de quem menos esperávamos. Ditadura sim, mas não no sentido de regime explicitamente autoritário, centrado na coerção pública (e, por vezes, oculta) dos direitos e da liberdade. A ditadura atual está travestida de militarização da democracia – como bem definiu Milton Santos, militarização enquanto relação de poder cuja obediência aos mandamentos dos grupos hegemônicos é a única alternativa democraticamente apresentada e representada nos espaços de negociação política e produção midiática – e apela para os "interesses nacionais" para legitimar uma série de ações truculentas e antidemocráticas que violam os direitos humanos e constitucionais de centenas de pessoas que ousaram (e ousam) contrariar o status quo nacional, regional e local propagador do discurso demagógico do desenvolvimentismo capitalista-neocolonial pela ótica da construção da Hidrelétrica de Belo Monte.
Refiro-me a ações "não-oficiais" e "não-noticiadas" que têm como pólo de manifestação a cidade de Altamira, no sudoeste do Pará, e cujos destinatários são todos aqueles – de autoridades públicas a membros de movimentos sociais populares – que se destacaram nos últimos anos, sobretudo durante o período da audiência pública e do leilão da Hidrelétrica de Belo Monte, e passaram a sofrer retaliações institucionais que vão de representações da Advocacia Geral da União (AGU) contra o juiz federal, devido deferimento das liminares, passam pela transferência de diretores de órgãos públicos ligados ao meio ambiente por atuarem de forma pró-ativa na região, e chegam às seguidas incursões da Polícia Federal e da Agência Nacional de Inteligência (ABIN) as sedes dos movimentos sociais populares ou diretamente na residência dos militantes – sempre não fardados – para buscarem informações sobre as ações planejadas, mas que tem por trás toda uma tática de amedrontamento e guerra psicológica via monitoramento permanente de lideranças políticas.
Além disso, há toda uma linha de cooptação de lideranças indígenas locais por meio de entrega de cestas básicas e de combustível, feita pela Eletronorte, e que tem como objetivo não-declarado o enfraquecimento do movimento indígena pelos conflitos que passam a ocorrer entre povos indígenas favoráveis e contrários a construção da Hidrelétrica.O mais estranho disso tudo é que todos esses atos se desenvolvem dentro de um Estado que se considera Democrático de Direito, capitaneado por um governo que se considera de esquerda e populista. As contradições, aqui, saltam aos olhos e nos permitem sugerir a renovação dos procedimentos utilizados no período da ditadura para pressionar todos aqueles que se colocam contrários ao discurso hegemônico, e se colocam contrários de modo a reivindicar politicamente outras condições de desenvolvimento e novas perspectivas de relação com o meio ambiente.
Em Altamira, o front (de guerra) é também a fronteira de uma perspectiva de desenvolvimento para os próximos anos que colide diretamente com os interesses e direitos ao meio ambiente saudável e das populações tradicionais, como os povos indígenas. O Programa de Aceleramento (PAC) e o Programa de Aceleramento 2.0 (PAC 2) tem na construção de hidrelétricas na região amazônica uma das grandes bandeiras de "desenvolvimento" socioeconômico do Brasil, e a Hidrelétrica de Belo Monte, assim como as Hidrelétricas de Santo Antônio e Girau, no rio Madeira, em Rondônia, estão colocadas como a porteira que ao ser aberta possibilitará a construção de diversas outras hidrelétricas na Amazônia.
Mas a quem preço? É o que se pergunta. O que estamos assistindo, aqueles que estão no "olho do furação", é o desmoronamento em cadeia de todos os valores que sustentam o Estado Democrático de Direito e os Direitos Humanos pela sobreposição demagógica dos "interesses nacionais" articulados com interesses mercadológicos e neoliberais de multinacionais que vêm a Amazônia pela ótica do lucro e da exploração desmesurada de seres humanos – não basta lembrar que o Pará é "campeão" de trabalho análogo ao escravo no Brasil – e da natureza – também não é demais reavivar o fato de o Pará ser o estado "campeão" de desmatamento na atualidade.
No entanto, as conseqüências negativas desta articulação pendem sempre para os grupos sociais vulnerabilizados, como camponeses, ribeirinhos e povos indígenas, além dos municípios influenciados pela Hidrelétrica e que não tem (e nem terão) condições orçamentárias e estruturais para suprir as novas demandas sociais – de educação, saúde, saneamento básico, segurança pública, poluição e tantos outros aspectos – que emergirão com a explosão do contingente populacional previsto – onde apenas no município de Altamira, de população atual de aproximadamente 98.000 habitantes, esperasse a duplicação da população, ou seja, esperasse a chegada de mais 98.000 pessoas em menos de 5 anos, migrante que acreditam na ilusória crença de que aqui será o novo Eldorado dos Carajás, quando, na verdade, não passa de uma nova Tucuruí (da Hidrelétrica de Tucuruí), pois a maioria dos empregos gerados será temporário e a previsão é que grande parte dos migrantes acabem se incluindo apenas nos números do bolsão de miséria da cidade e dos índices de violência das páginas policiais dos jornais.
Ainda assim, a situação trágica não permite aos lutadores e lutadoras dessa terra, banhada pelo rio Xingu, esmorecer um só momento no objetivo final de garantir a interdição da construção da Hidrelétrica de Belo Monte por meio de ações pacíficas que sinalizem ao governo e a parcela da população nacional que o "desenvolvimento do Brasil" não pode pensar o Norte a partir do Sul, mas sim possibilitar discussão de qual desenvolvimento as pessoas e organizações do Norte querem, desenvolvimento este que não pode está desatrelado da idéia de sustentabilidade e de respeito para com o meio ambiente e as populações tradicionais, mas, acima de tudo, de respeito para com os valores que orientam o Estado Democrático de Direito e os Direitos Humanos.
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