quinta-feira, 15 de abril de 2010

As ocupações e o vermelho das coisas


Por Ana Lia Almeida

Ocupação é o estado de se apoderar de algo, tomando posse de uma coisa ou de um lugar. O ato de ocupar diz respeito a “fazer uso de”, e todos nós ocupamos diversas coisas e lugares no mundo: a casa em que moramos, a sala em que trabalhamos, a Igreja que freqüentamos, a associação de bairro em dia de reunião. Lugares e coisas têm funções, e ocupa-los é um meio de fazer com que sua função seja cumprida.
Uma casa vazia não cumpre com sua função de moradia, do mesmo modo que a ocupação da sala é condição para que o trabalho se realize. Numa Igreja desocupada não pode haver casamento nem missas, e do mesmo tipo de disfunção padece uma associação de bairro cujos moradores não conseguem se reunir.
Um dos grandes problemas das ocupações, contudo, estão relacionados à separação que nossa sociedade faz entre propriedade e posse, ou seja, o direito formal de “ser dono de” e a condição efetiva de “tomar posse” de algo, ocupando um lugar ou uma coisa e fazendo cumprir com sua função. A propósito, segundo a Constituição Federal, o direito de propriedade só é assegurado em nosso país se esta cumprir com a sua função social, o que significar ter produtividade, respeitar as leis trabalhistas e ambientais.
Pensemos no exemplo de um livro. Quem compra um livro e não o lê tem menos propriedade da estória que o mesmo conta do que alguém que não é seu dono, porém o leu. Aquele que o leu fez cumprir a função do livro de perpetuar a sua estória.
Ocupar a História, por sua vez, tem a ver com a condição de sermos sujeitos, de nos colocarmos ativamente diante da vida, com seus lugares e suas coisas, suas injustiças que combatemos e esperanças que lutamos para cultivar.
O dia 17 de abril entrou na História em 1996, por causa do problema das ocupações, dos sujeitos, das injustiças e das esperanças. Há 14 anos atrás, um massacre chocou o Brasil: a Polícia Militar do Pará assassinou 19 sem-terras durante um protesto em que 1.500 pessoas marchavam pela celeridade da Reforma Agrária. O triste episódio ficou conhecido como “A chacina de Eldorado dos Carajás”, e esta data foi legalmente instituída como o Dia Nacional de Luta pela Reforma Agrária (Lei n°10.469 de 2002).
Em memória a essas pessoas, assassinadas pelo mesmo Estado que deveria efetivar o seu direito a um pedaço de chão para cultivar alimentos, o MST costuma realizar diversas ocupações de terras e órgãos públicos no mês de abril. O período é conhecido e estigmatizado por muitos como “Abril Vermelho”, em alusão à cor da bandeira do MST.
Vermelho é o sangue que comumente é derramado nas ocupações que lutam por terra e justiça social.    Mas vermelha também é a cor da vida, do sangue que corre nas veias de todas as pessoas do mundo. Vendo deste ângulo, a cor vermelha e a condição de ocupar são elementos comuns a todos nós. Um mundo vivo, humano, ocupado pela justiça, é a sua bandeira também? Pense nisso nesse mês de abril.

2 comentários:

  1. Gostei muito do seu texto, Ana. Um convite para (re)pensarmos as atividades que o MST desenvolve. A despeito de parcela expressiva da mídia e da sociedade taxarem o movimento de "baderna", de "bando de impunes", em verdade eles lutam por um pedaço de terra. Terra da qual os que podem pagar já dispõem, mas não se dispõem a repartir.

    Achei interessante, também, porque, apesar de muitos dos que desenvolvem as ideias de assessoria jurídica pautarem as questões relativas ao MST, alguns de nós (como eu) não sabiam realmente o significado pejorativo da expressão "Abril Vermelho". Esse esclarecimento não só é necessário como é um convite àqueles que não discutem MST. Bela introdução!

    ResponderExcluir
  2. É muito fácil estigmatizar o que não sou eu. Eu estou sujeita a ser aquela que aprisiona o outro num conceito que o afasta de mim. É bem menos problemático para minha vida cotidiana adotar essa postura, tomando para mim opinões pré-fabricadas a respeito de problemas que necessitam de algum tempo para uma reflexão mais séria, e que vai além do tempo do intervalo comercial. Preciso me conceder esse tempo para não me tornar mais conivente ainda (ninguém escapa) com algo tão pavoroso.
    É um exercício que não tem fim.

    E mais uma vez, obrigada pelo texto da Ana, Ribas!

    Abraço!

    ResponderExcluir