domingo, 21 de agosto de 2011

Pachucânis para além de o etnocentrismo


Acabo de receber o livro “O discreto charme do direito burguês: ensaios sobre Pachukanis” (lançado em 2009), enviado por seu organizador, o professor Márcio Bilharinho Naves. Trata-se de uma coletânea de textos que têm por intuito discutir a obra de um dos principais, senão o principal, teórico marxista do direito. Não bastasse a importância do debate jurídico soviético, o livro cumpre ainda o papel de trazer a público a tradução de um novo texto de Pachucânis para o português – “A teoria marxista do direito e a construção do socialismo” (1927). Livro de primeira importância para a biblioteca da teoria crítica do direito brasileira e que merece maior acesso, infelizmente pouco possibilitado pela restrita circulação das editoras universitárias em nosso país.

Ao ler um de seus textos, surgiu-me a idéia de problematizar um dos comentários ali presentes, certamente marginal e escassamente desenvolvido por seu autor. Quero discutir uma afirmação de Steve Redhead, no artigo “O discreto charme do direito burguês: uma nota sobre Pachukanis”. Este texto, de 1978, trata de fazer uma crítica contundente à proposta pachucaniana, especialmente tomando em conta a autocrítica a que foi submetido o jurista soviético após a hegemonia estalinista, na década de 1930, e que levaria o próprio Pachucânis ao cadafalso. Devo dizer, ainda, que os comentários de Redhead receberam uma respectiva resposta de Bilharinho Naves, a qual se encontra na seqüência da publicação, sob o título de “Observações sobre ‘O discreto charme do direito burguês: uma nota sobre Pachukanis’”.

Pois bem, Redhead, professor britânico, diz que o pensamento de Pachucânis “aproximou-se perigosamente da noção antropológica burguesa segundo a qual os direitos primitivo, antigo e feudal foram apenas o direito burguês em uma forma menos desenvolvida; no caso de Pachukanis, é evidente, com a importante nota distintiva de que essa forma deveria ‘extinguir-se’ no comunismo”.

Aqui, o professor britânico oferece as mais pesadas armas para jogarmos na vala comum do determinismo histórico o mais criativo dos críticos do direito na Rússia revolucionária, junto a uma legião de divulgadores vulgares do marxismo. Referidas armas são o etnocentrismo antropológico seguido de um evolucionismo linear e unicausal.

De fato, toda a antropologia moderna – basta lembrarmos os nomes de Malinóvisque, em seu “Crime e costume na sociedade selvagem”; Marcel Maus, no “Ensaio sobre a dádiva”; ou Radclife-Broun,* em “Estrutura e função na sociedade primitiva” – preocupou-se em caracterizar as sociedades primitivas ou antigas (estas referentes às civilizações clássicas ao contrário das primeiras, o que já se pode apresentar como uma classificação etnocêntrica, como se faz perceber) pelo fato de possuírem organização social própria, a qual não precisava ser imputada como “involuída”, involução em que se sobressairiam suas ausências. Assim, aparece como elemento “positivo” (no sentido de existente e presente, e não inexistente ou ausente) o direito: o direito dos polinésios, dos trobriandeses ou das tribos australianas ou africanas.

Ocorre, porém, que Pachucânis deu importante passo para desfazer tal confusão, ao contrário do que o comentário acima quis demonstrar.

Pachucânis nota a especificidade burguesa do direito. Trocando em miúdos, seguindo o método de Marx, em “O capital”, o soviético encontra a resposta para a pergunta “o que é o direito?” Mas esta resposta não se destina a somente desbravar um objeto da realidade, como se fosse um fenômeno qualquer, mas antes demonstrar a relação intrínseca entre o modo de produção capitalista e o direito. Assim, a resposta à questão é, grosso modo: o direito é um conjunto de relações sociais que se estabelecem entre sujeitos proprietários que trocam entre si suas mercadorias tornadas equivalentes. Pachucânis aprofunda a resposta de Stuca, outro eminente jurista soviético, para quem o direito era um conjunto de relações sociais sem mais e, ainda, opõe-se ao psicologismo (direito como representação) e ao normativismo (direito como norma) jurídicos que vicejavam em sua época.

Notar a especificidade burguesa do direito, contudo, não é sinônimo de imputação de uma ausência às sociedades anteriores ao capitalismo, mas antes demonstrar o avanço da barbárie sob a égide do capital. Sem recair em idealismo e romantismo, Pachucânis pôde reconhecer o convívio de outras formações sociais com o direito, já que este implica a troca mercantil. Ora, troca mercantil não é uma especificidade do modo de produção capitalista. No entanto, a troca mercantil do modo de produção capitalista tem suas especificidades e, dentre elas, deve-se ressaltar a lei do valor ou a abstração da equivalência.

Esta reflexão pode ser feita no âmbito do direito do trabalho. Por exemplo, o direito burguês alicerça-se na troca de mercadorias equivalentes tais quais a força de trabalho e o salário. Aqui, força de trabalho e salário são abstratamente equivalentes. Por um tempo de trabalho que produz uma certa quantidade de produtos troca-se um montante de dinheiro que recebe a alcunha, em seu todo, de salário. Entretanto, a crítica à economia política de Marx enunciou que esta troca não é exatamente equivalente, apesar de se valer como tal. Tampouco, é falsa, já que se trata de uma aparência forjada pelas relações de produção. A troca de equivalentes é uma distorção do fenômeno real que precisa das relações jurídicas para se concretizar. Neste sentido é que a especificidade burguesa deste direito é a relação de troca de mercadorias equivalentes entre sujeitos proprietários livres. Mas isto não quer dizer que não tenha havido regulação possível das relações de troca no mundo do trabalho antes da consolidação das leis trabalhistas (para fazer um trocadilho com a história do direito brasileiro).

Dessa forma, a obra de Pachucânis, na esteira das interpretações marxistas do direito, apresenta um grande salto qualitativo, o qual se verifica por ser portadora de uma grande “descoberta”: a historicidade do fenômeno jurídico. É claro que a “descoberta” deve ser considerada entre-aspas, uma vez que a construção da universalidade do direito é um fenômeno moderno ou, se não moderno, ao menos ocidental. Um direito, com suas decantadas dicotomias, existente desde as mais remotas eras em que o homem se organiza é a grande justificativa que os juristas, hoje, utilizam para exercer sua dominação de classe. Ubi societas, ibi ius – eis o velho brocardo romanístico que se apresenta como mito fundador do direito, pois “ali onde houver sociedade, aí haverá direito”. Talvez a organização política de romanos, europeus medievais ou polinésios, melanésios ou iroqueses não seja a mesma coisa, não tenha uma equivalência abstrata e, por isso mesmo, não tenham a mesma “natureza” que a do direito burguês e seu discreto charme, o que, na inspiração pachucaniana, é uma indiscreta barbárie política. Ou seja, está a historicidade de Pachucânis para além de o etnocentrismo assim como o universalismo de Quélsen, nos estreitos limites de uma perspectiva etnocêntrica.

* A estranha grafia para os nomes de Pachukanis, Malinowski, Mauss, Radclffe-Brown ou Kelsen se deve ao pessoal entendimento político da necessidade de incorporação dos estrangeirismos à língua portuguesa como signo de insubmissão ao etnocentrismo lingüístico (em geral, eurocêntrico, mas anglófono, em especial) e de auto-afirmação cultural.

5 comentários:

  1. Oi Pazello,
    O post é muito interessante. Não conheço tão profundamento a obra de Pachucanis, mas concordo com a sua análise a respeito da perspectiva marxista das relações mercantis e de como isto marca certa divisão entre antes e depois do capitalismo e, portanto, entre antes e depois do direito burguês.
    Há de se ponderar também que os grupos socioculturais não-ocidentais e, até certo ponto, não-capitalistas contemporâneos realizam negociações com agentes capitalistas em que a apropriação das formas de pensamento capitalista ocorre, ao mesmo tempo, levando-se em conta as desigualdades nas relações de poder e a resistência estratégica que possibilita a incorporação de práticas capitalistas a partir do interesse local e sempre em mediação com os conhecimentos (e, porque não, relações mercantis) tradicionais.
    enfim, algumas questões de imediato...
    Abraços!

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  2. A PEDIDO DO THIAGO HOSHINO, TRAGO SEU COMENTÁRIO AO TEXTO ACIMA (I):

    Muito bom o texto. Numa perspectiva antropológica, Pazello, ainda podemos avançar em outro debate que você inicia: para além da historicidade do direito, sua localidade.

    Digo isto porque a interpretação crítica de Paschukanis sobre o direito burguês em sua cumplicidade com as relações de troca (especialmente porque é o dispositivo jurídico que regula, não só os procedimentos dessas relações, mas fundamentalmente a possibilidade mesma de equivalência entre mercadorias) certamente nos é útil para pensar um determinado paradigma de organização social (que responde, ainda que com variações tópicas, ao modo de produção capitalista), mas não resolve - talvez propositadamente - a pergunta sobre o que seja o direito fora dele, ou mesmo, sobre o que pode vir-a-ser o direito depois dele.

    Por que acredito que isso é relevante? Em primeiro lugar para refletirmos sobre a velha questão: é concebível a existência do direito na sociedade comunista? Em caso afirmativo, qual direito? Trata-se de um questionamento não sem propósito, pois da sua resposta depende, entre outras coisas, nosso próprio esforço - e o de teóricos como Paschukanis - na formulação de uma teoria marxista do direito em sentido positivo (e não meramente repressiva), ou então, como temos já discutido, na constituição histórica de um direito insurgente. Se desvendar o fetichismo do direito burguês significa escancarar sua relação prioritária com os processos de apropriação (instituto da propriedade) a circulação de valores (instituto do contrato), como podemos enxergar um direito não-burguês? Porque, caso sejamos incapzes de fazê-lo, corremos o risco de recairmos em equívocos históricos como o de acreditar que a divisão entre direito público e privado dá conta do recado!

    (cont.)

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  3. A PEDIDO DO THIAGO HOSHINO, TRAGO SEU COMENTÁRIO AO TEXTO ACIMA (II):

    (cont.)

    Um segundo ponto, diz respeito à própria discussão na tradição antropológica sobre o que seja "propriedade". Neste ponto apóio-me num texto de Baptista cuja cópia te entreguei certa vez (http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0100-85872008000200007). Pois, segundo J. Carrier, baseado nos materiais etnográficos disponíveis, é possíveç falarmos de formas de propriedade "exclusive" e "inclusiva", sendo estas últimas o reflexo de "um conjunto de relações duradouras e permanentes inscritas no objeto, e no caso específico sugerido por Carrier, na posse da terra. Na verdade, essa posse e seu uso refletem o conjunto das relações sociais inscritas na configuração social, fornecendo uma série de indicações sobre as relações entre as pessoas e as coisas que circulam no seio daquele grupo ou figuração." Ou seja, relações de pertencimento (relações sujeito-objeto-grupo) constituídas não sobre a circulação (propriedade-mercadoria), mas sobre a permanência e fixação (propriedade-identidade). Para tanto, precisamos determinar que tipo de "circunscrição" é realizada em torno do objeto "possuído" (não parece revelador da natureza estática da propriedade que não exista um verbo dela derivado diretamente?). Afinal, talvez estas outras formas proprietárias sejam uma pista para pensarmos nas outras relações sobre as quais pode apoiar-se um direito não-burguês. Uma das coisas que questiono, por exemplo, é se nos é lícito colocar a única moradia daquele que faz uso social dela, no mesmo patamar de "mercadoria" - apenas porque ela potencialmente poderá vir a integrar relações de mercado - do que as outras e chamá-lo por isso de sujeito proprietário. Existe uma margem não tão nítida aí em que a posse de determinados bens participa da própria esfera de identidade/subjetivação/individuação da pessoa, uma linha não tão nítida entre o "ter" e o "ser".

    Por fim, para um conceito mais abrangente de direito, penso que também temos de colocar em cheque a própria noção - canônica em antropologia - de troca. Por um lado, historicamente, não se trocam apenas mercadorias. Os trabalhos dos próprios pesquisadores citados por ti - Radcliffe-Brown, Malinowski, Mauss - demonstram isso: trocam-se bens tanto simbólicos como materiais, mas troca-se sobretudo a própria troca para perpetuar a dinâmica social da comunidade (dom e contra-dom). Por outro lado, pensar somente, ou de maneira central, as relações sociais do homem não-ocidental como relações de troca, o que foi muito freqüentemente realizado, pode significar uma projeção perigosa de sentido dos nossos etnógrafos, eles sim homens do mundo da troca capitalista. E mais, pode servir para fundamentar disparates como a idéia de contrato social importada pela teoria política clássica, na medida em que os sujeitos que trocam são aqueles que podem dispor de seus bens, assim como de seus direitos.

    Assim, Paschukanis deve nos ajudar a pensar e sobretudo a avançar sobre si mesmo na reflexão sobre o tripé conceitual que utiliza: direito, propriedade e troca.

    Thiago Hoshino

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  4. Primeiramente, devo dizer que fico muito feliz com os dois comentários surgidos a meu texto: dois estudiosos da antropologia jurídica se sensibilizaram com a problemática marxista pachucaniana. Que maravilha!

    Assis,

    Concordo com você. Você toca em problemas do tempo presente, frente aos quais devemos nos colocar ativametne para compreendê-los: de que formas as "comunidades tradicionais" se relacionam com o capital? Considerando a totalidade como categoria para enteder o modo de produzir a vida hoje, de que outras categorias podemos lançar mão para mediar o debate antropológico-jurídico? Talvez, aqui, urja um estudo, muito aprofundado, da relação entre Mariátegui e o direito. As teses marxistas para o direito pouco têm se socorrido dos autores latino-americanos (afora o peruano, poderíamos pensar na obra de Che, do sub Marcos ou mesmo de Florestan); assim como as teses latino-americanistas pouco têm se socorrido dos marxistas (como quando nos baseamos em Dússel ou em Hinquelamert...)

    Tiago,

    Seu comentário é alentador. De fato, a proposta de Pachucânis é muito mais desafiadora que o ostracismo que lhe foi imposto faz supor.

    Vejo algumas questões problemáticas, na sua análise, ainda que não julgue que estejam erradas. Convido você a refletir comigo: a universalidade do direito é "cantiana", quer dizer, vale para todos os tempos e espaços. Em oposição (dualismo? dicotomia?) a ela, estão a historicidade (enfatizada por mim) e a localidade (enfatizada por você). Penso que a historicização e localização do direito contribuem para desfazermos a crença na sua existência antes ou depois do dilúvio capitalista (o jogo de palavras de Marx sobre os momentos antediluvianos ou pós-diluvianos são úteis aqui). Assim, eu não apostaria numa visão mais "ampla" de direito, mas numa sua transição "insurgente" e no seu perecimento.

    No mais, quanto à propriedade e à troca, creio que você toca em pontos-chave para a crítica antropológica e para a antropologia jurídica: não podemos tomar propriedade e troca hoje como o paradigma da "propriedade" e da "troca" ontem. Quiçá, nem propriedade e troca sejam (mesmo que, aqui, eu tenha de enfrentar o fantasma de Êngels e o do próprio Marx). Mesmo assim, eu contraditaria uma coisa de seu argumento (que vai contra o meu próprio): "apropriar" é o verbo para "propriedade", o que a torna mais dinâmica do que parece; no entanto, não há nada mais negativo do que a apropriação (a não ser, estranhamente, quando os movimentos sociais insistem no jargão de que devemos nos "apropriar" dos conhecimentos eruditos da sociedade capitalista ocidental...)

    No fim das contas, porém, penso que você traz dois problemas fundamentais que Pachucânis ajuda a refletir: propriedade e troca.

    Abraços a todos!

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  5. Obrigado, Pazello, pela postagem que não consegui fazer....eu e minhas limitações tecnológicas.

    Está estabelecido nosso contraditório. Vou tentar, então, sanear o feito!

    Duas questões de fundo: o conceito de direito e a natureza da propriedade.

    A meu ver, temos aqui duas perspectivas distintas, apena conciliáveis se adotarmos uma concepção de direito em sentido amplo e outra em sentido estrito. No primeiro front (latu sensu), defendo - com uma parcela dos pluralistas e antropólogos do direito - que uma das tarefas da teoria jurídica é justamente permitir, tensionar uma extensão do conceito de direito para abarcar e reconhecer outras formas não-estatais e não-burguesas de regulação/ordenação social. Ressignificar o "ut societas, ibi ius" é, neste caso, quebrar a espinha dorsal não só do monismo, mas também da idéia de autonomia do campo jurídico, como sistema autopoiético, como esfera destacada do real. Aqui historicizar e localizar o direito leva a pensar em outros direitos possíveis, mas escamoteados. No outro front, você alega que a historicização e localização têm por conseqüência o oposto: podermos imaginar que houve um tempo/espaço fora do direito e que também poderá haver mesmo lugar para além do "dilúvio capitalista". Devo concordar que, com o fim do capitalismo, seja viável pensarmos num direito não-burguês, mas parece-me algo messiânica a promessa de um não-direito, ou um fora do direito. O conflito é intimamente deste mundo e onde ele estiver, teremos de buscar mecanismos de administrá-lo.

    Sobre o segundo ponto, proponho uma tréplica: todo o movimento dialético da história está baseado em processos de apropriação e reapropriação em diversos níveis. Creio que o que precisamos disputar é a natureza e o regime (social? jurídico?) dessas apropriações. Nem toda apropriação significa privatização do mundo, e há formas coletivas necessárias de apropriação à produção e reprodução da vida concreta. Historicizar é também isso: não encontraremos exemplos históricos (com exceção de algumas fabulações pré-concebidas) de modos de organização social que não tenham construído de alguma forma relações de apropriação - ainda que não exclusivas e não-individualistas - ou de pertencimento. Na mesma linha, trocar é humano: temos que pôr em cheque o que se troca e como se troca. Enfim: a fetichização.

    abraços

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