Acabo de receber o livro “O discreto charme do direito burguês: ensaios sobre Pachukanis” (lançado em 2009), enviado por seu organizador, o professor Márcio Bilharinho Naves. Trata-se de uma coletânea de textos que têm por intuito discutir a obra de um dos principais, senão o principal, teórico marxista do direito. Não bastasse a importância do debate jurídico soviético, o livro cumpre ainda o papel de trazer a público a tradução de um novo texto de Pachucânis para o português – “A teoria marxista do direito e a construção do socialismo” (1927). Livro de primeira importância para a biblioteca da teoria crítica do direito brasileira e que merece maior acesso, infelizmente pouco possibilitado pela restrita circulação das editoras universitárias em nosso país.
Ao ler um de seus textos, surgiu-me a idéia de problematizar um dos comentários ali presentes, certamente marginal e escassamente desenvolvido por seu autor. Quero discutir uma afirmação de Steve Redhead, no artigo “O discreto charme do direito burguês: uma nota sobre Pachukanis”. Este texto, de 1978, trata de fazer uma crítica contundente à proposta pachucaniana, especialmente tomando em conta a autocrítica a que foi submetido o jurista soviético após a hegemonia estalinista, na década de 1930, e que levaria o próprio Pachucânis ao cadafalso. Devo dizer, ainda, que os comentários de Redhead receberam uma respectiva resposta de Bilharinho Naves, a qual se encontra na seqüência da publicação, sob o título de “Observações sobre ‘O discreto charme do direito burguês: uma nota sobre Pachukanis’”.
Pois bem, Redhead, professor britânico, diz que o pensamento de Pachucânis “aproximou-se perigosamente da noção antropológica burguesa segundo a qual os direitos primitivo, antigo e feudal foram apenas o direito burguês em uma forma menos desenvolvida; no caso de Pachukanis, é evidente, com a importante nota distintiva de que essa forma deveria ‘extinguir-se’ no comunismo”.
Aqui, o professor britânico oferece as mais pesadas armas para jogarmos na vala comum do determinismo histórico o mais criativo dos críticos do direito na Rússia revolucionária, junto a uma legião de divulgadores vulgares do marxismo. Referidas armas são o etnocentrismo antropológico seguido de um evolucionismo linear e unicausal.
De fato, toda a antropologia moderna – basta lembrarmos os nomes de Malinóvisque, em seu “Crime e costume na sociedade selvagem”; Marcel Maus, no “Ensaio sobre a dádiva”; ou Radclife-Broun,* em “Estrutura e função na sociedade primitiva” – preocupou-se em caracterizar as sociedades primitivas ou antigas (estas referentes às civilizações clássicas ao contrário das primeiras, o que já se pode apresentar como uma classificação etnocêntrica, como se faz perceber) pelo fato de possuírem organização social própria, a qual não precisava ser imputada como “involuída”, involução em que se sobressairiam suas ausências. Assim, aparece como elemento “positivo” (no sentido de existente e presente, e não inexistente ou ausente) o direito: o direito dos polinésios, dos trobriandeses ou das tribos australianas ou africanas.
Ocorre, porém, que Pachucânis deu importante passo para desfazer tal confusão, ao contrário do que o comentário acima quis demonstrar.
Pachucânis nota a especificidade burguesa do direito. Trocando em miúdos, seguindo o método de Marx, em “O capital”, o soviético encontra a resposta para a pergunta “o que é o direito?” Mas esta resposta não se destina a somente desbravar um objeto da realidade, como se fosse um fenômeno qualquer, mas antes demonstrar a relação intrínseca entre o modo de produção capitalista e o direito. Assim, a resposta à questão é, grosso modo: o direito é um conjunto de relações sociais que se estabelecem entre sujeitos proprietários que trocam entre si suas mercadorias tornadas equivalentes. Pachucânis aprofunda a resposta de Stuca, outro eminente jurista soviético, para quem o direito era um conjunto de relações sociais sem mais e, ainda, opõe-se ao psicologismo (direito como representação) e ao normativismo (direito como norma) jurídicos que vicejavam em sua época.
Notar a especificidade burguesa do direito, contudo, não é sinônimo de imputação de uma ausência às sociedades anteriores ao capitalismo, mas antes demonstrar o avanço da barbárie sob a égide do capital. Sem recair em idealismo e romantismo, Pachucânis pôde reconhecer o convívio de outras formações sociais com o direito, já que este implica a troca mercantil. Ora, troca mercantil não é uma especificidade do modo de produção capitalista. No entanto, a troca mercantil do modo de produção capitalista tem suas especificidades e, dentre elas, deve-se ressaltar a lei do valor ou a abstração da equivalência.
Esta reflexão pode ser feita no âmbito do direito do trabalho. Por exemplo, o direito burguês alicerça-se na troca de mercadorias equivalentes tais quais a força de trabalho e o salário. Aqui, força de trabalho e salário são abstratamente equivalentes. Por um tempo de trabalho que produz uma certa quantidade de produtos troca-se um montante de dinheiro que recebe a alcunha, em seu todo, de salário. Entretanto, a crítica à economia política de Marx enunciou que esta troca não é exatamente equivalente, apesar de se valer como tal. Tampouco, é falsa, já que se trata de uma aparência forjada pelas relações de produção. A troca de equivalentes é uma distorção do fenômeno real que precisa das relações jurídicas para se concretizar. Neste sentido é que a especificidade burguesa deste direito é a relação de troca de mercadorias equivalentes entre sujeitos proprietários livres. Mas isto não quer dizer que não tenha havido regulação possível das relações de troca no mundo do trabalho antes da consolidação das leis trabalhistas (para fazer um trocadilho com a história do direito brasileiro).
Dessa forma, a obra de Pachucânis, na esteira das interpretações marxistas do direito, apresenta um grande salto qualitativo, o qual se verifica por ser portadora de uma grande “descoberta”: a historicidade do fenômeno jurídico. É claro que a “descoberta” deve ser considerada entre-aspas, uma vez que a construção da universalidade do direito é um fenômeno moderno ou, se não moderno, ao menos ocidental. Um direito, com suas decantadas dicotomias, existente desde as mais remotas eras em que o homem se organiza é a grande justificativa que os juristas, hoje, utilizam para exercer sua dominação de classe. Ubi societas, ibi ius – eis o velho brocardo romanístico que se apresenta como mito fundador do direito, pois “ali onde houver sociedade, aí haverá direito”. Talvez a organização política de romanos, europeus medievais ou polinésios, melanésios ou iroqueses não seja a mesma coisa, não tenha uma equivalência abstrata e, por isso mesmo, não tenham a mesma “natureza” que a do direito burguês e seu discreto charme, o que, na inspiração pachucaniana, é uma indiscreta barbárie política. Ou seja, está a historicidade de Pachucânis para além de o etnocentrismo assim como o universalismo de Quélsen, nos estreitos limites de uma perspectiva etnocêntrica.
* A estranha grafia para os nomes de Pachukanis, Malinowski, Mauss, Radclffe-Brown ou Kelsen se deve ao pessoal entendimento político da necessidade de incorporação dos estrangeirismos à língua portuguesa como signo de insubmissão ao etnocentrismo lingüístico (em geral, eurocêntrico, mas anglófono, em especial) e de auto-afirmação cultural.