Por Assis da Costa Oliveira
Ilha do Arapujá, no início do desmatamento. |
As máquinas desmatando a ilha. |
Segundo o licenciamento
ambiental da obra da Usina Hidrelétrica de Belo Monte, o termo técnico para
esse ato é “supressão da massa vegetal” do rio Xingu, procedimento “necessário”
para aumentar a velocidade de escoamento da água e reduzir sua acidificação
devido a decomposição da madeira, assim “beneficiando” a produção da futura
energia elétrica. Dito assim, parece até suavizar a atrocidade de tal operação.
Trata-se de uma “massa vegetal” que representa ilhas, florestas e animais que
serão suprimidos para os, agora, “entulhos” darem lugar aos intentos humanos de
produção da “energia limpa” de Belo Monte, além das famílias ribeirinhas e
indígenas que lá habitam serem indenizadas ou remanejadas para outros locais,
bem longe do rio.
A manifestação do Fórum de Defesa de Altamira. |
No ato ocorrido dia 30 de
agosto, Raimunda Gomes da Silva, moradora antiga de Altamira, sintetizou bem o
que é essa dimensão afetivo-simbólica de habitar o território, da “amizade com o
Arapujá”: “Eu vim hoje aqui dá esse abraço no Arapujá, porque daqui do Arapujá
eu só vou levar lembranças boas, já tirei o meu sustento daqui. Hoje pra mim
ver o Arapujá morrer, pra mim não é uma despedida, é uma lembrança que eu vou
guardar comigo, de uma ilha que já foi minha amiga de suprir minha necessidade
por conta do berço que ela guardava que era o peixe. Hoje, ela se encontra
nesse desespero da morte, mas eu queria dizer que ela vive para sempre no meu
coração”.
O significado e o
sentimento da amizade, do abraço, do berço e da memória, tal como relatados por
Raimunda, revelam o quanto para os moradores locais tal ilha não era (e é)
apenas um elemento físico-biológico do meio ambiente amazônico, mas parte
daquilo que compreendem como seu patrimônio cultural, um “outro sujeito”
portador de referência à identidade, à ação, à memória dos seus modos de criar,
fazer e viver, como reza o artigo 216 da Constituição Federal de 1988, de suas
práticas cotidianas e históricas de vivenciar o rio Xingu e a cidade de
Altamira.
Cartazes e cânticos, no término do abraço simbólico. |
Como bem nos lembra Jean
Hébette, trata-se de uma forma de organização da vida social que é radicalmente
confrontada e desestruturada pela dinâmica organizacional dos grandes projetos,
mas cuja população dita “impactada” aprende, nesse processo, a resistir e a se
organizar, a criar estratégias de visibilizar a dimensão afetivo-simbólica do
território, de sua conversão em patrimônio cultural e em legado de seus
direitos humanos, de seus sentidos éticos de humanidade e de justiça.
Vai-se o Arapujá, mas ele
não morre, resiste na memória das pessoas e persiste no questionamento dos fins
do modelo de desenvolvimento que o matou: Valeu a pena? Para quem e com que
custos? É preciso lembrar de uma reflexão contida no filme Narradores de Javé,
cuja comunidade fictícia ironicamente encontrou o mesmo destino que o Arapujá,
e que num certo momento um morador do vilarejo de Javé vaticina: “uma terra
vale pelo que produz, mas pode valer mais ainda pelo que esconde”. Toda uma
dimensão afetivo-simbólica foi alojada num canto esquecido da política de
desenvolvimento que cristaliza o processo de implantação de Belo Monte. Os que
sabem olhar – e sentir – tal dimensão não tardam em anunciar seu valor e o
valor cultural do território; os que não sabem – ou não querem – ver tal
dimensão podem, enfim, continuar a dormir no “berço esplendido” da injustiça
socioambiental.
Nenhum comentário:
Postar um comentário