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quarta-feira, 25 de março de 2015

Expulsão de agricultores para Barragem do Guapiaçu repete prática recorrente da ditadura militar

Fabricio Teló *
Doutorando em Ciências Sociais pela CPDA/UFRRJ

Não seria a primeira vez que os agricultores da Bacia do Rio Guapiaçu, em Cachoeiras de Macacu, seriam expulsos de suas terras, caso venham a sê-lo em função da construção da barragem projetada para ser construída neste rio, represamento este que tem por objetivo atender à necessidade de abastecimento hídrico gerada pelo Complexo Petroquímico do Rio de Janeiro (Comperj), localizado no vizinho município de Itaboraí, sobretudo em função da grande quantidade de água utilizada para o refino do petróleo.
Audiência sobre a barragem, em março de 2015. FOTO: Iby Montenegro de Silva.

Manifestação de 1989 contra a primeira tentativa de fazer a barragem (Jornal do Brasil, edição de 02/10/1989, p. 5) - Documento cedido por Alberto Santos
Além de serem responsáveis por uma parcela significativa dos alimentos consumidos na capital fluminense (a paisagem das localidades demonstra bem isso), os atingidos têm um histórico de muita luta e sofrimento para a conquista da terra onde vivem e trabalham, a maioria em pequenos lotes com agricultura de base familiar. Logo após o golpe militar (1964) muitos tiveram que enfrentar a repressão política contra os que participaram da ocupação de 1963 da Fazenda São José da Boa Morte (vizinha da região a ser alagada), desapropriada por João Goulart em janeiro de 1964 e devolvida ao proprietário durante o regime militar. Cachoeiras de Macacu era observada pelos militares com mais atenção em função das diversas organizações de esquerda lá atuantes. A repressão, portanto, se dava de maneira mais intensa.
Muitos dos agricultores que participaram dessa ocupação migraram para a Fazenda Quizanga, que pertencia ao Cortume Carioca, uma empresa multinacional de curtição de couro, que também tinha terras em Magé. Nessa fazenda trabalhavam como colonos. No ano de 1966, porém, o Instituo Brasileiro de Reforma Agrária (IBRA) necessitava encontrar uma área para reassentar um conjunto de famílias que precisavam sair das terras da localidade de Imbé, em Campos dos Goytacazes, uma das várias áreas desapropriadas no pré-64 e devolvidas no governo Castelo Branco. Esta área também foi palco de intensa repressão, que se iniciou ainda antes do golpe, em função do conflito fundiário que ali se desenvolveu.

Repetição da prática de expulsão
Dentre as áreas escolhidas para efetuar esse reassentamento, que foi chamado de “Conjunto Rural do Guapiaçu”, estavam as fazendas Quizanga, e Santo Antônio do Guapiaçu, esta última pertencente a Arturo Vecchi (razão pela qual a localidade hoje se chama Vecchi). Foi, então, efetuada a desapropriação dessas áreas e o despejo das famílias que ali estavam residindo e trabalhando (Decreto 58.161, de 06/04/1966).
De acordo com o Jornal Correio da Manhã de 11/10/1966, foram cerca de 2500 famílias despejadas pelo Ibra. Embora este possa ser um número superestimado, é possível perceber que a quantidade de pessoas expulsas não foi pequena. Os agricultores da região de Papucaia até hoje lembram dos temidos "General Saraiva" e "Tenente" Amauri Prado, da Guarda Rural do IBRA. Eles expulsavam de maneira violenta os posseiros que, de acordo com seus critérios, estavam em situação irregular. Incendiavam casas e lavouras. A violência desses agentes era tão intensa que foi necessário o governador da época intervir solicitando-lhes que moderassem. Percebe-se, nesse sentido, uma política contraditória na medida em que, para reassentar famílias expulsas de um lugar, expulsam-se outras já instaladas de outro. Isso não impediu, contudo, que boa parte das famílias expulsas da Quizanga ficassem nas proximidades. Algumas conseguiram se estabelecer em localidades vizinhas, como Serra Queimada e adjacências, áreas a serem inundadas caso o projeto da barragem venha a cabo.
Expulsão de famílias da Quizanga
 (
Correio da Manhã, edição de 11/10/1966) - 

Documento cedido por Alberto Santos
Ocupações e repressão
Embora o período mais cruel tenha sido entre o final dos anos 1960 e o início dos anos 1970, ainda nos anos 1980 se tem notícias de violências sofridas pelos camponeses. Em 1983, um grupo de 12 lavradores foi preso, acusado de “invasão de terras” no Vecchi, localidade esta reconhecida pelo próprio Serviço Nacional de Informações, como uma área prejudicada pela omissão do Estado e pelas divergências entre as diferentes leis que interferiram nas questões fundiárias ao longo do tempo.
Não bastassem esses diversos processos de expulsão, esses agricultores carregam ainda o histórico de já terem sido obrigados a resistir a uma primeira tentativa de construção dessa barragem. O projeto existe desde 1985, quando a Cedae tentou implementá-lo na justificativa de criação de um reservatório hídrico. A polêmica se estendeu até 1989, quando atingiu um ápice, mas os agricultores se mobilizaram e conseguiram barrar o projeto.

Na área em que está projetado o alagamento da barragem, portanto, temos famílias que vêm de diferentes trajetórias, a maioria marcadas pela vulnerabilidade e por processos de expropriação, que se intensificaram com a ditadura. As que vieram do Imbé, por exemplo, já estavam lá porque haviam sido expulsas de outras terras antes, como é o caso das que foram despejadas da Fazenda do Largo, em São João da Barra, ou de antigos colonos do café oriundos de Minas Gerais e do norte fluminense que se obrigaram a buscar outras formas de sobreviver em função da crise cafeeira. Os que já estavam em Cachoeiras de Macacu enfrentaram a perseguição militar em função do conflito da Fazenda São José da Boa Morte. Estes agricultores, depois de cinco décadas, correm o risco de serem novamente expulsos de suas terras, o que mostra a constante vulnerabilidade a que estão sujeitos os trabalhadores do campo no Brasil, sobretudo aqueles a quem a terra não é objeto de herança, mas de conquista.


* O autor é pesquisador no projeto “Conflitos e repressão no campo no Estado do Rio de Janeiro (1946-1988)", coordenado pela Profa. Dra. Leonilde Medeiros – FAPERJ e CEV-Rio

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domingo, 11 de março de 2012

Carta de mobilização nacional do MAB

Enviado por Leandro Scalabrin, advogado popular, de Passo Fundo - Rio Grande do Sul



Estimado Companheiro/ a

Na próxima semana, milhares de atingidos e atingidas por barragens se mobilizarão em diversas capitais brasileiras para reivindicar seus direitos, denunciar o atual modelo energético e apoiar a luta dos trabalhadores do setor elétrico. É a jornada nacional de lutas que comemora o 14 de Março: Dia internacional de luta contra as barragens, pelos rios, pela água e pela vida.

Apesar das milhares de hidrelétricas construídas e da expulsão de outras milhares de pessoas de suas terras e moradias, o Estado brasileiro não tem uma política de tratamento às populações atingidas, ficando a cargo de cada empresa construtora a forma pela qual as famílias serão tratadas. Como o interesse das empresas é o lucro, tentam negar ao máximo os direitos dos atingidos.

Entre as reivindicações do Movimento dos Atingidos por Barragens nesta jornada de luta, estão:

1. Pelos direitos dos atingidos:

a) Que seja criada uma política adequada de reparação das perdas e prejuízos da população atingida, com direito a reassentamento adequado com moradia, assistência técnica, créditos, verba de manutenção, infraestrutura.

b) Que se estabeleça um fundo para os atingidos por barragens com aporte de recursos para atender toda a política de reparação e a pauta dos direitos dos atingidos.

c) Propomos que, de imediato, seja criado um órgão ligado ao sistema ELETROBRÁS responsável para tratar, cuidar e implementar a política de reparação e tratamento das populações atingidas, com ampla participação dos atingidos.

2. Não às barragens: seguimos lutando contra a construção de Belo Monte e também de outras barragens socialmente injustas e ambientalmente irresponsáveis.

3. Não à privatização da água e da energia: lutamos pela renovação das concessões do setor elétrico, para não deixar que privatizem o que ainda é estatal. Somos contra a privatização da água, que vem ocorrendo em diversos municípios brasileiros.

4. O preço da luz é um roubo: reivindicamos mudanças na política energética para baixar as tarifas para todas residências brasileiras.

Para nós, a solidariedade é a base da construção de um mundo mais justo e igualitário, por isto, gostaríamos de contar com seu indispensável apoio neste momento tão importante pra nós atingidos e atingidas por barragens de todo o Brasil. Sua solidariedade nos dará força e ânimo para podermos avançar na conquista de nossos direitos e no fortalecimento da luta popular.

Um forte abraço

Movimento dos Atingidos por Barragens - MAB 

Obs: Solicitamos que envie manifestação de apoio por escrito para MAB
Comunicação: imprensa@mabnacional.org.br

segunda-feira, 14 de março de 2011

"E todo pranto forma a imagem do homem": rápidas notas sobre Japão, Haiti, MAD e MAB


Uma semana se inicia e outra começa, mas uma velha canção me vem à cabeça. "E todas as formas da natureza/ Mostravam/ A grandeza do mundo/ Em lágrimas". A grave e rouca voz de Zé Ramalho entoa uma das imagens de nosso tempo. Mesmo que devamos ser otimistas na ação, a razão dá seus mais claros sinais de que é o pessimismo seu princípio reitor.

Em breves palavras, gostaria de relembrar quatro acontecimentos, puxados pelo primeiro deles, palpitante nas últimas horas. No Japão, alardeia a mídia, um tsunâmi atinge a costa nordeste e oferece aos olhos dos meios de comunicação de massa um trágico espetáculo. O imponderável assumiu o timão desta navegação de cabotagem e, a nós, o que resta fazer? A princípio, nada. Será isto mesmo? A Liga Bolchevique Internacionalista denuncia: "Governo imperialista tenta esconder acidente nuclear". Para alguns, a terminologia e a base teórica são ultrapassadas; para outros, não só o imperialismo esconde suas mazelas (ver discussão na página do CMI - Centro de Mídia Indepente). Independentemente disso, porém, o fato natural impresível chocou-se, e com grandes ondas, em uma usina nuclear. Nessa medida, já não é mais o incalculável que rege os fatos, mas a razão humana.

A tragédia japonesa, por outro lado, faz lembrar que mesmo um país com grandes recursos tecnológicos e alto desenvolvimento econômico pode sofrer sérios reveses, como se vê em qualquer noticiário dos últimos dias. Se assim é lá, imaginem, leitores, a situação do Haiti! No número 42, de janeiro de 2011, Le Monde Diplomatique Brasil publicou um artigo sobre a situação do país após o terremoto de um ano atrás, em janeiro de 2010. Intitulado "Entre Deus e as ONGs", nele se lê:

Campo de golfe de Pétionville, um lugar outrora bastante frequentado por alguns. Trinta mil pessoas encontraram refúgio ali. A vantagem sobre os outros campos de desabrigados: os paisagistas, preocupados com o conforto dos golfistas, adornaram soberbas áreas de sombra – muito eficazes para proteger os novos usuários do sol escaldante que lancina entre uma pancada de chuva e outra – e amplas alamedas que facilitam o deslocamento, enquanto o caos reina em outras partes. As trilhas são margeadas por muros de sacos de areia para guiar a água das chuvas devastadoras. Em Pétionville, foram montadas algumas salas de aula improvisadas, uma clínica médica para crianças, pontos de acesso à água suficientes para todos e um cibercafé que funciona alguns dias em um dos espaços de convivência. Os refugiados ali realojados não estão muito longe dos bairros de origem.


E assim o velho local de divertimento das elites nacionais e estrangeiras acaba sendo o campo de "concentração" da lancinante miséria haitiana, tão constrastante com a riqueza de seu povo e com o pioneirismo de sua luta de libertação nacional, já que, historicamente, foi a primeira e única nação a proclamar sua independência pelas espadas e vozes dos escravos negros para ali levados pela mão do colonialismo francês e mundial, em 1804. O campo de golfe, desse modo, reproduz o Haiti do pré-terremoto e o agrava:

No tempo seco, as fezes formam o essencial das partículas em suspensão. Assim como a água suja, transportam o bacilo do cólera, que acaba de voltar à ilha depois de uma ausência de quase um século. Doença de fácil prevenção – ter acesso à água limpa e lavar as mãos com frequência reduz o risco –, ela faz estragos aqui. Em meados de dezembro, quase cem mil pessoas foram contaminadas, 34 mil hospitalizadas. Mais de 200 mil mortes foram contabilizadas. Até esse período, Tomas, o ciclone que atingiu a ilha em 5 de novembro, ajudou na propagação da bactéria. Por todos os lados, fossas sépticas transbordam e misturam oconteúdo às imundices trazidas pelas tempestades. Receptáculo de águas furiosas e lixo que elas levam, os campos de desabrigados se transformaram em imensas fossas infestadas de vibriões coléricos.


Mas outros predadores também os rodeiam: os proprietários de terras. Os terrenos vazios agora valem ouro e a especulação imobiliária vai de vento em popa. A destruição de muitos arquivos oficiais após o terremoto, a incerteza quanto aos títulos de propriedade e a ausência de um cadastro nacional prometem ensejar inúmeros conflitos.


E eis que, uma vez mais, o que é totalmente imprevisível acaba acionando as turbinas "nucleares" e "essenciais" do que é mais do que sabido: o modo de produzir a vida continua o mesmo, em suas explorações e resistências.


O Japão e o Haiti nos fazem lembrar o Brasil também. Por quê? Em nosso país, todo ano próximo ao verão, grandes enchentes vêm assolando o território nacional. Mais uma vez, o imponderável se assenhoreia das interpretações e estas, mui ciosamente, esquecem de suas conseqüências demasiadamente humanas. As intensas chuvas disseminadas pela televisão que atingiram o Rio de Janeiro quase nos fazem deixar de observar que, em 2008, em Blumenau, no estado de Santa Catarina, o desastre "natural" mobilizou a população local que construiu o seu movimento, o MAD - Movimento dos Atingidos pelo Desastre. Ir a Blumenau, hoje, e ver que muito pouco se resolveu é racionalmente assustador.

Mais do que os desastres midiáticos (que, apesar de midiáticos, não deixam de ser desastres), porém, vem à tona, também, a luta que se comemora nesse dia 14 de março: o dia de luta contra as barragens. A partir da organização popular, o MAB - Movimento dos Atingidos por Barragens completa 20 anos com toda a pujança e continua levantando sua bandeira, em especial nos dias de hoje em que Belo Monte desponta como usina hidrelétrica em plena bacia amazônica, às margens do rio Xingu. Será a terceira maior do mundo e se apresentará como a consolidação do modelo energético brasileiro, o qual, aliás, venceu as últimas eleições presidenciais. Os militantes do MAB, hoje mesmo, estão organizando encontros e manifestações, como a grande pesacaria, em Altamira, no Pará, na beira do Xingu (conferir informe na página do MST: "14 de março é o dia de luta contra as barragens"). Além disso, para abril já está se preparando o 1º Encontro Nacional das Mulheres Atingidas por Barragens, o que dá uma demonstração da necessidade de pensarmos as lutas sociais a partir dos três cortes estruturais do sistema-mundo colonial, moderno e capitalista, como viemos empreendendo nas últimas postagens (ver: "As mulheres, sua resistência e a totalidade: ou quando as compositoras femininas compõem a sua própria história" e "O giro descolonial e o direito: os três cortes estruturais da colonialidade do poder"; ver também a mais recente postagem de Assis Oliveira, aqui no blogue: "Notícias do front (ou da fronteira)".

Com tudo isso, continua a soar a canção, confirmando o pessimismo da razão ao qual se deve acompanhar o otimismo da ação, ante o imprevisível da natureza e o mais que esperado do humano: "No momento em que a lua ia se elevando/ E todo pranto/ Forma a imagem do homem".