Jacques Távora Alfonsin*
Texto publicado no RS Urgente e IHU Notícias
No dia 07 deste julho, um juiz
federal devolveu para o foro de Cruz Alta o processo nº
5003011-04.2014.404.7116, na Justiça Federal e nº 011/1.14.0001672-6 , na
Justiça Estadual, relativo a uma ação de reintegração de posse lá proposta
contra dezenas de famílias de sem-terra, que haviam ocupado parte de um imóvel
rural situado naquele município. Ele recebera o tal processo por força de o
INCRA, uma autarquia da União legalmente encarregada de promover a reforma
agrária no país, ter manifestado interesse na aquisição da área em
litígio. Como se sabe, sempre que um ente público da União intervém num
processo judicial que corre perante a Justiça Comum, esse processo tem que ser
julgado pela Justiça Federal (art. 109, inc. I da Constituição Federal).
As famílias de sem-terra, então,
voltaram a estar sob o risco de serem desapossadas. Por mais que este tipo de
acontecimento se repita em todo o país, e algumas execuções de reintegração de
posse terminem matando gente, as ordens judiciais de desapossamento das
famílias sem-terra protagonistas dessas ocupações, são ainda bem raras as
liminares, as sentenças, os acórdãos dos tribunais, as providências
administrativas interessadas em investigar as causas de um fenômeno social
dessa magnitude. Mesmo que ela revele uma injustiça social conservada e
reproduzida por mandados judiciais desse tipo.
Embora não falte ao ordenamento
jurídico do país disposições expressas sobre a forma e o conteúdo dos direitos
que identificam o uso lícito e socialmente legítimo da posse sobre terra, seja
ela urbana seja rural, a superficial visão de uma certidão fornecida pelo
Registro de Imóveis que ateste domínio ou outro direito sobre uma determinada
fração desse bem, tem sido julgada suficiente para fundamentar a expedição do mandado
liminar de reintegração contra as/os sem-terra.
O fato mais do que notório da
pobreza e até da miséria de que padecem milhões de brasileiras/os pobres no
meio rural do Brasil provocou mudança significativa do nosso ordenamento
jurídico, ainda em 1964, em pleno regime militar, por improvável que pareça,
com o Estatuto da Terra e depois, em 1988, com a Constituição Federal. Para a
implementação da política pública de reforma agrária, então, detalhada também
por outras leis, ficou encarregado o INCRA. Não por outra razão, a tal política
figura na própria denominação dessa autarquia.
Assim, que motivo poderia existir
para o juiz federal devolver o processo para a Justiça Comum, em Cruz Alta? –
No seu despacho ficou registrado o seguinte: “… a simples intenção do INCRA em
adquirir o imóvel por meio de compra e venda permite, no máximo, o
reconhecimento da existência de interesse patrimonial, social ou econômico, mas
não jurídico, o qual pressuporia, ao menos, a demonstração da efetiva aquisição
do bem, nos termos do art. 42, § 2º, do CPC.”
Observe-se o tamanho desse absurdo.
O juiz não reconhece nem interesse social (isso para o dito despacho nem é
“jurídico”…) para uma autarquia da União, cujo principal encargo público é o de
garantir, justamente, o tal interesse jurídico sim e por força de lei, para
promover a reforma agrária. Não é interesse jurídico o interesse social de
garantir o acesso à terra? E mais: ele só reconheceria legitimidade para a
mesma autarquia se ela já tivesse adquirido a terra em disputa.
Mas será que não dá para perceber
que, se isso tivesse acontecido, a própria ação possessória nem teria sido
ajuizada?
Não dá para perceber que o INCRA,
com poder legal, jurídico sim, até para desapropriar imóveis rurais, está se
propondo adquirir a terra pagando em dinheiro, tal a parafernália burocrática
que enfrenta, no país inteiro, em centenas de ações de desapropriação de terra?
Sujeitas a um tipo de defesa latifundiária, muitas vezes sustentada apenas na
lerdeza histórica do devido processo legal que, como se sabe, protege bem mais
a propriedade de um, mesmo ao custo da vida de multidões? A repressão ao
descumprimento da função social da propriedade por ser “social” também não é
jurídica?
Não dá para perceber que uma decisão
dessas proíbe ao INCRA conferir um mínimo de eficácia aos primeiros artigos da
Constituição Federal (o 1º, em seus incisos II (cidadania) e III (dignidade da
pessoa humana) e o 3º em seu inciso III (erradicar a pobreza e a marginalização
e reduzir as desigualdades sociais e regionais)?
O tal despacho procura apoio também
em precedentes jurisprudenciais do próprio Superior Tribunal de Justiça. O que
causa espanto, entretanto, a juízes/as com um mínimo de sensibilidade social, é
o fato de que, exatamente pela repetição trágica das sucessivas ocupações de
terra, que não ocorrem somente aqui no Estado, estão elas a exigir, como muito
bem previu o PNDH-3 aquilo que a hermenêutica constitucional costuma
identificar como necessária “interpretação de reajuste”.
No caso – e aí está o incrível
paradoxo -, esse reajuste pode ser fundamentado até em jurisprudência anterior
à própria criação do STJ e emissão de suas Súmulas, das quais se socorreu o
infeliz despacho.
A história comprova: quando o
ordenamento jurídico do país admitia a escravidão (leia-se em Lenine Nequete, O
Escravo na jurisprudência brasileira, Porto Alegre: 1988, p.261, o seguinte
precedente judicial em favor da liberdade dos escravos): “as disposições
endereçadas ao bem de algumas pessoas, por utilidade pública, humanidade ou
outro motivo semelhante, impunha-se interpretá-las com a extensão adequada a
favor desses motivos (…) e quando houvesse obscuridade na lei, o remédio era
entendê-la no sentido mais conforme com a intenção do legislador”. Isso
aconteceu em pleno Brasil Império (1876).
Ainda que seja temperada a parte
final dessa decisão judicial já que, modernamente, em vez de intenção do
legislador, a doutrina constitucional se preocupa em dotar a interpretação das
leis nos próprios princípios constitucionais, ao juiz que redigiu esse despacho
faltou julgar o quanto de “utilidade pública” e “humanidade” (!) deveria ter
sido cogitado para que “a extensão adequada a favor dos motivos” da intervenção
do INCRA no processo estava presente.
Parece não restar nenhuma dúvida. Um
despacho judicial, como o prolatado nesse caso de Cruz Alta, confirma o que já
era sabido há muito tempo. Em 1987, durante uma conferência da OAB
nacional realizada em Belém do Pará, justamente com o objetivo de se agilizar o
respeito devido aos direitos humanos fundamentais do povo pobre, aí se
incluindo as/os sem terra com direito à reforma agrária, transitava no
auditório a seguinte tese: “é preciso garantir-se que a reforma agrária,
atualmente impedida pela interpretação da lei, seja inviabilizada também pela
sentença.”
É o que está acontecendo agora
quando um juiz julga da forma como aconteceu neste caso. Não é que ele ataque a
causa dos conflitos que lhe foram submetidos e, sobre os mesmos, faça justiça.
Na medida em que impede a ação pública tendente a garantir o acesso à terra de
quem à ela faz jus, em vez de dar solução legal e justa a um conflito social,
ele não oferece outra saída as vítimas desse conflito senão a de fazer justiça
pelas próprias mãos.
(*) Procurador do Estado aposentado,
Mestre em Direito pela Unisinos, advogado e assessor jurídico de movimentos
populares.
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