terça-feira, 19 de julho de 2011

Ah, desculpe, achávamos que fossem gays ou mendigos.

Thiago Arruda

Ah, desculpe, foi um engano: achávamos que fosse um mendigo. Foi isso que disseram, no ano de 1997, em Brasília, os jovens de classe média que assassinaram o índio pataxó Galdino Jesus dos Santos. O caso ganhou ampla repercussão. O grupo simplesmente resolveu atear fogo ao corpo do homem que dormia sob o abrigo de uma parada de ônibus da cidade. Sadismo e ódio de classe lhes ofereceram motivos suficientes para isso.

Na última sexta-feira, 15 de julho de 2011, um novo engano. Pai e filho são agredidos brutalmente em São João da Boa Vista, cidade localizada no interior de São Paulo. Os agressores julgaram que eles eram gays; julgaram, e condenaram, mesmo diante da resposta negativa das vítimas. O pai teve parte da orelha cortada. Os autores não foram presos, são desconhecidos.

O que há de comum entre o gay e o mendigo? Algo que autoriza a violência. Algo que, aos olhos de alguns, pode justificá-la. O que o pequeno engano cometido pelos jovens brasilienses e pelo grupo de paulistas revela é que alguns – alguns muitos – são a ralé, uma sub-raça, um tipo inferior e que, portanto, devem apanhar, ou mesmo morrer. Para que aprendam, ou simplesmente para que seus carrascos possam dar vazão a toda a raiva que a mera existência desses vermes lhe provoca, ao poluírem o seu mundo. A essas criaturas, não resta humanidade, muito menos direitos.

É profundamente emblemático que um dos agressores paulistas tenha sido tão claro ao afirmar: “agora que liberou, vocês têm que dar beijinho”. Quantas vezes não escutamos um “não sou preconceituoso, apenas tenho o direito de não ver dois homens [ou duas mulheres] se agarrando” ou algo parecido? No fundo, trata-se da invenção absurda do direito de que o outro não faça, não seja, não exista. É o direito que o homofóbico proclama a si mesmo de que o outro se esconda, envergonhe-se de si e da forma como ama.

É daí que vem o seu direito de atacar. Cortar a orelha do “culpado”, aliás, é um castigo antigo. Em algumas civilizações, o ato significava que o acusado não ouvira bem, não compreendera bem a “voz da lei”. De fato, os que não se submetem a heteronormatividade esquivam-se de dar ouvidos ao imperativo hegemônico da sexualidade. Frequentemente, são castigados por isso; pelos homofóbicos que proclamam sua lei, proclamam o direito de que o outro não exista e tentam fazê-la cumprir a ferro e fogo. É assim que a relação se inverte: as vítimas são punidas; os vitimizadores punem e permanecem impunes, espalhando ódio por praças, igrejas...

O machismo nunca se deu bem, é verdade, com intensas demonstrações de carinho entre pai e filho. Logo, não é tão estranho que essa relação seja confundida com a relação entre namorados do mesmo sexo. No entanto, o mais grave é que há aqueles cuja revolta, declaradamente ou não, dirige-se contra a incapacidade dos agressores em diferenciar gays de pais e filhos – ou mendigos de não-mendigos (não que os índios sejam bem tratados, não o são). Algo como “que absurdo, esses loucos atacando cidadãos de bem”. Preserva-se, assim, um silêncio; no espaço não-pronunciado, persiste, firme, forte e bruta, a autorização da violência contra os seres sub-humanos que entopem os bancos das praças ou fazem sexo porcamente: se fossem mesmo, se não se tratasse de um engano, se fossem o que achavam que eram, não faria diferença. O problema permanece. Não se deveria a isso toda a repercussão na mídia que teve o caso da última sexta-feira? Quantos gays, lésbicas, travestis e transexuais são agredidos todos os dias no Brasil? Os relatos são constantes; a repercussão, bem menos intensa. O fato de a TV Globo ter, recentemente, censurado a participação de um casal gay na trama de uma das suas novelas é também revelador nesse sentido.

Cuidado. Você pode ser confundido com um gay, uma lésbica, ou um mendigo por aí. Portanto, comporte-se.



3 comentários:

  1. Parabéns pelo texto, Thiago. Gostei muito mesmo e reproduzi no meu blog. Gde abraço.

    ResponderExcluir
  2. Acho que a ainda á muita água a rolar antes que essa situação melhore. Precisa-se de difusão do assunto em veículos de massa, mas não permitem nada na TV, nada na escola... o que nos resta fazer?

    ResponderExcluir
  3. Me lembrei de uma frase que alguém gritou um dia desses: "parem o mundo que eu quero descer!!"
    Mas, enquanto isso não acontece, temos que continuar denunciando esses fatos tristes, lamentáveis e desconcertantes, que, para nossa infelicidade, não param de acontecer.

    ResponderExcluir