terça-feira, 24 de agosto de 2010
Da rua para academia, por Lívia Gimenes
Da rua para academia: os desafios da construção de um direito libertário a partir da extensão universitária.
Lívia Gimenes Dias da Fonseca - mestranda em Direito/ UnB e integrante do projeto “Promotoras Legais Populares/DF”
Em 02 de junho de 1988, Paulo Freire proferiu uma palestra para os/as estudantes da Faculdade de Direito da USP que se transformou em um capítulo do livro “Pedagogia da Esperança”. O que chama a atenção nesse texto é que ele inicia a palestra apresentando o medo que lhe tomou ao falar naquele dia e naquele local e que ele assumia aquele medo porque falar dele seria pedagógico.
Para quem conhece o salão nobre da Faculdade do Largo do São Francisco sabe que ele é composto de um gigantesco pé direito a tal ponto que atrás da mesa dos/as palestrantes cabe um enorme quadro de D. Pedro I. Certamente não era a austeridade do ambiente que atormentou o professor. Afinal, ele foi formado em uma faculdade de Direito, a de Recife, que não perde em nada em opulência.
Talvez a sua preocupação fosse em relação a compreensão do conteúdo de sua palestra, em especial pela linguagem. A sua apresentação não seria naquele momento em inglês, ou francês, ou alemão, línguas que aquele público estava bastante acostumado a lidar aliás, mas ele iria falar no melhor “brasileiro” em um sotaque bem pernambuquês.
Ainda, a preocupação não estaria relacionada a ele não estar acostumado a apresentar suas idéias em público, ao contrário, naquela altura a sua obra já era bem reconhecida mundialmente e ele estava acostumado a se apresentar nos mais diversos países. Na verdade era exatamente este fato que lhe preocupava.
O professor sabia que aqueles/as estudantes estavam acostumados a entrar em sala de aula e a “engolir” as falas de seu catedrático professor/a tendo somente que “cuspir” depois as idéias em uma prova (para não pensar onde iriam fazer isso depois de formados/as). Muitos acreditam que o diálogo depende somente que o locutor/a da idéia esteja aberto a ser questionado/a, todavia, às vezes o mais difícil é conseguir que aqueles/as acostumados/as a serem objetos da fala do “outro” se permitam a pensar o que lhes é dito e, assim, se colocarem enquanto sujeitos da conversa.
Coerentemente, Paulo Freire queria que, ao assumir honestamente a sua mais completa forma de “ser” humano, as/os estudantes deixassem de enxergá-lo em um pedestal e o vissem em sua horizontal postura e se abrissem para ouvir e refletir as idéias que ali seriam colocadas. Aliás, idéias nada comuns ao público ali presente.
Acostumados ao ensino da dogmática positivista, como compreenderiam que sonhar e amar seriam direitos? Mais ainda, inseridos no espaço da academia onde a única fala legitimada é o do catedrático, como entenderiam a idéia de que “o ato de conhecer se apresenta como um direito dos homens e mulheres das classes populares, que vêm sendo proibidos e proibidas de exercer este direito, o direito de conhecer melhor o que já conhecem, porque praticam, e o direito de participar da produção de conhecimento que ainda não existe” (FREIRE, p. 97)?
Não se sabe se aquele público ali presente em especifico compreendeu. Entretanto, essas idéias passaram a ser a base fundamental dos/as estudantes extensionistas que atuam em projetos como os de educação jurídica popular, no qual se enquadra a experiência do “Promotoras Legais Populares do DF” (PLPs).
O caminho de ida até a comunidade não é o mais difícil. Logo as cursistas do projeto de PLPs se tornam as verdadeiras professoras no aprendizado de que os direitos, na perspectiva de justiça, estão nas ruas, e ambos, universitários/as e cursistas, se despertam em conjunto para a “necessidade da briga, da organização, da mobilização crítica, justa, democrática, séria, rigorosa, disciplinada, sem manipulações, com vistas à reinvenção do mundo, à reinvenção do poder” (FREIRE, p. 99).
Assim, o maior desafio da extensão está sempre no caminho de volta para a Universidade. O/a estudante extensionista retorna ao ambiente acadêmico impregnado de reflexões e sensações que adquiriu com o contato com a comunidade muito difíceis de serem transmitidas somente pelas palavras a quem não vivenciou a mesma experiência.
A linguagem dos/as estudantes extensionistas torna-se estrangeira aos ouvidos de quem não está acostumado a ouvir os anseios do povo. O brilho de esperança nos seus olhos não consegue ser captada pela racionalidade acadêmica daqueles/as que têm na história uma concepção finita que tem como ponto final a dominação de um individuo por outro. E o abraço afetuoso de quem tem no diálogo uma abertura amorosa para o mundo não encontram os braços daqueles preocupados em não amarrotar os seus ternos.
Não obstante, essas/es estudantes sempre retornam. Publicam textos, fazem seminários, rodas de conversa, escrevem dissertações, teses, mas sabem que esses são apenas os instrumentos de seu diálogo que, para ser aberto, depende, sobretudo, que sempre sejam honestos consigo mesmos/as e que se assumam na sua humana crença em um outro direito possível.
Fonte: FREIRE, Paulo “Direitos Humanos e educação libertadora” in “Pedagogia dos Sonhos Possíveis”, Coleção: Série Paulo Freire SP:UNESP, 2001
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Lívia, obrigado por compartilhar essa reflexão. fiquei aqui lembrando dos aprendizados que tive e que já não se fazem presentes. mas voltarei para extensão, lembrando desse texto em homenagem ao querido Paulo freire. abraço!
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