domingo, 3 de julho de 2011

AJP e o resgate de nossa latinidade

por Juliana de Andrade Marreiros

Acabo de assistir ao jogo de abertura da Copa América deste ano, estrelado por Argentina, Bolívia e por muita rivalidade em campo. Impossível não sentir um coração latino-americano bater mais forte diante de tantas emoções colocadas nessa disputa desportiva, que, diga-se de passagem, pretende-se, de forma diplomática, celebrar a confraternização entre as nações através de embates saudáveis. Entretanto, é exatamente na rivalidade e na garra que moram nossas maiores identificações futebolísticas, na medida em que qualquer duelo entre países latino-americanos se torna verdadeiro palco para atuações explosivas, tensas, apaixonadas e patriotas.

Tanta paixão, a despeito de qualquer lugar-comum reproduzido por nós, latinos, e por povos para além Atlântico, é marca registrada de nossa cultura, enquanto povos dominados, escravizados e explorados, relegados ao plano inferior, em termos políticos, geográficos e econômicos. Somos as gentes que tiveram de suportar as dores do colonialismo, da tortura, das inconfidências, da ditadura, do desemprego, da recessão e tivemos (e ainda temos, afinal as amarras ainda permanecem as mesmas) que segurar a barra cotidianamente, pra pôr o pão na mesa, pra abolir a escravidão, pra sobreviver à repressão. Somos sim movidos pela paixão, especialmente pela paixão à vida!

As nossas expressões artísticas revelam muito do caráter emocional e político que nos impulsiona, sem necessariamente afastar o conteúdo racional de suas concepções. Para efeitos de ilustração, várias são as personalidades que se destacam no campo das artes essencialmente latinas, tais como Neruda, Chico Buarque, Garcia Márquez, o cartunista Quino, Machado de Assis, Eduardo Galeano, Tarsila do Amaral (esses são só os que me vêm à mente agora), entre outros tantos nomes proeminentes. Não se pode negar que América Latina contribui com o mundo, marcadamente, através de suas produções artísticas de resistência e denúncia.

Ora, partindo dessas constatações, queda-se inafastável a necessidade de transportar esse arcabouço de valores artísticos e culturais para a luta contra a submissão política e (por que não dizer?) teórica. A transformação da realidade de opressão na qual nós latinos nos circunscrevemos exige não só um acúmulo crítico e reflexivo conjuntural de nossas localidades, mas (e primordialmente) de nossas afetações com o que nos oprime. Essa afetação pode se manifestar de variadas formas, até inconscientemente. Nesse cerne, as culturas populares latinas acabam por reproduzir muito das experiências de exploração e do desejo de superação. Então, antes mesmo de se pensar e se trabalhar em torno da mobilização e da luta coletiva por direitos, é fundamental a identificação dos sujeitos oprimidos com essas manifestações.

Nesse sentido, o sentimento de pertença é peça fundamental no processo de identificação, sentimento este do qual os povos latinos pouco comungam. Não se pretende aqui negar o contexto neoliberal e imperialista ao qual ainda estamos submetidos, mas chamar atenção para a necessidade de resgate do que nos constitui sociedades e indivíduos latinos. É preciso que nos situemos político-historicamente e culturalmente no contexto de América Latina, não só para o entendimento crítico de nossa realidade, como para a construção de uma nova realidade, haja vista que muitas são atrocidades por nós vividas e as práticas insurgentes por nós intentadas que nos aproximam e, portanto, nos identificam.

O futebol terminou se construindo, historicamente, como a expressão máxima de nossas intersecções culturais. Somente nos reconhecemos enquanto América Latina em tempos de Copa Mundial ou de outras competições a nível global. Tanto assim o é que um dos maiores símbolos de insurreição do bloco latino foi a imposição, por meio da raça e do talento flagrante que desempenhamos nos gramados, da inserção de nossas seleções na Copa do Mundo, antes disputada somente pelos países europeus, inventores do futebol. Não obstante, ainda deportamos nossos melhores jogadores para aqueles países, numa clara evidência de que o ciclo de dominação, mesmo no que diz respeito ao futebol, permanece.

Propõe-se, dessa forma, que nos apropriemos de nossa latinidade - tão caracterizada pela subjugação - e a transformemos em instrumento de luta e objeto de reconquista, para que o rompimento do ciclo de rebaixamento de nossa identidade seja possível. Nesse contexto, a AJP pode desenvolver papel estratégico, na medida em que incorpore às suas práticas e discussões as produções latinas peculiares às nossas vivências e caminhada histórica. Se hoje não temos acúmulo suficiente sobre nossos heróis, guerras, vitórias, retrocessos - tampouco sobre os processos de construção de ideologias que fundamentam a manutenção de privilégios que mantém a nós, latinos, às cegas - é porque essa insuficiência é reflexo direto dos esforços capitalistas em nos manter reprimidos e calados. Assim, é função basilar das práticas jurídicas críticas minimamente contribuir para que se faça luz sobre as obscuridades latino-americanas, especialmente no que tange às experiências de mobilização para a superação das camadas populares de suas opressões.

Nesse contexto, urge a construção de um novo sistema jurídico e de teorias para uma nova cultura de direitos eminentemente latina, de produção horizontal e popular, uma vez que o arcabouço jurídico posto e por nós assimilado é mero produto de exportação do capital cultural e jurídico estrangeiros. Aqui, mais uma vez, vislumbra-se a importância da AJP como fomentadora deste debate de consolidação coletiva da nossa identidade latina, quando da sua proposta de sistematização de teorias e experiências críticas afetas à nossa realidade, tais como o pluralismo jurídico, bem como a contribuição de Warat e sua proposta de ruptura das estruturas jurídicas vigentes por meio da carnavalização do direito (teoria que nos sugere a prática jurídica tomada por uma das expressões máximas da cultura brasileira).

Intenta-se, por fim, enfatizar a função incontestável da Assessoria Jurídica Popular de formação política, emancipatória e transformadora a partir do conhecimento e da desmitificação dos processos de exploração e intimidação desumanos (e de seus legados históricos) aos quais os povos latino-americanos encontram-se amarrados, bem como da retomada de sua dignidade política e cultural, por meio da paixão e da fraternidade que faz de nós, latino-americanos, “hermanos” para além do futebol e unidos em torno de nossas utopias, por nós apreendidas como combustíveis de nossa caminhada rumo a outro mundo.

2 comentários:

  1. Juliana, querida!

    Que surpresa boa seu texto no blogue! Sua escrita apaixonante precisa aparecer mais vezes para expôr a crítica com este vigor e clareza.

    Lindo texto.

    Grande beijo!

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  2. Oi Ju!

    Parabéns pelo o belo texto. Queria colocar aqui as seguintes colacações:

    Bem, tu colocaste que temos que usar os elementos que nos marcam enquanto subjulgados como uma forma de combater a própria opressão.
    Eu fico cá com minhas inqueitações em relação a isto.

    O futebol por exemplo, não raro é instrumentalizado na grande mídia para tirar da pauta da opinião pública acontecimentos e decisões políticas importantes, e atualmente, instrumentalizado para legitimar grandes empreendimentos imobiliários que se desenvolvem em função da Copa 2014, que já começa a engredar processo de violação de direitos, criminalização e espoliação de trabalhadores pobres.

    Os parlamentares e chefes do executivo não raro se utilizam de discursos emotivos, não raro recorrendo a símbolos da religiosidade populares, para adquirir diante dela um status de "pai dos pobres".

    Esses são exemplos bem simplórios, mas também bem concretos e facilmente identificáveis no cotidiano de Assessores Jurídico Populares.

    Então, como colocar em prática esta afirmação positiva das identidades latino-americana sem abrir mão da crítica?

    Lembro que conversando com os compas das AJUPs de Fortaleza, que estão trabalhando a questão dos deslocamentos por conta da COPA 2014, quando estavam abordando essa questão do futebol, colocavam algo do tipo aos moradores: "gostamos de futebol, nós somos contra fazer as obras da Copa daquele jeito, sem indenizar devidamente as famílias e beneficiando apenas a especulação imobiliária".

    Bem, vejo que esse discurso aponta para essa superação, mas creio que ainda há muito que andar neste diálogo.

    Enfim, abraços Ju, espero este ser a primeira de muitas postagens neste blog!

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