No último dia 03.09, mais um trabalhador rural foi vítima da violência do latifúndio no Brasil, e mais uma vez no estado do Pará, onde os conflitos agrários são ainda mais encarniçados devido a uma combinação de elementos como:
- a manutenção do poder político nas mãos do velho latifúndio coronelista;
- a introdução acelerada do moderno agronegócio capitalista neocolonial, que atua de forma dependente e subordinada a interesses econômicos externos;
- o verdadeiro caos social gerado por este modelo sócio-econômico, que nas últimas décadas tem expulsado grandes levas de camponeses para as cidades grandes e médias da região, sob a forma de uma urbanização caótica sob condições de desemprego, superexploração e miséria;
- a conivência das autoridades políticas e judiciais em relação a pistolagem;
- o grande caos fundiário promovido pela grilagem no Estado.
José Valmeristo Soares, conhecido como Caribé, foi torturado e executado por pistoleiros a soldo da família do ex-Deputado Federal Josué Bengstson (PTB), que renunciou ao mandato anos atrás para fugir da cassação por envolvimento na Máfia das Sanguessugas. Bengstson é novamente candidato a deputado federal, e conclama em seus programas pelo voto da "família paraense", pois sua principal bandeira no Congresso será a manutenção da proibição do aborto no país...
Por sorte, João Batista Galdino de Souza, outro trabalhador que havia sido capturado e torturado pelos pistoleiros, conseguiu fugir e sobreviveu.
Compreendendo melhor o caso
Caribé era uma das lideranças de uma comunidade de camponeses que era historicamente base da FETAGRI-PA (Federação dos Trabalhadores na Agricultura), que reúne centenas de sindicatos de trabalhadores rurais no estado. Cansados da demora em relação a alguma providência do governo no sentido de conquistar seu direito a terra, os trabalhadores decidiram por ocupar a Fazenda Cambará, em Santa Luzia do Pará (nordeste do estado), devido a sua condição de terra improdutiva e grilada. Para isso, romperam com o grupo político que controla a FETAGRI e aderiram ao MST, que os apoiou na ocupação da fazenda.
A reação do latifúndio e do Estado foi imediata. No mesmo dia da ocupação, prontamente a polícia militar foi requisitada e promoveu o despejo, com um mandado de reintegração de posse que já fora utilizado em outro despejo que os trabalhadores haviam sofrido da mesma fazenda, no final de 2009. Como de praxe, os trabalhadores foram xingados, humilhados e intimidados pelos policiais, e, não tendo para onde ir, permaneceram a beira da fazenda, mantendo sua disposição de permanecer na terra, onde já tinham inclusive seus roçados.
A partir de então, a pressão psicológica só fez aumentar. Todos os órgãos competentes (polícia, INCRA, ITERPA, Ouvidoria Agrária etc) foram comunicados da situação, que já indicava que uma tragédia ocorreria se nenhuma medida fosse tomada. A morte de Caribé teve, portanto, vários cúmplices por omissão.
Um detalhe curioso é que o crime foi cometido alguns dias antes de um grande Fórum promovido pelo CNJ e pelo TJ-PA. O MST e várias entidades organizaram um ato que tentava sensibilizar os participantes para o conflito, mas não foi permitido que entrassem no local do evento. Lá dentro, uma grande "feira de exposições" (?) de diversas entidades trazendo sua contribuição para a redução dos conflitos no campo. Segundo as resoluções aprovadas no final do encontro, a medida mais importante e urgente é a regularização fundiária, o que na verdade interessa mais aos grileiros, que são efetivamente aqueles que estão em situação irregular. Nada se disse sobre reforma agrária...
Os trabalhadores se dirigiram então ao INCRA, onde ficaram ocupados até que as autoridades competentes pela reforma agrária do governo do estado e do governo federal se comprometessem em desapropriar a área e destiná-la à reforma agrária. Tomado o compromisso, os camponeses retornaram à Fazenda Cambará no último dia 16.09, onde seguem na luta até a conquista final do direito a terra. A reocupação obviamente não foi pacífica, e, sob o argumento de retirar da fazenda máquinas, tratores e outros pertences dos proprietários, a polícia tentou mais uma vez pressionar psicologicamente os camponeses para que abandonassem a área, uniformizados e pesadamente armados que estavam (vide foto acima). O grupo manteve, porém, sua disposição em permanecer na terra e não permitir que a morte de seu companheiro fosse em vão. Igualmente essencial foi o apoio da SDDH (Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos) e da Defensoria Agrária, para que mais um despejo ilegal não ocorresse.
Cabe a cada um refletir sobre tantos debates que se misturam na complexidade de um caso real como este. Deixo, apenas, algumas perguntas provocativas, para reflexão (e me contendo para não faze-las a certos setores "democrático-populares" que se calam nesses momentos em que a vida exige uma tomada de posição):
- para os acadêmicos: o que explica o fato de as universidades e os intelectuais, especialmente no estado do Pará, sequer repercutirem, e quanto mais discutirem sobre mais este caso de grave violação de direitos humanos? Será que "direitos humanos" é um tema meramente acadêmico?
- para os pós-modernos: este conflito é produto de uma sociedade "plural e diversa", ou marcado por classes sociais antagônicas em luta permanente?
- para os positivistas: não há relação entre direito e política, direito e moral? a diferença entre o "ser e dever-ser" conseguirá trazer de volta mais um trabalhador assassinado pelo latifúndio?
- para os militantes e assessores jurídicos populares: que fazer para colaborar, propagar, impulsionar as lutas do nosso povo?
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ResponderExcluirRotular o outro, eis o não-sábio
ResponderExcluirEm si, embora ilimitado,
No-outro a inércia do estar
Sendo assim, em si o outro
Tanto mais quanto menos se quer.
Academia, pós-modernidade (?), positivismo > um é conseqüência do outro, reciprocamente.
Justiça, moral, política, direito > um é conseqüência do outro, mesmas manifestações do controle social em ordem crescente de degradação. Tomar consciência dessa unidade não é necessariamente resolver o problema, pois que envolve extirpar todas as categorias. Com o fim das leis (direito), vem o fim da necessidade de gerir a conduta do outro (política), gerir o pensamento do outro (moral) e gerir os ideais do outro (justiça). Estamos longe mesmo do primeiro passo...
Ueba, agora temos entre nós um "Ombudsman"!
ResponderExcluirAliás, um anti-ombudsman.
Segundo o Wikipedia "Ombudsman é um profissional contratado por um órgão, instituição ou empresa que tem a função de receber críticas, sugestões, reclamações e deve agir em defesa imparcial da comunidade".
Nosso "agente incendiário" é o inverso disso tudo, é o "Ombudsman" ao contrário: alguém que age politicamente, parcialmente, criticamente, para o melhor da comunicação anárquica da internete, um parasita cumichão na barba rala destes colunistas.
Desde já lanço a campanha: "Laoziano", seja nosso colunista.
Não esvaziemos o debate. Um laoziano, por definição, não pode ser colunista, pois uma coluna sobre o "vazio" não sustenta nada e nem mesmo se sustenta... (ainda que isso não implique a não existência de alguma simpatia de minha parte com relação a sua tese sobre o "vazio jurídico", por mais que esta tese confunda "verdade" com "caminho" e creia que a história material é uma "baba dialética" a qual, duvidosamente, decorre do "fubá dialético" do humanismo dialético da crítica jurídica tupiniquim).
ResponderExcluirQuanto às provocações do Diego, devo dizer que ele toca em questões sensíveis, a partir de um caso terrivelmente concreto. As coisas ficam, certamente, mais explícitas se as mostramos cruamente. O caso do Pará é um dentre vários, mas em si carrega todos os demais. A desigualdade de armas que caracteriza a sociedade brasileira - dependente e periférica - chama a atenção, frente aos mitos jurídicos tão efusivamente exaltados pelos juristas, por maiores que sejam suas boas intenções. O velho Lira Filho dizia, em suas razões de defesa do direito, que os críticos marxistas do direito salvavam os "direitos humanos" e a "justiça social" de sua crítica, de forma um tanto inconsciente. Hoje, porém, inconscientemente salvamos o "direito" ao exaltarmos a forma jurídica historicamente colocada dos "direitos humanos". Uma fórmula, nada mais (ainda que fórmulas, tal qual ideologias, tenham conseqüências práticas, sempre e necessariamente). A academia de costas para a realidade - portanto, longe dos casos concretos que trazem consigo as condicionantes da realidade. Os hipermodernos (tanto positivistas como pós-modernistas, junção que enuncia um falso paradoxo), regozijando-se com o mobiliário da inanição, seja a defesa do sistema político vigente, seja a defesa da impossibilidade de qualquer sistema político. E, por fim, os "militantes e assessores jurídicos populares" - dentre os quais, nós, a maioria dos envolvidos neste blogue: no contexto de uma esquerda fragmentada e religiosa em suas minidoutrinas, é preciso que pretendamos a totalidade, a partir de um ponto de partida ético-crítico. E se a realidade parece um moinho contra o qual sempre nos espatifaremos, é preciso que usemos alternativamente as armas que estão dadas, enquanto construímos novas. Um uso alternativo da academia assim como um positivismo de combate, além de a suprassunção dialética da crítica pós-moderna pode apontar para algo de nossa práxis como mirrados assessores jurídicos populares. Quiçá este comentário valha uma futura postagem sobre a necessidade da construção da universidade popular, assim como já esteve presente em postagens anteriores sobre o não-direito.
Valeu, Diego, por lembrar a espantosa realidade!
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ResponderExcluirÉ preocupante notar como este tipo de notícia simplesmente não comove mais a enigmática "opinião pública"- pensei que sua massa informe fosse composta de seres humanos. E me desculpem por mencioná-la, mas, pegando um gancho do Pazello, existem conceitos que ainda que questionáveis ou “fora de moda” no mundo acadêmico, ou ainda, pelo contrário, "salvaguardados", são bastante utilizados fora dos muros das universidades, obviamente gerando conseqüências. Não enfrentá-los é deixar muita coisa ao acaso ou aos oportunistas.
ResponderExcluirMas voltando ao caso concreto: é mais uma vida que mancha de sangue o chão pelo qual luta. Meudeusdocéu! É mais uma vida que é perdida por conta da terra num país que possui cerca de 8.547.403 km² - perdoe a inexatidão, as aulas de geografia já estão longe no tempo e pelo que me consta tecnicamente o país aumentou de território, o que torna a coisa toda mais repulsiva.
Não sei se um dia alcançaremos a unidade que Pazello acredita, talvez uma unidade localizada seja possível, mas pensar isso me parece ser contraditória e dissonante do espírito que nos envolve nestas paragens virtuais- negar o impossível? A única certeza que me vem neste momento é esta: algo precisa ser mudado e o primeiro passo parece muito tímido para chegar a ser definido como tal.
Por isso, aguardo a postagem sobre a universidade popular e suas possibilidades. O direito cabe nela?
Um comentário sobre colunistas e comentaristas:
ResponderExcluirParece que uma pimenta foi acrescentada neste sarapatel que é o "BAJP".
Raios e trovões quando este Laoziano surge. E a tempestade parece ser maior quando o Pazello está no meio. Vide postagens anteriores.
É um deleite ler os comentários dos dois. Uma riqueza para este blogue.
Um xero para vocês!