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quinta-feira, 21 de abril de 2011

Cineclube AJP: "Narradores de Javé"

Em acordo com a sugestão do amigo Diego Diehl - aliás, o espaço é de tod@s, espero suas constribuições também Diehl e de outr@s comp@s - o espaço no blog passa a se chamar Cineclube AJP, sendo que hoje iremos apresentar e refletir sobre o filme "Narradores de Javé", da diretora Eliane Caffé, produzido no ano 2003.


Numa curta sinopse, podemos dizer que o filme trata dos moradores da pequena cidade de Javé, que será submersa pelas águas de uma represa. Seus moradores não serão indenizados e não foram sequer notificados porque não possuem registros nem documentos das terras. Inconformados, descobrem que o local poderia ser preservado se tivesse um patrimônio histórico de valor comprovado em "documento científico". Decidem então escrever a história da cidade - mas poucos sabem ler e só um morador, o carteiro, sabe escrever. Depois disso, o que se vê é uma tremenda confusão, pois todos procuram Antônio Biá, o "autor" da obra de cunho histórico, para acrescentar algumas linhas e ter o seu nome citado.


Quem fundou a comunidade de Javé, Indalécio ou Maria Dina? Eis uma pergunta que não vale a pena ser respondida com aqueles famosos atos retóricos de excluir as múltiplas possibilidades para eleger uma única verdade. No filme “Narradores de Javé” o surgimento da comunidade se apresenta como fato salpicado num caleidoscópio de versões que, como bem diz Lévi-Strauss, coloca cada versão como valendo por si e da junção de todas elas surge não “a” história da comunidade, mas sim a riqueza dos detalhes e dos meandros que compõe a diversidade cultural da comunidade.

No entanto, será Antonio Biá um farsante ou um criativo contador alfabetizado de histórias? E o que significa todo o esforço de cada pessoa para se colocar no centro da história da comunidade? Sem dúvida, “Narradores de Javé” é um filme encantador e que propõe muitos assuntos ao mesmo tempo (identidade, patrimônio, relações de parentesco, direito a terra, grandes projetos, entre outros) sem perder o liame do humor que torna o fatídico destino dos moradores um “causo” emblemático para pensar o nosso contexto e nossas vidas.Saliento a interessante relação estabelecida entre a emergência do conflito social – inundação da cidade ante construção da represa – e a necessidade de proceder à organização social – o planejamento dos moradores para coletar as histórias de fundação da comunidade e montar o livro – vinculada com certa política de identidade, que se desenvolve numa sucessão de atos e falas que, no fundo, reivindicam o direito a terra e a ligação dos atuais moradores com seus antepassados, construindo, com isso, a terra e as memórias como patrimônio cultural, ou seja, algo que possui importancia social para a comunidade.

A comunidade sendo inundada



Mas resta uma dúvida: por que somente depois que o conflito emerge é que os moradores percebem a necessidade de registrar – cientificamente – suas histórias? Um conhecido antropológico, Roque Laraia, afirma que a cultura não se pensa, se vive. De fato, quem pensa – no sentido de estudar ou pesquisar – a cultura é antropólogo, preocupado em sistematizar suas lógicas e definições, nós, que estamos imersos na cultura, respirando-a 24 horas por dia, estamos fazendo a cultura, assim como os moradores de Javé faziam sua cultura desde a fundação da localidade, e bem antes disso. E, por isso, pergunto: quem já se preocupou em registrar ou escrever um livro sobre a história de sua família, com todos os contornos que isso possa assumir? Mais do que uma crítica, trata-se de perceber o caráter político e dinâmico que envolve a necessidade de construção e afirmação da identidade, e de como o seu acionamento está quase sempre ligado à necessidade de confrontação a alguma situação social que coloca em risco à comunidade, tornando-a um instrumento de luta, assim como fizeram os povos indígenas após a Constituição Federal de 1988, a partir da qual tornou-se possível, no Brasil, afirmar-se indígena de modo a requerer o respeito às diferenças culturais e o controle das discriminações.


Por outro lado, o que representa a “divisa/posse cantada”, que é mostrada no filme, numa perspectiva de compreensão da terra e do direito a terra? Do alto de uma montanha, Indalécio (ou será Maria Dina?) entoa os marcos geográficos da divisa da nova comunidade e funda o território de Javé. No Curso de Etnodesenvolvimento, temos refletido coletivamente sobre a distinção entre as noções de terra e território, tal qual se apresentam numa perspectiva dos direitos dos povos diferenciados. De maneira bem simples, a noção de terra é apreendida enquanto título jurídico emitido pelo Estado que define o que o próprio Estado entende (ou reconhece) como sendo o espaço geográfico que é do direito de alguém, em contrapartida o território são as noções nativas (ou dos agentes locais) sobre as formas de uso, apropriação e simbolização desse espaço em que se vive, e no qual se entrelaçam aspectos biológicos, socioeconômicos e culturais. Daí porque, na maioria das vezes, a noção da terra outorgada pelo Estado para determinado grupo não é igual à noção do próprio grupo com relação ao seu território, sendo que esta “outra” noção permanece mesmo quando já não mais exista a própria terra, como no caso de Javé que, mesmo depois da inundação, o sino permanece como sendo o elo que os liga a Javé e aos antepassados.


Indalécio, de acordo com as narrativas


Ao trabalhar com os direitos coletivos dos povos diferenciados (ditos povos e comunidades tradicionais, no Brasil), uma das coisas que mais se ressalta é que a autonomia a que tem direito estes povos/comunidades implica, dentre outras coisas, no reconhecimento de suas autodefinições territoriais como elemento central para a demarcação/titulação das terras, é dizer, deve-se partir do que eles entendem – da compreensão advinda com a “divisa/posse cantada”, em referência ao filme – para então traduzir estas referencias em reconhecimentos jurídicos, respeitando suas definições nativas tal como se apresentam. O procedimento é mais aceito e usado no caso dos povos indígenas e das comunidades quilombolas, o que não retira o desafio, ao INCRA, por exemplo, de repensar seus modos/regulamentos de titulação de terra às comunidades de agricultores, que também são “tradicionais”, respeitando as autodefinições que cada uma possui do seu território.


Por fim, fico com a interessante reflexão dita no filme: “uma terra vale pelo que produz, mas pode valer mais ainda pelo que esconde.” O que significa este esconder? E por que vale tanto mais? Há muitas possibilidades de leitura, para mim significam duas coisas: a primeira, de considerar o ato de esconder ou de não se mostrar como estratégico em contextos de embates políticos, como no caso do filme, é dizer, como forma de esconder informações de agentes externos a comunidade e, em especial, do conhecimento científico, seja porque não pode ser inteligível/traduzível para os mesmos, ou porque a tradução implicaria em usos indevidos, como no caso da bio/etnopirataria. Mas esconder, por outro lado, é também recurso estratégico para valorizar ainda mais o conhecimento tradicional, porque no ato de esconder surgem diversas questões: quem esconde e por quê? De quem esconde? De que forma pode deixar de ficar escondido? Quais os impactos quando se revela? São muitas questões que envolvem aspectos históricos, políticos e culturais, mas que remetem sempre a certa necessidade de fortalecer identidades, sobretudo quando elas se colocam em situações de conflito com agentes externos.

quinta-feira, 24 de março de 2011

Campo minado: questão para debate

Caso real com alguns ajustes fictícios

A escola pública “José Galvão”, localizada próxima das comunidades ribeirinhas da ilha do Cumbu, nas proximidades da cidade de Belém/PA, vem passando por um sério problema de evasão estudantil. A direção da escola, após conversar com os responsáveis dos estudantes, descobriu que estes estavam deixando a escola para trabalhar com os pais e familiares na coleta do açaí e na plantação da pimenta do reino, atividades tradicionalmente realizadas por todos os membros das famílias – iniciados por volta dos 10 anos de idade – daquela localidade e que exigia a tomada da manhã e da tarde para a consecução, havendo uma divisão de tarefas condicionada pelos limites etários e sexuais dos membros do grupo.

Depois de muito conversarem com os familiares dos estudantes e com os próprios estudantes, a direção e os professores da escola, percebendo que a situação não se modificava, resolveram acionar o Ministério Público do Estado (MPE), para que o mesmo tomasse providencias visando dar alguma solução para a situação.

Desse modo, o MPE montou uma comissão composta por seus promotores, membros do Conselho Tutelar responsável pela assistência à localidade e professores universitários, com o objetivo de realizarem oficinas junto aos pais e responsáveis sobre os direitos de crianças e adolescentes à educação, além das punições cabíveis quando de sua violação, conforme delineia o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº. 8.069/90) e a Constituição Federal.

Após a realização de duas oficinas denominadas de “Educação em Direitos Humanos com pais e responsáveis”, a comissão avaliou que, apesar da baixa participação, houve boa receptividade sobre os direitos das crianças e dos adolescentes à educação e de proteção contra o trabalho infantil (art. 53 art. 60 do ECA, principalmente). Devendo a escola, junto com a comissão, fiscalizar a observância, pelos responsáveis, dos referidos direitos, com ênfase no retorno de crianças ao convívio escolar e a diminuição e/ou erradicação de suas atividades laborais familiares.

Perguntas
  • Você concorda com a forma como a questão (evasão escolar e trabalho infantil) foi discutida e solucionada na localidade? Por quê? Você teria alguma sugestão alternativa?
  • Qual sua opinião sobre a relação entre práticas culturais e direitos? No caso em questão, seria possível concilia-las, sem acarretar prejuízos para as partes envolvidas?

domingo, 19 de dezembro de 2010

Considerações sobre o "popular": direito e cultura


Em seu comentário a minha coluna do último domingo (Ludovico Silva e a crítica à naturalização metódica), Luiz Otávio Ribas questionou-me: "há espaço para o direito na cultura popular?" Esta pergunta me inquieta há algum tempo e agora vou arriscar-me a fazer algumas considerações sobre ela.

O adjetivo "popular" nos acompanha há muito e Luiz Otávio e eu compartilhamos de que a luta social do agora se referencia em um projeto popular. Não à-toa, construímos uma reflexão baseada em quatro pilares (propostas de práticas políticas insurgentes), cada qual ancorado e alicerçado sobre bases populares: a resistência, o trabalho, a organização e a educação - daí a assessoria popular, a cooperação popular, os movimentos populares e a universidade popular.

No entanto, o que vem a ser este "popular"? O que significa falar nisto dentro de nossa tradição interpretativa da realidade, que vê Cristo, nas festas coloniais, descendo do altar e sambando com o povo? Ou quando se soltam fogos de artíficio, durante a realização de missas, reavivando os tempos das galilés, ainda que sublevadas?

Penso que uma boa via de acesso a esta discussão se dê pela problemática da cultura. De antemão, porém, devo indicar que a noção de "cultura" é muito mais complexa do que costuma ser empregada comumente e até apresenta-se como calcanhar-de-Aquiles de muitas das teorizações empreendidas no seio das teorias (mesmo as críticas) do direito. Nesse sentido, seria coerente um aprofundamento em bases antropológicas, algo, porém, a que não vou me dedicar aqui. Vou tomar outro rumo.

Quero atacar a questão do "popular" por meio da "cultura popular", no senso mais usual que a expressão pode aportar.

Muito em voga sempre esteve para as teorias críticas, em geral, o problema da cultura de massas. Em especial porque o século XX trouxe a tiracolo os grandes meios de comunicação. Dentro do imaginário da revolução socialista que nós, marxistas, temos como horizonte, é quase impossível não lembrar de Lênin discursando da sacada do Palácio Krzesinska, nas jornadas de julho de 1917 (conforme a clássica tela de Moravov, ao lado). Esta forma de comunicação social já não pode ser mais a paradigmática com a grande avalancha do rádio, da televisão, do cinema e da informática. Agora, as casas são o teatro que recebe mensagens e informações decodificadas pelas antenas e satélites que colonizam todo nosso âmbito cultural, sem sequer nos darmos conta disso. No entanto, esta crítica pujante levada a cabo pelos franquefurtianos, por exemplo, não pôde senão cair em uma aporia: a indústria cultural é o extremo oposto da cultura dos industriários ou são dois lados da mesma moeda?

Assim é que faz sentido toda a preocupação não franquefurtiana (de Grâmsci ou Altusser, por exemplo) em encontrar órgãos ou aparelhos de hegemonia nos mais diversos âmbitos da institucionalidade na sociedade capitalista. E mais do que isso: a possibilidade de subverter esses canais de comunicação.

Eis, portanto, que pode vir à tona a distinção - em um nível privilegiado de abstração - entre a cultura de massas e a cultura popular. Se a cultura erudita não nos serve (pois que a vilania da arte erudita cala e torna anônimos os artistas do povo), tampouco pode nos servir a cultura estratificada e vendida aos cântaros nas esquinas radiofônicas. Ocorre, porém, que também não nos adianta pura e simplesmente rejeitar a chamada cultura de massas, como alienação popular. É preciso compreendê-la.

Aqui, a meu ver, a grande mediação a se fazer é econtrar a categoria "cultura popular" como distinta daquela "cultura popularizada". Em termos de nomenclatura, bastante controversa é esta linguagem. Poderia precisar esta discussão como a do embate entre a cultura de massas versus a cultura massificadora ou a cultura popular em face da popularizada. No entanto, há uma redução dos termos a, por um lado, uma cultura popular (que não deixa de ser das massas, qualificadamete) e umoutra de massas (que não deixa de ser popularizante).

O grande intelectual brasileiro que foi Mílton Santos, em um de seus últimos textos (o famoso "Por uma outra globalização"), utilizou esta contraposição. A cultura de massas seria homogeneizadora e inserida na globalização avançada do capital transnacional da virada do milênio, caracterizado pela unicidade das técnicas, monotemporalidades, superexploração do capital global e ampla cognoscibilidade objetiva do mundo. Por outro lado, a cultura popular expressaria um momento de reascenso das classes trabalhadoras em oposição ao sistema do capital, produzindo resistência a partir de seus símbolos, cantos e solidariedades.

Daí fazer mais sentido a colocação do problema: o que é o popular? Com o velho Dússel responderíamos que é o que se refere ao povo como "bloco comunitário dos oprimidos de uma nação". Vários limites há nesta formulação como também em outras; e já dissemos, em outro momento, que seria importante juntar a este conceito as noções de classe operária, de Maríni, e de classe-que-vive-do-trabalho, de Antunes - algo ainda por se sintetizar. Mas esta forma de encarar o "popular" se põe na contramão da marcha liberal do conceito e ainda dialoga com a tradição latino-americana do termo. Portanto, nos vale por ora.

Com esse itinerário, cabe perquirir sobre os vários matizes - as "zonas de penumbra" - entre a cultura de massas e a cultura popular. Por exemplo, dentro do amplo espectro da música popular: conforme mais se massifica (ou seja, se torna objeto de consumo de acordo com uma técnica unificada) a produção musical, mais se tende a resgatar os velhos produtos da indústria cultural, ressignificando-os. Os sambas-canções abolerados de Altemar Dutra, Nélson Gonçalves, Francisco Petrônio ou Agnaldo Timóteo representaram um estágio dessa técnica e, inclusive, contra esta tradição se colocaria a bossa nova (bossa é jeito, e jeito novo de cantar e fazer música, com referência à velha canção pré-1958, a bossa velha). Mas a bossa nova também era música "comercial". Mesmo um politizadíssimo Carlinhos Lira concordaria. É por isso que os movimentos musicais da década de 1960 pós-golpe apareceram a partir de os desvãos da bossa nova, ainda que sendo seus fiéis tributários. Mesmo a jovem guarda tinha o que agradecer, pois não só Roberto Carlos era cantor que imitava João Gilberto como boa parte de seus cantores puderam sê-lo devido à descanonização das grandes vozes das décadas anteriores. De forma mais aprofundada, apresentam-se os cantores de protesto, como Chico Buarque, Sérgio Ricardo ou Geraldo Vandré, ou ainda o tropicalismo, de Caetano Veloso, Gilberto Gil e Tom Zé. Mas nenhum desses se livrou do fenômeno histórico da comercialização da música. A partir daí, verticaliza-se o processo, até que o final dos anos 1970 traz as grandes ondas rítmicas a começar, quiçá, pela discoteca. Logo viriam o roquenrol, a lambada, o pagode, o sertanejo, o axé, o fanque, o brega etcétera. Muito preconceito há com estes produtos culturais. São ditos e tidos como cultura de massas. E, de fato, o são, segundo creio queira dizer esta conceituação. No entanto, com o aprofundamento das técnicas mercadológicas, os antigos produtos vão ganhando nova aura (se pudéssemos profanar a concepção benjaminiana...) e, por conta de sua aderência no imaginário popular, tomam-se como antídoto aos novos passos da música massificada (assim, prefere-se o sertanejo romântico da década de 1990 ao sertanejo universitário da década de 2000; ou o pagode dos primeiros grupos ao pagode multifragmentado das bandas de agora...).

Refletir a partir desta realidade não pode querer significar aceitação passiva da indústria cultural como modelo sem mais de produção cultural. Não. Mas também não pode ser demonizada. A crítica à produção em série e à desertificação dos significados autênticos dos clamores populares nas rádios e tevês deve ser constante. Ocorre que o apelo idílico e excessivamente romantizado da cultura de "raiz" não pode nos imobilizar. É preciso que tenhamos alcance de massas, ainda que não massificado. Lênin esbravejando da sacada do palácio não faz mais revolução. É preciso pensar em uma teoria revolucionária da comunicação social e dos meios de comunicação em geral (das estradas aos satélites) no tempo presente.

E o que o direito tem a ver com isso? Nessa minha divagação, fica obscurecido o papel da discussão político-jurídica. Entretanto, se encararmos o direito como um instrumento construído pela civilização ocidental, veremos que se trata, também, de uma técnica; e se certo estiver Mílton Santos, há uma tendência (portanto, hegemônica) à unicidade da técnica. Um monolitismo jurídico-político se instaura filosoficamente, ainda que sociologicamente ele não consiga ser o absoluto da fenomenologia idealista. Daí que o paralelo com a arte popular pode ser feito, de modo a perceber o que é organização político-jurídica popular e o que é massificação da pluralidade normativa nos dias atuais. Há autores que proclamam a necessidade de retomada do poder normativo pelo povo (o "direito que nasce do povo"), no entanto é preciso especificar de que cultura se parte com relação a este mesmo bloco histórico-comunitário de oprimidos não-vitimizados. Isto porque no seio do popular aparece a cultura de massas (que é respaldada por uma objetividade popular mas seguida de uma subjetividade antipopular) e, ao mesmo tempo, a cultura popular (que aproxima, ainda que não perfeitamente, as condições objetiva e subjetiva das classes populares). O direito que nasce do povo não é monolítico, igualmente. E é preciso percebê-lo.

domingo, 5 de dezembro de 2010

Universidade popular na América Latina (3)


Após ter estabelecido um ponto de partida mínimo para a discussão sobre a universidade popular entre nós, creio ser este terceiro tempo de jogo o mais propício para me aproximar das possibilidades de realização e apoio de um projeto popular de difusão do conhecimento. Certamente, este sempre é o momento mais aguardado para todos os que sentem que o tempo urge e que não temos tempo a perder nem leitura a se gastar com historietas e gnosiologismos. Nesse caso, confesso que não segui o caminho ortodoxo do materialismo histórico. Deveria tê-lo feito, porém. Isto porque o início de meus comentários, pela tradicionalíssima abordagem histórica, levou-me a ser criticado e até mal interpretado, já que não trouxe, desde o princípio, a concretude dos fatos que faz a todos pôr os pés no chão e conhecer, de saída, onde se pode chegar. Independentemente disso, sempre é tempo de resgatá-los e, assim, transformo o caminho a partir do passado de experiências (primeira postagem) e do legado de teorias (segunda postagem), para agora chegar ao contemporâneo. Inevitavelmente, terei de ser sucinto, mas sigamos apesar de isso.

Como disse no início, há uma categorialização possível a partir da analogia com a alternatividade jurídica. O conjunto de teorias críticas do direito deu à luz várias posturas teórico-práticas: plurais, alternativas e insurgentes. Em três lentes, especialmente, podem ser vistas: o positivismo de combate, a partir do que se lança mão da técnica jurídica e do discurso hegemônico para levar às últimas conseqüências sua fraseologia democrática e coletivista; o uso alternativo do direito cuja formulação incide, mormente, em uma nova hermenêutica jurídica, fazendo com que a técnica não só aprofunde o que diz mas que diga mais do que se costuma dizer; e o direito alternativo ou pluralismo jurídico, em que se percebe o intuito de instauração de um contra-direito ou o encontro com direitos outros para além de o oficial, tendo por grande contribuição demonstrar os severos limites de uma atuação estatalista, ainda que isto não signifique, necessariamente, rejeição plena do estado.

Pois bem, esta tão bem conhecida tripartição me inspira, aqui, a uma analogia, ainda que esta de forma alguma pretenda-se sucessora da originária. Quero dizer, não é pelo fato de a inspiração ter surgido dos debates jurídico-políticos que sua aplicação no bojo da universidade popular deva significar que esta vem à reboque daqueles. Não e talvez o contrário. O direito não é a vanguarda de um processo de transformação social. E ainda que a educação pura e simplesmente também não o seja, ela virá, para os fins de minha reflexão, no mesmo passo que um novo modo de vida. Só assim para fazer sentido, lastreada pela visão total, a analogia que concebe uma universidade de combate, um uso alternativo da universidade e uma universidade alternativa ou insurgente. Três elementos mediadores para a compreensão da universidade popular hoje.

1) Universidade de combate

Em primeiro lugar, encontro na resistência universitária de hoje o germe para se pensar, ainda que diacronicamente, a universidade popular. Mesmo que soe demasiado sistemática e um tanto hermética a classificação que proporei a partir de agora, vou fazê-la a fim de que se torne mais didático meu discurso, não só para os que me lêem, mas para mim mesmo.

Antes de mais, é preciso ressaltar os dois grandes critérios que darão a liga para uma universidade popular com lastro na totalidade: o protagonismo estudantil e a vinculação com as classes populares. Na verdade, mais que protagonismo, pois que uma investida de autogestão institucional, em que todos aprendem e todos educam; e mais que vinculação, porque serviço, em função e a partir de as massas, é que se deve construir o horizonte da universidade popular. Sem isso, fica-se à mingua de projetos intelectualistas, por mais bem intencionados que sejam, descolados e desterrados com relação às verdadeiras necessidades da classe-que-vive-do-trabalho.

Dito isto, começa a fazer sentido o primeiro flanco em que se pode atacar a questão o problema dos conteúdos. O ato pedagógico é sempre político, assim como todo ato político também ensina. A revolução que não for dialógica, será antidialógica, e nesse momento terá perdido boa parte de sua potência. Por isso, é importante cultivarmos uma universidade de combate, tal qual nós a temos hoje. Penso que esta combatividade se escora em duas grandes formas de realização do conhecimento: pela mobilização política (não só em prol de melhores condições de ensino-aprendizagem, mas também em apoio a demandas extrauniversitárias relacionadas ao povo e aos trabalhadores); e pela busca de conteúdos insurgentes e contra-hegemônicos, em conformidade com a pauta de descolonização e libertação a que estamos premidos.

Vários são os limites deste primeiro âmbito da universidade popular. O primeiro deles é a inexistência de um projeto genuinamente autônomo de realização dela. A princípio, inclusive, ele não é desejável, uma vez que nos falta capacidade para gerir e administrar a universidade de forma a implementar a transição de uma universidade tradicional para uma popular. Seria aventureiro, a meu ver e hoje (ainda que isto gere constrangimento entre nós), uma tomada política da universidade. Não só estamos distantes da realização política deste feito, como também permanecemos afastados da formação técnico-administrativa para isso. Uma guerra de posição é possível, mas uma guerra de movimento é necessária. E para concretizá-la, precisamos nos capacitar. Eis aqui minha primeira grande polemização.

É justamente esta ordem de questões que coloca o problema ascendido pela década de 1990: é a universidade de combate possível de ser realizada nos marcos da privatização do ensino? Nas universidades e faculdades particulares é cabível esta proposta? Esta problematização se ressignifica a partir da grande expansão do ensino superior particular nos anos 90, pois que antes disso não seria de todo equivocado pensar num "sim" mais confiante. Desde então, porém, há que se cuidar desta resposta, já que há vários indícios que demonstram uma grande complexidade para o tema. Sem dúvida, o capital é voraz nestes espaços e as formas de gestão são cada vez mais gerenciais. No entanto, não é certo desperdiçar o potencial de muitos de seus docentes (em geral, titulados em programas de pós-graduação de universidades públicas) bem como de seus discentes, principalmente quando significativa parcela deles apresenta-se no processo de proletarização da sociedade. As faculdades "pagas" não são hoje espaço restrito aos filhos das classes dominantes, somente. Estes dividem espaço com as classes médias e até mesmo com setores das classes trabalhadoras. Portanto, fica o problema, que eu não ouso resolver aqui.

Eis que, portanto, seja preciso considerar de forma ciosa o papel da universidade tradicional, em especial quando propicia agremiação estudantil e reformulação crítica dos conteúdos. Seus limites são suas expectativas de superação deles mesmos. O caso do ensino jurídico não deixa de ser eloqüente, notadamente quando as correntes críticas do direito recolocam a problemática jurídica em novos moldes. A par de o fracasso contemporâneo deste movimento histórico de renovação do ensino jurídico, o exemplo coloca em tela a necessidade de pensarmos para além de a forma. Como acentuei na última postagem, não nos são suficientes novas metodologias de ensino, por mais dialógicas que sejam, se permanecemos ensinando a pandectística alemã como o código de nosso tempo. É claro, trata-se de um exemplo extremo, mas que aponta para o problema que faz dicotomizar duas filosofias da educação que não deveriam ser tão opostas assim: a pedagogia dos conteúdos, de um Demerval Saviâni, e a pedagogia do diálogo, de um Paulo Freire. Daí vir a ser muito interessante retomar estes teóricos como marcos epistêmicos, muito mais que pedagógicos, e inseri-los no debate coetâneo sobre o "impensar as ciências sociais", de Imanuel Válerstein (Wallerstein, na grafia germânica original). Com este debate aparece uma nova divisão do trabalho intelectual, voltado para a práxis e para as necessidades populares.

Se à reformulação crítica dos conteúdos seguir a mobilização por reivindicações políticas por parte dos atores do ensino-aprendizagem, o potencial popular da universidade se alarga. É um vínculo necessário para com a comunidade para a qual deve a universidade trabalhar. Este é o projeto nacional de universidade que mobilizou um Anísio Teixeira ou um Darci Ribeiro, por exemplo. Dessa forma, voltam a fazer sentido as lutas do movimento estudantil desde Córdoba, tendo chegado às raias da loucura humana com o massacre dos estudantes mexicanos na década de 1960 - o massacre de Tlatelolco, de 1968. Daí decorrem os movimentos contemporâneos de ocupação das reitorias (como viveu fortemente o Brasil a partir de 2005 - USP, UFPR, UFSC etc.) por estudantes ou a significativa greve de estudantes na Universidade de Porto Rico, colônia estadunidense em pleno século XXI. Não só, contudo, as mobilizações estudantis são dignas de nota, pois o movimento de trabalhadores da educação é muito forte também: a rebelião de Oaxaca, em 2006, teve seu estopim em uma greve de professores (não necessariamente do ensino superior, mas a meu ver esta reflexão cabe para todo o sistema educacional, tal qual colocado por Paulo Freire); ou, também, o bastante representativo movimento docente de Mendoza, na Argentina, em que se propôs uma reforma universitária que reformulava todos os currículos, com destaque para os de filosofia, o que custou a vida e o exílio de muitos professores.

2) Uso alternativo da universidade

Não só a política de enfrentamento e a radicalização dos conteúdos são germinais para se pensar a universidade popular ou as universidades populares. O problema da forma de como se construir o conhecimento também é nodal. Na verdade, são propostas incindíveis. Aqui, estão sistematizadas em momentos diferentes, porque na realidade concreta têm perfazido mediações distintas, ainda que intercomunicantes.

Aqui, aparecem os coletivos estudantis de prática de "comunicação" (para usar a expressão freireana, ao invés da tradicional "extensão"), verdadeiros grupos de reflexão e ação no seio da universidade, nem sempre apoiados como deveriam ser pela instituição, e que assumem o protagonismo de um novo tipo de fazer universidade. Na esteira deles, seguem as pesquisas coletivas envidadas por professores e estudantes, de graduação e pós-graduação, que conduzem a resultados que denunciam a realidade social e, em níveis avançados, que servem às classes populares, seja na cidade ou no campo. Tanto melhor quanto mais a comunicação estudantil e a pesquisa coletiva se integrem num mesmo movimento. Melhor ainda se respaldado pela organização política de estudantes, professores e trabalhadores da universidade, com uma aplicação diferenciada de seus conhecimentos no âmbito do ensino. Quando as quatro dimensões se unem, desfaz-se a cisão que vige hoje em dia e se começa a rumar para uma efetiva e autêntica universidade popular. Pena que esta quádrupla junção seja tão rara ainda entre nós. Os professores que formaram a geração que participa deste blogue tiveram grande papel nesta reestruturação, todavia seu projeto parece ter se estancado na formulação teórica da crítica aos ramos do conhecimento (mais uma vez, aqui, tomo a "ciência" jurídica como paradigma de análise, sem querer, contudo, excluir os demais campos). Cabe à nossa geração não só o resgate desta teoria, mas a colocação em prática de sua radicalidade, na interação entre forma e conteúdo.

A título de exemplos mais evidentes do que seja este uso alternativo da universidade, poderia lembrar da experiência revolucionária cubana em que, em 1961 (o ano da educação), todos os estudantes foram convocados a participar de uma campanha de alfabetização do povo, tendo se suspendido o calendário escolar para que os estudantes alcançassem todos os rincões de Cuba em prol de tão significativa tarefa. No Brasil, um exemplo mais modesto, mas não menos importante, foi o Movimento de Educação de Base, também em prol da alfabetização, que teve apoio dos CPCs (Centros Populares de Cultura) da UNE (União Nacional de Estudantes), de 1958 a 1964. Outro bom exemplo a ser aventado, em termos históricos, é o da fundação da primeira Faculdade de Sociologia da América Latina, na Universidade Nacional da Colômbia, levada a cabo em 1960. Foram seus pioneiros, dentre outros, o padre Camilo Torres e o sociólogo Orlando Fals Borda e ambos teriam uma atividade político-científica das mais importantes do continente, sendo que o primeiro, um teólogo da libertação, iria para a guerrilha armada, após intensa vida sacerdotal e acadêmica, e o segundo desenvolveria o método da pesquisa participante, crucial para pensarmos a educação e a universidade populares hoje.

Quanto a nosso momento presente, um uso alternativo da universidade a ser ressaltado é o das quotas raciais, étnicas e sociais. Tema sensivelmente polêmico também este, parece-me que, apesar de paliativo, é ele fundamental para a democratização do ensino superior no Brasil. E democratizar também é uma forma de torná-la popular, ainda que limites enormes estejam aí alocados. Há toda uma discussão presente que deve ser levada em consideração, mas é preciso trabalhar com estes dados da maneira mais racional possível. As quotas ou o aumento de vagas no ensino público são vantagens pelas quais pagamos um preço importante. Nem por isso, é avanço que deva ser desprezado. Em verdade, é uma contradição posta no seio da universidade atual, mas seus efeitos colaterais permitem uma ampliação da discussão interna sobre o assunto, como também precariza mais a estrutura universitária de agora, o que pode levar a um ainda maior protagonismo estudantil, mesmo que a ligação com as classes populares só se possa fazer por meio de pesquisa e extensão.

Um último exemplo que pode e deve ser lembrado, ainda que não caiba um aprofundamento aqui, é o da integração latino-americana por intermédio de instâncias universitárias. A experiência mais simbólica, sem dúvida, é a da UNAM (Universidade Nacional Autônoma do México) e seu CIALC (Centro de Investigações sobre América Latina e Caribe), seguindo-a as experiências de institutos e conselhos voltados para a pesquisa latino-americana, como a CLACSO (Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais), com sede em Buenos Aires, na Argentina, ou o IELA (Instituto de Estudos Latino-Americanos), na UFSC, em Florianópolis. Por fim, cabe assinalar o caso UNILA (Universidade Federal da Integração Latino-Americana), ainda nascente e também pouco pacífico quanto às interpretações, mas mesmo assim digno de nota.

3) Universidade alternativa ou universidade insurgente

Por fim, cabem algumas palavras nesse longo panorama a uma proposta radical, insurgente e de libertação de universidade popular. Trata-se de uma tal que leva às últimas conseqüências os indícios populares das duas categorias anteriores, as quais colocam-se ainda dentro dos marcos de uma universidade constitucional de direito (para, jocosamente, perder as estribeiras com a analogia da alternatividade jurídica). Apesar de serem diacrônicas, as formas da universidade popular devem levar à universidade alternativa, já que a factibilidade crítica é um princípio de libertação dentro de uma mirada ética. Contentar-se com o horizonte da universidade de combate e de seu uso alternativo é esquivar-se da materialização última que nosso tempo histórico indica seja a mais importante. O "popular" aposto ao lado da expressão "universidade" não está ali à-toa. E como pode o popular deixar de ser uma designação gelatinosa e sem conteúdo para se apresentar como algo que tenha um significado forte? A meu ver, apenas irmanando-se com as classes populares naquilo que elas têm de mais concreto, vale dizer, sua organização política, econômica e cultural. Falo, portanto, dos movimentos populares e sua proposta educativa.

Este é o momento em que o protagonismo estudantil se funde com o protagonismo dos trabalhadores e das massas, tornando-se estes seus realizadores e destinatários. Momento essencial para se pensar a transformação qualitativa da realidade e sem o qual continuaremos patinando no solo escorregadio das soluções paliativas, provisórias, instáveis. É óbvio que não posso ser o profeta da revolução, já que ela não aparece como mudança da totalidade sócio-política do continente. No entanto, ela floresce na práxis insurgente de mulheres e homens espalhados da Patagônia ao Rio Bravo do Norte.

As grandes experiências históricas dos movimentos anarquista, anarco-sindicalista, cooperativista e socialista já contribuíram bastante para esta radicalização da alternativa universitária. Vimos isto no experimento, por exemplo, de Manoel Bonfm, no Brasil. Mais do que o resgate - relido, por sinal - destas campanhas educacionais de movimentos políticos dos séculos XVIII, XIX e XX, em nosso continente, é preciso encarar a questão sob o prisma de que os movimentos populares (que não se reduzem à noção de "novos movimentos sociais", estabelecida na década de 1970) almejam a totalidade da vida comunitária, sendo que alguns deles propugnam pela transformação radical da realidade. Daí que agregam em sua produção da vida, o momento infra-estrutural junto ao superestrutural, com solução de continuidade entre eles. Por isso, incubaram os movimentos populares a forma histórica da educação popular (visível no caso do MEB e da proposta de Paulo Freire) e trazem em seu discurso hodierno a ênfase na formação e capacitação. Este, aliás, foi um elemento discursivo apropriado pelos grupos de assessoria jurídica universitária - característicos de um uso alternativo da universidade - sendo recorrente o apelo à formação entre os jovens estudantes de direito. Apelo por demais necessário, diga-se de passagem.

Por mais que, a partir da articulação global de movimentos sociais como o Fórum Mundial Social, já tenha surgido a proposta intercultural de uma Universidade Popular dos Movimentos Sociais (sendo, inclusive, mote de acadêmicos contemporâneos como um Boaventura de Sousa Santos), as grandes iniciativas parece continuarem inseridas nos movimentos particularizados. Um dos casos mais exitosos é da Universidade Popular Mães da Praça de Maio, na Argentina, oriundo do movimento de resgate da memória estirpada pela cruel ditadura argentina. Completou 10 anos, em 6 de abril deste 2010, a proposta de formação política e cultural das mulheres argentinas que há cerca de 3 décadas procuram por seus filhos desaparecidos e pela história solapada de seu país e de seu continente.


Já a Escola Nacional Florestan Fernandes é considerada uma verdadeira universidade dos trabalhadores, tendo surgido, entre 2000 e 2005 (ano em que se consolidou), pelo esforço dos trabalhadores rurais sem-terra e de muitos simpatizantes. Muitas equipes de formação se inspiram no projeto da Escola Nacional, localizada em Guararema, em São Paulo, projeto o qual, por sua vez, segue a trilha de vários grupos de intelectuais e militantes que até então fizeram o papel de formador das massas, organizadas ou organizando-as. Em termos de Brasil, é indispensável conhecer esta proposta e aderir a ela na medida das possibilidades de cada um (ver página da Associação dos Amigos da Escola Nacional Florestan Fernandes).

Como já ressaltei, a universidade popular insurgente ainda não está plenamente apresentada como um fenômeno, mas sua viabilidade histórica está presente em tantas experiências que os últimos três domingos me permitiram rememorar. Muita coisa ficou de fora, mas o mais importante é reavivar o debate e perceber a sua premência. Não devemos nos restringir ao formalismo do ensino superior mas tampouco perder o horizonte ético-utópico de transformação de nosso mundo atual. E isto passa pela transição do modo de produzir o conhecimento atualmente, sabendo resgatar o que de importante há na universidade constitucional, assim como aquilo que se mostra como fulcral nas tentativas dos movimentos populares, nossos sujeitos históricos da transformação. Espero que tenha valido a pena o debate e que sirva de incentivo a todos nós.

domingo, 28 de novembro de 2010

Universidade popular na América Latina (2)


Sigo, aqui, minha reflexão sobre a universidade popular (iniciada na postagem do último domingo) e não sem considerar o peso que tal reflexão tem entre-nós, uma vez que gera muita expectativa e paixão. Os limites a que estou submetido são óbvios, em especial por ser exercício de (ainda) livre pensante, o que torna impossível uma autêntica universidade alternativa (para lembrar de minha última proposta em classificar a universidade popular conforme seus níveis de alternatividade: universidade de combate; uso alternativo da universidade; e universidade alternativa). Assim, quero frisar: este esboço reflexivo é incompleto, mas segue uma linha mínima, a qual devo, por ora, evidenciar. Trata-se de resgatar o histórico insurgente da universidade popular em nossa América (tarefa de minha primeira postagem), sendo exemplares as experiências do México e de Córdoba; colocar o problema da universidade popular no centro das preocupações do projeto de libertação do continente latino-americano (tarefa de hoje), seja como ponto a ser enfrentado com mais fôlego pelas teorias de libertação, seja como resultado das práticas revolucionárias vivenciadas na América Latina; e projetar a universidade popular, no encontro entre as suas formas de transição do que se tem hoje com o que se quer também hoje, tendo como referência a práxis dos movimentos populares insurgentes (tarefa do domingo próximo).

Inicio a reflexão de hoje perguntando: por que resistimos tanto em pensar nos conteúdos da universidade popular em nome de sua forma? Por que resistimos tanto em pensar na transição de uma universidade que está de costas para a realidade para uma que seja o seu oposto? Por que colocamos o processo educativo como o ponto gravitacional da mudança da sociedade em que vivemos?

Pois bem, meu primeiro rascunho de resposta - ainda que sem pretensão de eliminar as complexidades inerentes a esta problemática - vai no sentido de perceber que, em geral, se aposta em uma universidade que leve a seu reboque o processo revolucionário de transformação da realidade. Ou seja, antes a nova universidade, depois a nova sociedade. A meu ver, ingenuidade. Obviamente, não devemos cair em simplistas argumentos de quem vem antes, a subjetividade renovada ou a renovação das estruturas. Eis aí um processo dinâmico e envolvido na produção da vida, a qual aponta para algo que nunca pode ser esquecido pelos críticos: a práxis. A universidade popular é o todo que envolve forma, conteúdo e implementação do novo. É a unidade que dará a autenticidade ao projeto de sua popularização cujo significado está muito mais próximo ao de socialização que ao de popularidade.

É neste sentido que devemos estar atentos, todos nós, para o perigo do espontaneísmo educacional, o qual se revela como o contrário lógico da universidade popular alternativa. Daí que, como eu dizia, faz sentido pensar sobre este assunto a partir de uma gnosiologia liminar e de libertação desde a América Latina. Para mim, esta perspectiva não é suficiente por si, fazendo-se necessário pôr os olhos sobre a práxis revolucionária continental, assim como também pôr os pés no chão e as mãos na massa. A despeito de isso, porém, um conjunto de teorias de libertação tem muito a nos oferecer, no intuito de não jogarmos fora os grandes projetos teóricos que envolveram os latino-americanos, em especial no último século. É certo relembrarmos de um Mariátegui, como já fizemos, ou mesmo considerar a figura de um libertador e educador popular, como José Marti. Menos certo, contudo, é descuidar da experiência histórica levada a cabo no último meado do século XX, em termos de educação popular.

A proposta histórica de Paulo Freire não é fruto do acaso. Duas ordens de elementos se avizinham dela e dão-lhe um sentido inalcançável caso nos afastemos de tais ordens. Por um lado, Freire segue, de uma maneira ou de outra, o projeto de educação pública brasileira iniciada por Anísio Teixeira e sua aproximação, de teor nacionalista, com as classes populares (conferir a Biblioteca Virtual Anísio Teixeira). Por outro lado, Paulo Freire é fruto de um momento histórico em que fervilhavam experiências revolucionárias e que fizeram surgir as teorias de libertação latino-americanas, a partir da perspectiva dos "oprimidos".

Vejamos o que esta dupla genealogia nos informa. Com Anísio Teixeira, procura-se cristalizar no Brasil a educação para as massas. De alguma forma, este legado é assumido pelo ISEB - Instituto Superior de Estudos Brasileiros e sua versão nacional-desenvolvimentista do Brasil seria assumida em larga medida por Freire nos seus primeiros escritos e suas pioneiras ações. No entanto, é insuficiente dar mostras dessa tradição a partir da qual Paulo Freire se forjou (como o é, igualmente, colocá-lo no rol dos católicos progressistas). De uma banda, a "escola nova" de Anísio Teixeira enquistava-se de um certo liberalismo pedagógico (ainda que moderado) - o qual é essencial de ser entendido para afastarmos de vez suas infensas e deletérias influências, dentre as quais se destaca o espontaneísmo educacional e o papel secundário do professor no ato pedagógico -; de outro flanco, o isebianismo teve uma muito curta duração para os propósitos a que se pretendia dedicar, tais quais a reforma do Brasil e uma nova forma de pensar a realidade nacional. Neste caso, cabe ressaltar as figuras de Alberto Guerreiro Ramos e Álvaro Vieira Pinto, ambos homenageados por Freire em seus textos, sendo que o primeiro nos deixaria uma profunda crítica ao colonialismo intelectual e o segundo a perspectiva da construção de uma universidade nacional, a qual seria seguida de perto por Darci Ribeiro - ainda que este tenha sido um anisiano confesso (para este debate, confrontar os textos de Vieira Pinto, "A questão da universidade", e Ribeiro, "A universidade necessária" - vários livros deste último disponíveis em: Fundação Darci Ribeiro).

Paulo Freire, todavia, logo se desvencilharia de uma submissão a esta herança (que, em grande medida, merece ser resgatada) e apresentar-se-ia com um pensamento inovador. Se em seu "Educação como prática da liberdade" o pedagogo ainda é um nacionalista, em seus escritos seguintes, já redigidos no exílio, como "Extensão ou comunicação?" e "Pedagogia do oprimido", Freire já dá mostras de seu materialismo histórico (ver a Biblioteca Digital Paulo Freire). Todo o seu percurso como educador, porém, traria a marca de um grande projeto pedagógico para o Brasil e deve sempre ser relembrado: para além de a alfabetização de adultos, Paulo Freire formulou um "sistema" de educação alternativa que previa uma universidade popular de transição a partir da extensão universitária, coroando-se com um Instituto de Ciências do Homem e um Centro de Estudos Internacionais, voltado para o terceiro mundo. Esta perspectiva de totalidade reflete a preocupação freireana com respeito à práxis dos trabalhadores e sua tomada de poder, o que passaria pela educação e universidade populares. Nesse sentido é que se pode retomar a questão: o que é conscientização? Certamente, não é dar consciência a ninguém, mas sim um trabalho conjunto de troca mútua, em que todos aprendem e ensinam, mas com um objetivo indene, a revolução.

Mas já que falamos de "alternatividade", esclareçamos o que vem ela a significar. Não há, entrementes, menção a uma proposta alternativa que pretenda conviver com o "egotivo" (ego X alter), ou seja, com o que está-aí, com o hegemônico. Trata-se de uma alternativa que supere o estado de coisas da universidade elitista de hoje, mesmo que isso não signifique desprezar suas contra-hegmonias internas.

Por isso a importância de se pensar a universidade popular desde a América Latina, mas também trabalhar para ela. Assim, as experiências revolucionárias pelas quais o continente passou são efetivos testemunhos. Ainda que nos faltem elementos, é inegável que a socialização do ensino em Cuba tornou-se possível com a revolução de 1959, assim como o socialismo do século XXI também tem investido nisso (e, dessa forma, abarcamos o ciclo revolucionário latino-americano tão destacado pelas teorias de libertação, em especial por Enrique Dússel: Cuba, Chile, Nicarágua, Chiapas, Venezuela, Bolívia e Equador; ainda assim, há de se atentar para os limites e contradições de todos estes processos, mesmo aqueles já findados).

Todo este conjunto de experiências práticas e teóricas deve ser tema da universidade popular. De nada adianta apostarmos na "forma" como sendo o carro-chefe desta discussão. Muito pouco resolveremos o nosso problema, caso creiamos que o diálogo pode melhorar o ensino jurídico se nos mantivermos aferrados ao eurocentrismo teórico e ao etnocentrismo das práticas. Muitíssimo pouco se avançará, caso entendamos ingenuamente que a universidade popular deve ser expressão democrática do respeito às diferenças, se estas acentuarem o mercado de trabalho e as técnicas que instrumentalizam o mundo de hoje. Pode ser que estejamos, com a forma dialógica, envidando um uso alternativo da universidade, mas a sua alternatividade revolucionária estará distante ainda assim. Que eu não soe, com meu depoimento reflexivo, como um antidialógico, porque, ao contrário, penso que a teoria da ação dialógica de Paulo Freire nos é central e é a partir dela, por exemplo, que devemos ressistematizar o ensino jurídico (e todos os demais "ensinos"). Mas esta teoria pressupõe a denúncia e o anúncio de uma nova sociedade. Como fazê-lo? Espero que nos indaguemos sobre isso e deixemos nossas opiniões não só aqui no blogue.

Ver também outras postagens de nosso blogue sobre o tema:
- Universidade popular, de Luiz Otávio Ribas;

domingo, 21 de novembro de 2010

Universidade popular na América Latina (1)

Uma reflexão sobre "universidade popular" na América Latina mereceria várias postagens. Um texto que contemple esta discussão poderia se tornar muito longo caso se quisesse ter qualquer pretensão de exaustão. Obviamente, não será esta minha postura aqui no blogue. Vou fazer alguns apontamentos, tentando encaminhar a problemática para um horizonte comum que nos deve unir a todos, assessores jurídicos populares, teóricos críticos do direito e militantes políticos de movimentos e organizações populares.

Para início de conversa, vale a pena resgatar um momento histórico marco para a libertação da América Latina: a revolução mexicana de 1910. Há exatos cem anos, completados ontem (20/11), o México passou por um momento de absoluta efervescência política, econômica e cultural, sendo palco de um experimento revolucionário, ainda que bastante complexo e cheio de contramarchas, que daria ensejo ao zapatismo, ao muralismo e à constituição social de 1917. A revolução mexicana é pedra angular para a discussão sobre a universidade popular na América Latina porque, em seu contexto, surgiu uma das primeiras tentativas de levá-la a cabo, a Universidade Popular Mexicana, realizada por uma aliança de intelectuais mexicanos.

Em verdade, o experimento mexicano, que durou de 1912 a 1920, tendo sido resgatado em vários outros momentos da revolução a partir de então, não foi o pioneiro absoluto na catalogação de tais experiências. No Brasil, mesmo, se pode encontrar um antecedente, na Universidade Popular de Ensino Livre, com participação de vários intelectuais anarquistas e socialistas - dentre eles Elísio de Carvalho e Manoel Bonfim - que tinha por objetivo desacademicizar e desbacharelizar o ensino superior do país, tornando possível a "instrução superior e a educação social do proletariado" (conforme diria Carvalho, em 1907). A experiência da UPEL durou poucos meses, entretanto. E isto devido a cisões internas do grupo que estava à frente do projeto. Nesse sentido, é importante lembrar que a universidade latino-americana foi cosntruída para a formação das elites locais desde os inícios da colonização hispânica, algo que no Brasil só se daria com a declaração de independência política. Ainda quanto ao caso brasileiro, as tardias idéias republicanas surgiriam com o ímpeto do discurso da universalização do ensino básico, mas sem que esta pretensão atingisse a "instrução superior". Tanto assim é que só o século XX assistiria ao surgimento da primeira universidade brasileira (na provinciana e ervateira capital paranaense, ainda que este título seja discutido pelos fluminenses).

Sem dúvida nenhuma, porém, a grande experiência que nos guia a todos, no entendimento e ato de fé de que a universidade popular é um caminho viável, é a da reforma universitária pretendida pelos estudantes argentinos, em Córdoba (1918), que daria ensejo a vários movimentos análogos e, de alguma forma, unificados, em toda a América Latina. O relato de José Carlos Mariátegui, em seus "Sete ensaios de interpretação da realidade peruana" (ensaio IV, sobre "O processo da instrução pública"), é eloqüente, mostrando a vivência de um mesmo processo para além de a Argentina, chegando ao Peru, Uruguai, Chile e Cuba, dentre outros países. Aliás, Mariátegui trabalharia na Universidade Popular González Prada, em Lima, e sua atuação estaria muito próxima à de outros pensadores críticos de então que realizariam a Universidade Popular José Marti, em Cuba, ou a Universidade Popular Lastarria, no Chile. Não é à-toa que os intérpretes latino-americanos do marxismo no continente imputam a este período histórico o momento revolucionário fundador da insurgência de nossa América. A América Central em ebulição, o México revolucionário, e as experiências indígenas e operárias da América do Sul perfazem o auge do primeiro meado do século XX.

Em termos de proposta de universidade popular, entrementes, dois elementos irão se destacar neste momento: o protagonismo estudantil e o objetivo de tornar acessível o conhecimento científico às classes populares latino-americanas, em especial os trabalhadores urbanos. Estes dois pontos são cruciais para a compreensão do fenômeno da universidade popular entre nós, algo que deve conduzir nossa análise nos momentos subseqüentes desta investida conscientizadora, a qual permanecerá viva como um legado para a atualidade, articulando-se em torno dos movimentos populares. E disto me ocuparei na próxima postagem, mas não encerro esta sem antes fazer menção a uma projeção que deve restar esclarecida para que melhor se compreenda meu comentário: precisamos estabelecer uma analogia entre a alternatividade jurídica e a da universidade popular. Assim, a partir do resgate histórico da construção de experiências de univeridade popular na América Latina, é possíval entender que há três grandes dimensões de sua fenomenologia: a da universidade de combate, acentuando os conteúdos populares ainda que dentro dos padrões hegemônicos de ensino; o uso alternativo da universidade, que radicaliza a prática extensionista e o papel social da pesquisa coletiva; e a universidade alternativa, proposta que não deve ser protagonizada por intelectuais livre-pensantes descolados dos sujeitos históricos que devem protagonizá-las, já que protagonistas da cultura popular, a classe-que-vive-do trabalho.