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quinta-feira, 24 de março de 2016

AJUP e a formação contra hegemônica no direito

Continuando a publicação de textos produzidos na disciplina tópica “Assessoria Jurídica Popular”, ministrada no primeiro semestre de 2014, na Universidade Federal do Paraná, por Ricardo Pazello, apresentamos um texto de Kamila Anne Carvalho da Silva, graduada em direito pela UFPR e integrante do MAJUP Isabel da Silva. Nele, abordam-se as possibilidades de uma formação contra hegemônica no direito, a história e a composição das universidades brasileiras e os conflitos entre a organização das AJUPs estudantis e os cursos jurídicos, além de discutir meios de resistência e possíveis contraofensivas da AJUPs dentro das universidades.

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AJUP e a formação contra hegemônica no direito

Kamila Anne Carvalho da Silva

A Universidade brasileira sempre foi um espaço elitizado, surgiu pública e gratuita para que toda a sociedade dividisse os custos da formação intelectual das elites (o que não implica que não deva ser pública e gratuita). O curso de direito, um dos primeiros a surgir e até hoje um dos mais "tradicionais", foi instituído para formar a administração do novo Estado Nação que surgia, portanto reservado exclusivamente para os filhos dos grandes latifundiários.
De lá pra cá a Universidade mudou, mas não estruturalmente. O curso de direito tornou-se um pouco mais permeável aos trabalhadores e trabalhadoras, ainda que estes e estas estejam prioritariamente nas pequenas faculdades e centros universitários de qualidade duvidável. Políticas públicas como o sistema de cotas, vestibulares indígenas e as recentes turmas do PRONERA, além da abertura de cursos noturnos, tornaram os cursos de direito das universidades públicas um pouco, bem pouco, mais acessíveis. No entanto, o conteúdo do curso tem a mesma função que dos primeiros cursos de direito, defender os interesses da elite do alto da legitimidade universitária. E faz pouca diferença se o curso é um dos ditos "críticos", a sala de aula não é capaz de nos fazer refletir a quem serve esse direito que estudamos. Além disso, a lógica universitária mantém rígida a hierarquia entre professor — aquele que detém o conhecimento — e aluno — aquele a quem, como a própria etimologia da palavra diz, falta a luz do conhecimento. Assim, cabem aos, e as estudantes apenas reproduzir.
Nesse sentido, a Assessoria Jurídica Popular se coloca como um espaço de produção de saber contra hegemônico dentro da Universidade, já que se propõe a refletir a quem serve o direito e o conhecimento universitário e a agir concretamente na realidade, ainda que dentro de suas limitações. Se pautando pelas demandas coletivas populares e tendo como suas bases epistemológicas a educação popular, a teoria crítica da sociedade e a teoria crítica do direito, a AJUP subverte a função da universidade porque traz pra dentro do sacrossanto espaço do saber as demandas populares, põe seus integrantes em contato com o conhecimento popular, os faz pisar no barro e ver gente de verdade, não gente de Academia. É contra hegemônica também porque é construída por estudantes, ainda que às vezes junto com professores e professoras, de forma horizontal. A autonomia estudantil é sem dúvidas uma das características centrais da AJUP, sem a qual dificilmente podemos ter a pretensão de que ela se torne um espaço de formação militante. Sem protagonismo estudantil o e a estudante não pensam politicamente os rumos da AJUP e consequentemente não refletem, ou refletem de forma limitada, sobre a sua prática, sobre como isso se contrapõe ao que é dito em sala de aula. Sem protagonismo estudantil não há reflexão sobre a quem serve o direito e o conhecimento universitário. A AJUP, cabe destacar, é um espaço de produção de conhecimento marcado pela relação entre sujeitos estabelecida com a comunidade, portanto um conhecimento que traz ao espaço acadêmico as lutas populares, ainda que pudessem ser muito melhor trazidas pelos próprios sujeitos luta. Assim, é parte do papel da AJUP fazer resistência à produção de conhecimento tradicional da Universidade, intrinsecamente ligada aos interesses das classes dominantes.

No entanto, precisamos ir além de resistir à forma de produção do conhecimento posta. Uma forma de fazer isso é traspor a nossa práxis para a produção teórica acadêmica. É impossível que os membros da AJUP não pesquisem, mas costumamos deixar nossas conclusões apenas para nós. A existência da AJUP já subverte, por si só, a lógica universitária, mas levar essa reflexão a pesquisa acadêmica potencializa essa capacidade. A pesquisa acadêmica ainda permite que usemos a legitimidade dada ao saber proveniente da academia em favor das causas populares. É compreensível que exista uma certa aversão as burocracias da produção académica, aos seus prazos, suas bancas, seus intelectuais sendo prolixos e usando expressões difíceis de entender. Motivo maior pra que a gente também interfira nesse espaço, "formalize", nossas reflexões, mas com a nossa cara, tentando levar as pessoas de verdade pros anais e revistas, as tratando como sujeitos da produção desse conhecimento. A pesquisa acadêmica ainda é uma maneira de guardarmos o que tiramos da AJUP para as próximas gerações, permitindo, que os acúmulos dos núcleos não se percam. É claro que individualmente, especialmente em suas monografias, alguns membros da AJUP se propõem a isso, mas a pesquisa na AJUP deve ser uma tarefa coletiva, tocada ao longo dos trajetos individuais nela, e a muitas mãos.

quinta-feira, 17 de março de 2016

Fazer a universidade: AJUP e educação jurídica

Hoje, na coluna AJP e Universidade, trazemos um texto de Isabella Madruga da Cunha, graduada em direito pela Universidade Federal do Paraná e veterana do Movimento de Assessoria Jurídica Universitária Popular (MAJUP) Isabel da Silva, que aborda uma importante faceta da prática da AJUP estudantil: sua intervenção dentro das faculdades de direito, com o objetivo de reformular a universidade e o ensino jurídico como um todo e, em especial, efetivar a valorização da extensão nos currículos. Esta contribuição foi escrita para a disciplina tópica “Assessoria Jurídica Popular”, ministrada por Ricardo Prestes Pazello, no primeiro semestre de 2014.

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Fazer a universidade: AJUP e educação jurídica

Isabella Madruga da Cunha

Queremos aqui trazer uma perspectiva diversa do que geralmente se aborda ao se falar das assessorias jurídicas universitárias populares e sua relação com a Universidade. Em geral, partimos do fato de que as AJUPs permitem a incidência direta de estudantes na realidade concreta, numa perspectiva revolucionária de alteração dessa realidade numa ação dialética e de troca de saberes com as coletividades com as quais se atua e se busca realizar assessoria-comunicação (utilizando a categoria de Freire).
Sem dúvida, esta é a face e a consequência mais evidente das AJUPs e de maneira alguma, ao propormos uma analise de sua outra face, queremos menospreza-la, apenas chamar a atenção para outras potencialidades transformadores das AJUPs. As potencialidades de que se fala são as para dentro, para o interior das universidades.
É que o estudante extensionista passa a ter outra percepção do que é (ou deveria ser) educação jurídica. Vamos explicar melhor. A despeito de estar positivado na Constituição (já que é Direito, por que não falar da norma?) que a educação universitária será composta de ensino, pesquisa e extensão, o tão falado tripé parece mais um mantra declamado pelas instituições do que uma diretriz curricular.
No caso da educação jurídica, especificamente, podemos visualizar duas tendências: a tecnicização do ensino, se voltando para o exame da ordem ou para concursos em geral; e diametralmente oposta, a abstração teórica num ensino que consegue se desprender completamente da realidade e se perder na "ciência" do Direito. Em ambas, não há espaço para as AJUPs.
Nesse sentido, a discussão acerca dos currículos dos cursos de Direito importa muito para as assessorias jurídicas universitárias. Porque apesar de muito aclamado, o mantra do já mencionado tripé não se realiza nas universidades. O único presente efetivamente nos currículos é o ensino, sendo a extensão e a pesquisa, na maioria das vezes, simples “horas complementares".
Dessa forma, fica a cabo do estudante compatibilizar um currículo inchado de disciplinas, num ensino verticalizado, aulas expositivas, no qual o estudante é apenas aluno, simples receptor do conhecimento do magnânimo doutor à sua frente, com a prática da extensão e da pesquisa. E porquanto o ensino é obrigatório, a pesquisa e a extensão são facultativas, são apenas para aqueles alunos que têm aptidão (e uma enorme força de vontade! além da real possibilidade de dedicar o seu tempo escasso para estas "práticas"!).
Assim, a própria existência das AJUPs significa a disputa de um conceito de educação jurídica, bem, não apenas um conceito, mas uma pratica, mas efetivação do que os Projetos Politico Pedagógicos dos cursos trazem em sua maioria, do que a própria Constituição diz, de uma real educação jurídica - aquela que se forma de ensino, pesquisa e extensão. Que só se dará através da associação indissociável destas três faces da educação que queremos, uma educação crítica, emancipadora, construtiva.

Se os currículos dos cursos de Direito continuarem a tratar do ensino, da pesquisa e da extensão, ou seja, da educação, de forma apartada completamente dissociada, a missão colocada para as Universidades nunca se realizará. É por isso que um querido professor coloca que é necessário abandonar este mito do "tripé" e se adotar a metáfora do tronco, um tronco único, em que haja a real intersecção da extensão e da pesquisa com o ensino. É por isso que defendemos que as AJUPs também devem e precisam, pelo seu caráter resistente, se voltar para dentro dos cursos de Direito, para dentro da Universidade, e disputar o conceito de educação jurídica colocado.

domingo, 5 de dezembro de 2010

Universidade popular na América Latina (3)


Após ter estabelecido um ponto de partida mínimo para a discussão sobre a universidade popular entre nós, creio ser este terceiro tempo de jogo o mais propício para me aproximar das possibilidades de realização e apoio de um projeto popular de difusão do conhecimento. Certamente, este sempre é o momento mais aguardado para todos os que sentem que o tempo urge e que não temos tempo a perder nem leitura a se gastar com historietas e gnosiologismos. Nesse caso, confesso que não segui o caminho ortodoxo do materialismo histórico. Deveria tê-lo feito, porém. Isto porque o início de meus comentários, pela tradicionalíssima abordagem histórica, levou-me a ser criticado e até mal interpretado, já que não trouxe, desde o princípio, a concretude dos fatos que faz a todos pôr os pés no chão e conhecer, de saída, onde se pode chegar. Independentemente disso, sempre é tempo de resgatá-los e, assim, transformo o caminho a partir do passado de experiências (primeira postagem) e do legado de teorias (segunda postagem), para agora chegar ao contemporâneo. Inevitavelmente, terei de ser sucinto, mas sigamos apesar de isso.

Como disse no início, há uma categorialização possível a partir da analogia com a alternatividade jurídica. O conjunto de teorias críticas do direito deu à luz várias posturas teórico-práticas: plurais, alternativas e insurgentes. Em três lentes, especialmente, podem ser vistas: o positivismo de combate, a partir do que se lança mão da técnica jurídica e do discurso hegemônico para levar às últimas conseqüências sua fraseologia democrática e coletivista; o uso alternativo do direito cuja formulação incide, mormente, em uma nova hermenêutica jurídica, fazendo com que a técnica não só aprofunde o que diz mas que diga mais do que se costuma dizer; e o direito alternativo ou pluralismo jurídico, em que se percebe o intuito de instauração de um contra-direito ou o encontro com direitos outros para além de o oficial, tendo por grande contribuição demonstrar os severos limites de uma atuação estatalista, ainda que isto não signifique, necessariamente, rejeição plena do estado.

Pois bem, esta tão bem conhecida tripartição me inspira, aqui, a uma analogia, ainda que esta de forma alguma pretenda-se sucessora da originária. Quero dizer, não é pelo fato de a inspiração ter surgido dos debates jurídico-políticos que sua aplicação no bojo da universidade popular deva significar que esta vem à reboque daqueles. Não e talvez o contrário. O direito não é a vanguarda de um processo de transformação social. E ainda que a educação pura e simplesmente também não o seja, ela virá, para os fins de minha reflexão, no mesmo passo que um novo modo de vida. Só assim para fazer sentido, lastreada pela visão total, a analogia que concebe uma universidade de combate, um uso alternativo da universidade e uma universidade alternativa ou insurgente. Três elementos mediadores para a compreensão da universidade popular hoje.

1) Universidade de combate

Em primeiro lugar, encontro na resistência universitária de hoje o germe para se pensar, ainda que diacronicamente, a universidade popular. Mesmo que soe demasiado sistemática e um tanto hermética a classificação que proporei a partir de agora, vou fazê-la a fim de que se torne mais didático meu discurso, não só para os que me lêem, mas para mim mesmo.

Antes de mais, é preciso ressaltar os dois grandes critérios que darão a liga para uma universidade popular com lastro na totalidade: o protagonismo estudantil e a vinculação com as classes populares. Na verdade, mais que protagonismo, pois que uma investida de autogestão institucional, em que todos aprendem e todos educam; e mais que vinculação, porque serviço, em função e a partir de as massas, é que se deve construir o horizonte da universidade popular. Sem isso, fica-se à mingua de projetos intelectualistas, por mais bem intencionados que sejam, descolados e desterrados com relação às verdadeiras necessidades da classe-que-vive-do-trabalho.

Dito isto, começa a fazer sentido o primeiro flanco em que se pode atacar a questão o problema dos conteúdos. O ato pedagógico é sempre político, assim como todo ato político também ensina. A revolução que não for dialógica, será antidialógica, e nesse momento terá perdido boa parte de sua potência. Por isso, é importante cultivarmos uma universidade de combate, tal qual nós a temos hoje. Penso que esta combatividade se escora em duas grandes formas de realização do conhecimento: pela mobilização política (não só em prol de melhores condições de ensino-aprendizagem, mas também em apoio a demandas extrauniversitárias relacionadas ao povo e aos trabalhadores); e pela busca de conteúdos insurgentes e contra-hegemônicos, em conformidade com a pauta de descolonização e libertação a que estamos premidos.

Vários são os limites deste primeiro âmbito da universidade popular. O primeiro deles é a inexistência de um projeto genuinamente autônomo de realização dela. A princípio, inclusive, ele não é desejável, uma vez que nos falta capacidade para gerir e administrar a universidade de forma a implementar a transição de uma universidade tradicional para uma popular. Seria aventureiro, a meu ver e hoje (ainda que isto gere constrangimento entre nós), uma tomada política da universidade. Não só estamos distantes da realização política deste feito, como também permanecemos afastados da formação técnico-administrativa para isso. Uma guerra de posição é possível, mas uma guerra de movimento é necessária. E para concretizá-la, precisamos nos capacitar. Eis aqui minha primeira grande polemização.

É justamente esta ordem de questões que coloca o problema ascendido pela década de 1990: é a universidade de combate possível de ser realizada nos marcos da privatização do ensino? Nas universidades e faculdades particulares é cabível esta proposta? Esta problematização se ressignifica a partir da grande expansão do ensino superior particular nos anos 90, pois que antes disso não seria de todo equivocado pensar num "sim" mais confiante. Desde então, porém, há que se cuidar desta resposta, já que há vários indícios que demonstram uma grande complexidade para o tema. Sem dúvida, o capital é voraz nestes espaços e as formas de gestão são cada vez mais gerenciais. No entanto, não é certo desperdiçar o potencial de muitos de seus docentes (em geral, titulados em programas de pós-graduação de universidades públicas) bem como de seus discentes, principalmente quando significativa parcela deles apresenta-se no processo de proletarização da sociedade. As faculdades "pagas" não são hoje espaço restrito aos filhos das classes dominantes, somente. Estes dividem espaço com as classes médias e até mesmo com setores das classes trabalhadoras. Portanto, fica o problema, que eu não ouso resolver aqui.

Eis que, portanto, seja preciso considerar de forma ciosa o papel da universidade tradicional, em especial quando propicia agremiação estudantil e reformulação crítica dos conteúdos. Seus limites são suas expectativas de superação deles mesmos. O caso do ensino jurídico não deixa de ser eloqüente, notadamente quando as correntes críticas do direito recolocam a problemática jurídica em novos moldes. A par de o fracasso contemporâneo deste movimento histórico de renovação do ensino jurídico, o exemplo coloca em tela a necessidade de pensarmos para além de a forma. Como acentuei na última postagem, não nos são suficientes novas metodologias de ensino, por mais dialógicas que sejam, se permanecemos ensinando a pandectística alemã como o código de nosso tempo. É claro, trata-se de um exemplo extremo, mas que aponta para o problema que faz dicotomizar duas filosofias da educação que não deveriam ser tão opostas assim: a pedagogia dos conteúdos, de um Demerval Saviâni, e a pedagogia do diálogo, de um Paulo Freire. Daí vir a ser muito interessante retomar estes teóricos como marcos epistêmicos, muito mais que pedagógicos, e inseri-los no debate coetâneo sobre o "impensar as ciências sociais", de Imanuel Válerstein (Wallerstein, na grafia germânica original). Com este debate aparece uma nova divisão do trabalho intelectual, voltado para a práxis e para as necessidades populares.

Se à reformulação crítica dos conteúdos seguir a mobilização por reivindicações políticas por parte dos atores do ensino-aprendizagem, o potencial popular da universidade se alarga. É um vínculo necessário para com a comunidade para a qual deve a universidade trabalhar. Este é o projeto nacional de universidade que mobilizou um Anísio Teixeira ou um Darci Ribeiro, por exemplo. Dessa forma, voltam a fazer sentido as lutas do movimento estudantil desde Córdoba, tendo chegado às raias da loucura humana com o massacre dos estudantes mexicanos na década de 1960 - o massacre de Tlatelolco, de 1968. Daí decorrem os movimentos contemporâneos de ocupação das reitorias (como viveu fortemente o Brasil a partir de 2005 - USP, UFPR, UFSC etc.) por estudantes ou a significativa greve de estudantes na Universidade de Porto Rico, colônia estadunidense em pleno século XXI. Não só, contudo, as mobilizações estudantis são dignas de nota, pois o movimento de trabalhadores da educação é muito forte também: a rebelião de Oaxaca, em 2006, teve seu estopim em uma greve de professores (não necessariamente do ensino superior, mas a meu ver esta reflexão cabe para todo o sistema educacional, tal qual colocado por Paulo Freire); ou, também, o bastante representativo movimento docente de Mendoza, na Argentina, em que se propôs uma reforma universitária que reformulava todos os currículos, com destaque para os de filosofia, o que custou a vida e o exílio de muitos professores.

2) Uso alternativo da universidade

Não só a política de enfrentamento e a radicalização dos conteúdos são germinais para se pensar a universidade popular ou as universidades populares. O problema da forma de como se construir o conhecimento também é nodal. Na verdade, são propostas incindíveis. Aqui, estão sistematizadas em momentos diferentes, porque na realidade concreta têm perfazido mediações distintas, ainda que intercomunicantes.

Aqui, aparecem os coletivos estudantis de prática de "comunicação" (para usar a expressão freireana, ao invés da tradicional "extensão"), verdadeiros grupos de reflexão e ação no seio da universidade, nem sempre apoiados como deveriam ser pela instituição, e que assumem o protagonismo de um novo tipo de fazer universidade. Na esteira deles, seguem as pesquisas coletivas envidadas por professores e estudantes, de graduação e pós-graduação, que conduzem a resultados que denunciam a realidade social e, em níveis avançados, que servem às classes populares, seja na cidade ou no campo. Tanto melhor quanto mais a comunicação estudantil e a pesquisa coletiva se integrem num mesmo movimento. Melhor ainda se respaldado pela organização política de estudantes, professores e trabalhadores da universidade, com uma aplicação diferenciada de seus conhecimentos no âmbito do ensino. Quando as quatro dimensões se unem, desfaz-se a cisão que vige hoje em dia e se começa a rumar para uma efetiva e autêntica universidade popular. Pena que esta quádrupla junção seja tão rara ainda entre nós. Os professores que formaram a geração que participa deste blogue tiveram grande papel nesta reestruturação, todavia seu projeto parece ter se estancado na formulação teórica da crítica aos ramos do conhecimento (mais uma vez, aqui, tomo a "ciência" jurídica como paradigma de análise, sem querer, contudo, excluir os demais campos). Cabe à nossa geração não só o resgate desta teoria, mas a colocação em prática de sua radicalidade, na interação entre forma e conteúdo.

A título de exemplos mais evidentes do que seja este uso alternativo da universidade, poderia lembrar da experiência revolucionária cubana em que, em 1961 (o ano da educação), todos os estudantes foram convocados a participar de uma campanha de alfabetização do povo, tendo se suspendido o calendário escolar para que os estudantes alcançassem todos os rincões de Cuba em prol de tão significativa tarefa. No Brasil, um exemplo mais modesto, mas não menos importante, foi o Movimento de Educação de Base, também em prol da alfabetização, que teve apoio dos CPCs (Centros Populares de Cultura) da UNE (União Nacional de Estudantes), de 1958 a 1964. Outro bom exemplo a ser aventado, em termos históricos, é o da fundação da primeira Faculdade de Sociologia da América Latina, na Universidade Nacional da Colômbia, levada a cabo em 1960. Foram seus pioneiros, dentre outros, o padre Camilo Torres e o sociólogo Orlando Fals Borda e ambos teriam uma atividade político-científica das mais importantes do continente, sendo que o primeiro, um teólogo da libertação, iria para a guerrilha armada, após intensa vida sacerdotal e acadêmica, e o segundo desenvolveria o método da pesquisa participante, crucial para pensarmos a educação e a universidade populares hoje.

Quanto a nosso momento presente, um uso alternativo da universidade a ser ressaltado é o das quotas raciais, étnicas e sociais. Tema sensivelmente polêmico também este, parece-me que, apesar de paliativo, é ele fundamental para a democratização do ensino superior no Brasil. E democratizar também é uma forma de torná-la popular, ainda que limites enormes estejam aí alocados. Há toda uma discussão presente que deve ser levada em consideração, mas é preciso trabalhar com estes dados da maneira mais racional possível. As quotas ou o aumento de vagas no ensino público são vantagens pelas quais pagamos um preço importante. Nem por isso, é avanço que deva ser desprezado. Em verdade, é uma contradição posta no seio da universidade atual, mas seus efeitos colaterais permitem uma ampliação da discussão interna sobre o assunto, como também precariza mais a estrutura universitária de agora, o que pode levar a um ainda maior protagonismo estudantil, mesmo que a ligação com as classes populares só se possa fazer por meio de pesquisa e extensão.

Um último exemplo que pode e deve ser lembrado, ainda que não caiba um aprofundamento aqui, é o da integração latino-americana por intermédio de instâncias universitárias. A experiência mais simbólica, sem dúvida, é a da UNAM (Universidade Nacional Autônoma do México) e seu CIALC (Centro de Investigações sobre América Latina e Caribe), seguindo-a as experiências de institutos e conselhos voltados para a pesquisa latino-americana, como a CLACSO (Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais), com sede em Buenos Aires, na Argentina, ou o IELA (Instituto de Estudos Latino-Americanos), na UFSC, em Florianópolis. Por fim, cabe assinalar o caso UNILA (Universidade Federal da Integração Latino-Americana), ainda nascente e também pouco pacífico quanto às interpretações, mas mesmo assim digno de nota.

3) Universidade alternativa ou universidade insurgente

Por fim, cabem algumas palavras nesse longo panorama a uma proposta radical, insurgente e de libertação de universidade popular. Trata-se de uma tal que leva às últimas conseqüências os indícios populares das duas categorias anteriores, as quais colocam-se ainda dentro dos marcos de uma universidade constitucional de direito (para, jocosamente, perder as estribeiras com a analogia da alternatividade jurídica). Apesar de serem diacrônicas, as formas da universidade popular devem levar à universidade alternativa, já que a factibilidade crítica é um princípio de libertação dentro de uma mirada ética. Contentar-se com o horizonte da universidade de combate e de seu uso alternativo é esquivar-se da materialização última que nosso tempo histórico indica seja a mais importante. O "popular" aposto ao lado da expressão "universidade" não está ali à-toa. E como pode o popular deixar de ser uma designação gelatinosa e sem conteúdo para se apresentar como algo que tenha um significado forte? A meu ver, apenas irmanando-se com as classes populares naquilo que elas têm de mais concreto, vale dizer, sua organização política, econômica e cultural. Falo, portanto, dos movimentos populares e sua proposta educativa.

Este é o momento em que o protagonismo estudantil se funde com o protagonismo dos trabalhadores e das massas, tornando-se estes seus realizadores e destinatários. Momento essencial para se pensar a transformação qualitativa da realidade e sem o qual continuaremos patinando no solo escorregadio das soluções paliativas, provisórias, instáveis. É óbvio que não posso ser o profeta da revolução, já que ela não aparece como mudança da totalidade sócio-política do continente. No entanto, ela floresce na práxis insurgente de mulheres e homens espalhados da Patagônia ao Rio Bravo do Norte.

As grandes experiências históricas dos movimentos anarquista, anarco-sindicalista, cooperativista e socialista já contribuíram bastante para esta radicalização da alternativa universitária. Vimos isto no experimento, por exemplo, de Manoel Bonfm, no Brasil. Mais do que o resgate - relido, por sinal - destas campanhas educacionais de movimentos políticos dos séculos XVIII, XIX e XX, em nosso continente, é preciso encarar a questão sob o prisma de que os movimentos populares (que não se reduzem à noção de "novos movimentos sociais", estabelecida na década de 1970) almejam a totalidade da vida comunitária, sendo que alguns deles propugnam pela transformação radical da realidade. Daí que agregam em sua produção da vida, o momento infra-estrutural junto ao superestrutural, com solução de continuidade entre eles. Por isso, incubaram os movimentos populares a forma histórica da educação popular (visível no caso do MEB e da proposta de Paulo Freire) e trazem em seu discurso hodierno a ênfase na formação e capacitação. Este, aliás, foi um elemento discursivo apropriado pelos grupos de assessoria jurídica universitária - característicos de um uso alternativo da universidade - sendo recorrente o apelo à formação entre os jovens estudantes de direito. Apelo por demais necessário, diga-se de passagem.

Por mais que, a partir da articulação global de movimentos sociais como o Fórum Mundial Social, já tenha surgido a proposta intercultural de uma Universidade Popular dos Movimentos Sociais (sendo, inclusive, mote de acadêmicos contemporâneos como um Boaventura de Sousa Santos), as grandes iniciativas parece continuarem inseridas nos movimentos particularizados. Um dos casos mais exitosos é da Universidade Popular Mães da Praça de Maio, na Argentina, oriundo do movimento de resgate da memória estirpada pela cruel ditadura argentina. Completou 10 anos, em 6 de abril deste 2010, a proposta de formação política e cultural das mulheres argentinas que há cerca de 3 décadas procuram por seus filhos desaparecidos e pela história solapada de seu país e de seu continente.


Já a Escola Nacional Florestan Fernandes é considerada uma verdadeira universidade dos trabalhadores, tendo surgido, entre 2000 e 2005 (ano em que se consolidou), pelo esforço dos trabalhadores rurais sem-terra e de muitos simpatizantes. Muitas equipes de formação se inspiram no projeto da Escola Nacional, localizada em Guararema, em São Paulo, projeto o qual, por sua vez, segue a trilha de vários grupos de intelectuais e militantes que até então fizeram o papel de formador das massas, organizadas ou organizando-as. Em termos de Brasil, é indispensável conhecer esta proposta e aderir a ela na medida das possibilidades de cada um (ver página da Associação dos Amigos da Escola Nacional Florestan Fernandes).

Como já ressaltei, a universidade popular insurgente ainda não está plenamente apresentada como um fenômeno, mas sua viabilidade histórica está presente em tantas experiências que os últimos três domingos me permitiram rememorar. Muita coisa ficou de fora, mas o mais importante é reavivar o debate e perceber a sua premência. Não devemos nos restringir ao formalismo do ensino superior mas tampouco perder o horizonte ético-utópico de transformação de nosso mundo atual. E isto passa pela transição do modo de produzir o conhecimento atualmente, sabendo resgatar o que de importante há na universidade constitucional, assim como aquilo que se mostra como fulcral nas tentativas dos movimentos populares, nossos sujeitos históricos da transformação. Espero que tenha valido a pena o debate e que sirva de incentivo a todos nós.

domingo, 28 de novembro de 2010

Universidade popular na América Latina (2)


Sigo, aqui, minha reflexão sobre a universidade popular (iniciada na postagem do último domingo) e não sem considerar o peso que tal reflexão tem entre-nós, uma vez que gera muita expectativa e paixão. Os limites a que estou submetido são óbvios, em especial por ser exercício de (ainda) livre pensante, o que torna impossível uma autêntica universidade alternativa (para lembrar de minha última proposta em classificar a universidade popular conforme seus níveis de alternatividade: universidade de combate; uso alternativo da universidade; e universidade alternativa). Assim, quero frisar: este esboço reflexivo é incompleto, mas segue uma linha mínima, a qual devo, por ora, evidenciar. Trata-se de resgatar o histórico insurgente da universidade popular em nossa América (tarefa de minha primeira postagem), sendo exemplares as experiências do México e de Córdoba; colocar o problema da universidade popular no centro das preocupações do projeto de libertação do continente latino-americano (tarefa de hoje), seja como ponto a ser enfrentado com mais fôlego pelas teorias de libertação, seja como resultado das práticas revolucionárias vivenciadas na América Latina; e projetar a universidade popular, no encontro entre as suas formas de transição do que se tem hoje com o que se quer também hoje, tendo como referência a práxis dos movimentos populares insurgentes (tarefa do domingo próximo).

Inicio a reflexão de hoje perguntando: por que resistimos tanto em pensar nos conteúdos da universidade popular em nome de sua forma? Por que resistimos tanto em pensar na transição de uma universidade que está de costas para a realidade para uma que seja o seu oposto? Por que colocamos o processo educativo como o ponto gravitacional da mudança da sociedade em que vivemos?

Pois bem, meu primeiro rascunho de resposta - ainda que sem pretensão de eliminar as complexidades inerentes a esta problemática - vai no sentido de perceber que, em geral, se aposta em uma universidade que leve a seu reboque o processo revolucionário de transformação da realidade. Ou seja, antes a nova universidade, depois a nova sociedade. A meu ver, ingenuidade. Obviamente, não devemos cair em simplistas argumentos de quem vem antes, a subjetividade renovada ou a renovação das estruturas. Eis aí um processo dinâmico e envolvido na produção da vida, a qual aponta para algo que nunca pode ser esquecido pelos críticos: a práxis. A universidade popular é o todo que envolve forma, conteúdo e implementação do novo. É a unidade que dará a autenticidade ao projeto de sua popularização cujo significado está muito mais próximo ao de socialização que ao de popularidade.

É neste sentido que devemos estar atentos, todos nós, para o perigo do espontaneísmo educacional, o qual se revela como o contrário lógico da universidade popular alternativa. Daí que, como eu dizia, faz sentido pensar sobre este assunto a partir de uma gnosiologia liminar e de libertação desde a América Latina. Para mim, esta perspectiva não é suficiente por si, fazendo-se necessário pôr os olhos sobre a práxis revolucionária continental, assim como também pôr os pés no chão e as mãos na massa. A despeito de isso, porém, um conjunto de teorias de libertação tem muito a nos oferecer, no intuito de não jogarmos fora os grandes projetos teóricos que envolveram os latino-americanos, em especial no último século. É certo relembrarmos de um Mariátegui, como já fizemos, ou mesmo considerar a figura de um libertador e educador popular, como José Marti. Menos certo, contudo, é descuidar da experiência histórica levada a cabo no último meado do século XX, em termos de educação popular.

A proposta histórica de Paulo Freire não é fruto do acaso. Duas ordens de elementos se avizinham dela e dão-lhe um sentido inalcançável caso nos afastemos de tais ordens. Por um lado, Freire segue, de uma maneira ou de outra, o projeto de educação pública brasileira iniciada por Anísio Teixeira e sua aproximação, de teor nacionalista, com as classes populares (conferir a Biblioteca Virtual Anísio Teixeira). Por outro lado, Paulo Freire é fruto de um momento histórico em que fervilhavam experiências revolucionárias e que fizeram surgir as teorias de libertação latino-americanas, a partir da perspectiva dos "oprimidos".

Vejamos o que esta dupla genealogia nos informa. Com Anísio Teixeira, procura-se cristalizar no Brasil a educação para as massas. De alguma forma, este legado é assumido pelo ISEB - Instituto Superior de Estudos Brasileiros e sua versão nacional-desenvolvimentista do Brasil seria assumida em larga medida por Freire nos seus primeiros escritos e suas pioneiras ações. No entanto, é insuficiente dar mostras dessa tradição a partir da qual Paulo Freire se forjou (como o é, igualmente, colocá-lo no rol dos católicos progressistas). De uma banda, a "escola nova" de Anísio Teixeira enquistava-se de um certo liberalismo pedagógico (ainda que moderado) - o qual é essencial de ser entendido para afastarmos de vez suas infensas e deletérias influências, dentre as quais se destaca o espontaneísmo educacional e o papel secundário do professor no ato pedagógico -; de outro flanco, o isebianismo teve uma muito curta duração para os propósitos a que se pretendia dedicar, tais quais a reforma do Brasil e uma nova forma de pensar a realidade nacional. Neste caso, cabe ressaltar as figuras de Alberto Guerreiro Ramos e Álvaro Vieira Pinto, ambos homenageados por Freire em seus textos, sendo que o primeiro nos deixaria uma profunda crítica ao colonialismo intelectual e o segundo a perspectiva da construção de uma universidade nacional, a qual seria seguida de perto por Darci Ribeiro - ainda que este tenha sido um anisiano confesso (para este debate, confrontar os textos de Vieira Pinto, "A questão da universidade", e Ribeiro, "A universidade necessária" - vários livros deste último disponíveis em: Fundação Darci Ribeiro).

Paulo Freire, todavia, logo se desvencilharia de uma submissão a esta herança (que, em grande medida, merece ser resgatada) e apresentar-se-ia com um pensamento inovador. Se em seu "Educação como prática da liberdade" o pedagogo ainda é um nacionalista, em seus escritos seguintes, já redigidos no exílio, como "Extensão ou comunicação?" e "Pedagogia do oprimido", Freire já dá mostras de seu materialismo histórico (ver a Biblioteca Digital Paulo Freire). Todo o seu percurso como educador, porém, traria a marca de um grande projeto pedagógico para o Brasil e deve sempre ser relembrado: para além de a alfabetização de adultos, Paulo Freire formulou um "sistema" de educação alternativa que previa uma universidade popular de transição a partir da extensão universitária, coroando-se com um Instituto de Ciências do Homem e um Centro de Estudos Internacionais, voltado para o terceiro mundo. Esta perspectiva de totalidade reflete a preocupação freireana com respeito à práxis dos trabalhadores e sua tomada de poder, o que passaria pela educação e universidade populares. Nesse sentido é que se pode retomar a questão: o que é conscientização? Certamente, não é dar consciência a ninguém, mas sim um trabalho conjunto de troca mútua, em que todos aprendem e ensinam, mas com um objetivo indene, a revolução.

Mas já que falamos de "alternatividade", esclareçamos o que vem ela a significar. Não há, entrementes, menção a uma proposta alternativa que pretenda conviver com o "egotivo" (ego X alter), ou seja, com o que está-aí, com o hegemônico. Trata-se de uma alternativa que supere o estado de coisas da universidade elitista de hoje, mesmo que isso não signifique desprezar suas contra-hegmonias internas.

Por isso a importância de se pensar a universidade popular desde a América Latina, mas também trabalhar para ela. Assim, as experiências revolucionárias pelas quais o continente passou são efetivos testemunhos. Ainda que nos faltem elementos, é inegável que a socialização do ensino em Cuba tornou-se possível com a revolução de 1959, assim como o socialismo do século XXI também tem investido nisso (e, dessa forma, abarcamos o ciclo revolucionário latino-americano tão destacado pelas teorias de libertação, em especial por Enrique Dússel: Cuba, Chile, Nicarágua, Chiapas, Venezuela, Bolívia e Equador; ainda assim, há de se atentar para os limites e contradições de todos estes processos, mesmo aqueles já findados).

Todo este conjunto de experiências práticas e teóricas deve ser tema da universidade popular. De nada adianta apostarmos na "forma" como sendo o carro-chefe desta discussão. Muito pouco resolveremos o nosso problema, caso creiamos que o diálogo pode melhorar o ensino jurídico se nos mantivermos aferrados ao eurocentrismo teórico e ao etnocentrismo das práticas. Muitíssimo pouco se avançará, caso entendamos ingenuamente que a universidade popular deve ser expressão democrática do respeito às diferenças, se estas acentuarem o mercado de trabalho e as técnicas que instrumentalizam o mundo de hoje. Pode ser que estejamos, com a forma dialógica, envidando um uso alternativo da universidade, mas a sua alternatividade revolucionária estará distante ainda assim. Que eu não soe, com meu depoimento reflexivo, como um antidialógico, porque, ao contrário, penso que a teoria da ação dialógica de Paulo Freire nos é central e é a partir dela, por exemplo, que devemos ressistematizar o ensino jurídico (e todos os demais "ensinos"). Mas esta teoria pressupõe a denúncia e o anúncio de uma nova sociedade. Como fazê-lo? Espero que nos indaguemos sobre isso e deixemos nossas opiniões não só aqui no blogue.

Ver também outras postagens de nosso blogue sobre o tema:
- Universidade popular, de Luiz Otávio Ribas;

domingo, 21 de novembro de 2010

Universidade popular na América Latina (1)

Uma reflexão sobre "universidade popular" na América Latina mereceria várias postagens. Um texto que contemple esta discussão poderia se tornar muito longo caso se quisesse ter qualquer pretensão de exaustão. Obviamente, não será esta minha postura aqui no blogue. Vou fazer alguns apontamentos, tentando encaminhar a problemática para um horizonte comum que nos deve unir a todos, assessores jurídicos populares, teóricos críticos do direito e militantes políticos de movimentos e organizações populares.

Para início de conversa, vale a pena resgatar um momento histórico marco para a libertação da América Latina: a revolução mexicana de 1910. Há exatos cem anos, completados ontem (20/11), o México passou por um momento de absoluta efervescência política, econômica e cultural, sendo palco de um experimento revolucionário, ainda que bastante complexo e cheio de contramarchas, que daria ensejo ao zapatismo, ao muralismo e à constituição social de 1917. A revolução mexicana é pedra angular para a discussão sobre a universidade popular na América Latina porque, em seu contexto, surgiu uma das primeiras tentativas de levá-la a cabo, a Universidade Popular Mexicana, realizada por uma aliança de intelectuais mexicanos.

Em verdade, o experimento mexicano, que durou de 1912 a 1920, tendo sido resgatado em vários outros momentos da revolução a partir de então, não foi o pioneiro absoluto na catalogação de tais experiências. No Brasil, mesmo, se pode encontrar um antecedente, na Universidade Popular de Ensino Livre, com participação de vários intelectuais anarquistas e socialistas - dentre eles Elísio de Carvalho e Manoel Bonfim - que tinha por objetivo desacademicizar e desbacharelizar o ensino superior do país, tornando possível a "instrução superior e a educação social do proletariado" (conforme diria Carvalho, em 1907). A experiência da UPEL durou poucos meses, entretanto. E isto devido a cisões internas do grupo que estava à frente do projeto. Nesse sentido, é importante lembrar que a universidade latino-americana foi cosntruída para a formação das elites locais desde os inícios da colonização hispânica, algo que no Brasil só se daria com a declaração de independência política. Ainda quanto ao caso brasileiro, as tardias idéias republicanas surgiriam com o ímpeto do discurso da universalização do ensino básico, mas sem que esta pretensão atingisse a "instrução superior". Tanto assim é que só o século XX assistiria ao surgimento da primeira universidade brasileira (na provinciana e ervateira capital paranaense, ainda que este título seja discutido pelos fluminenses).

Sem dúvida nenhuma, porém, a grande experiência que nos guia a todos, no entendimento e ato de fé de que a universidade popular é um caminho viável, é a da reforma universitária pretendida pelos estudantes argentinos, em Córdoba (1918), que daria ensejo a vários movimentos análogos e, de alguma forma, unificados, em toda a América Latina. O relato de José Carlos Mariátegui, em seus "Sete ensaios de interpretação da realidade peruana" (ensaio IV, sobre "O processo da instrução pública"), é eloqüente, mostrando a vivência de um mesmo processo para além de a Argentina, chegando ao Peru, Uruguai, Chile e Cuba, dentre outros países. Aliás, Mariátegui trabalharia na Universidade Popular González Prada, em Lima, e sua atuação estaria muito próxima à de outros pensadores críticos de então que realizariam a Universidade Popular José Marti, em Cuba, ou a Universidade Popular Lastarria, no Chile. Não é à-toa que os intérpretes latino-americanos do marxismo no continente imputam a este período histórico o momento revolucionário fundador da insurgência de nossa América. A América Central em ebulição, o México revolucionário, e as experiências indígenas e operárias da América do Sul perfazem o auge do primeiro meado do século XX.

Em termos de proposta de universidade popular, entrementes, dois elementos irão se destacar neste momento: o protagonismo estudantil e o objetivo de tornar acessível o conhecimento científico às classes populares latino-americanas, em especial os trabalhadores urbanos. Estes dois pontos são cruciais para a compreensão do fenômeno da universidade popular entre nós, algo que deve conduzir nossa análise nos momentos subseqüentes desta investida conscientizadora, a qual permanecerá viva como um legado para a atualidade, articulando-se em torno dos movimentos populares. E disto me ocuparei na próxima postagem, mas não encerro esta sem antes fazer menção a uma projeção que deve restar esclarecida para que melhor se compreenda meu comentário: precisamos estabelecer uma analogia entre a alternatividade jurídica e a da universidade popular. Assim, a partir do resgate histórico da construção de experiências de univeridade popular na América Latina, é possíval entender que há três grandes dimensões de sua fenomenologia: a da universidade de combate, acentuando os conteúdos populares ainda que dentro dos padrões hegemônicos de ensino; o uso alternativo da universidade, que radicaliza a prática extensionista e o papel social da pesquisa coletiva; e a universidade alternativa, proposta que não deve ser protagonizada por intelectuais livre-pensantes descolados dos sujeitos históricos que devem protagonizá-las, já que protagonistas da cultura popular, a classe-que-vive-do trabalho.

sexta-feira, 20 de novembro de 2009

Universidade popular




Os assessores populares hoje preocupam-se com a crítica ao ensino jurídico. Ademais, muitos preocupam-se também com a construção de uma universidade popular brasileira.

Além de nos perguntarmos sobre o nosso papel neste processo, precisamos estar conscientes da necessidade desta luta.

O ensino universitário hoje no Brasil é um privilégio de uma parcela muito pequena da sociedade.
Apesar de alguns pequenos avanços em políticas públicas no sentido de ampliação do acesso ao ensino formal universitário, estas são insuficientes para reverter o quadro de dificuldades no acesso à escolaridade superior dos brasileiros e brasileiras. Outro problema, é que na luta pelo acesso ao ensino formal universitário estatal, não estamos, necessariamente, construindo uma proposta de universidade popular.

Inicialmente, pode-se afirmar que inúmeras iniciativas de movimentos sociais, pelo menos desde a década de 1960, apontam para um horizonte de transformação: a proposta da universidade dos movimentos populares.

A construção de uma universidade popular é algo mais radical e amplo do que pode-se imaginar num primeiro momento.

A educação superior, hoje, é organizada pelo Estado brasileiro, que concede à iniciativa privada a autonomia necessária para explorar economicamente, também, o ensino universitário. Hoje no Brasil, o ensino universitário é monopólio do Estado, ainda que confira a agentes privados a possibilidade de exploração desta atividade. Neste contexto, a esmagadora maioria das instituições de ensino superior são privadas, o que não modifica a situação de monopólio estatal sobre a educação superior. Uma pequena parcela destas instituições privadas é composta de instituições comunitárias, que ganham com a redução de tributos e compensam, pela lei, com projetos em benefício da comunidade.

Quero trabalhar com a idéia de que todas as instituições de ensino superior brasileiras, públicas, privadas, comunitárias, seguem a mesma lógica: a educação superior como privilégio de poucos e monopólio do estado. Assim, todas seguem a lógica do Estado, que é de manutenção das relações sociais tal qual elas estão: um regime econômico capitalista e um direito liberal e monista que sustente este regime econômico.

Por sua vez, os movimentos sociais têm reagido com duas propostas, não contraditórias, no sentido de ampliar o acesso ao ensino formal: uma, a construção da universidade popular; outra, de amplicação dos espaços no ensino formal. Isto quer dizer que a universidade popular não passa pelo ensino formal. Mas, para sua construção, é preciso pensar estrategicamente a ampliação dos espaços formais. Podemos pensar na turma especial de direito para assentados e integrantes de movimentos sociais no campo na UFG, por exemplo.

O movimento estudantil tem contribuído muito com esta proposta, em diferentes níveis de comprometimento com outros movimentos.

Na década de 1960, tínhamos a União Nacional dos Estudantes, por meio dos Círculos de Cultura (CUCAs) colaborando com projetos de educação popular pelo interior do Brasil. Estes uniam-se a outros movimentos de educação popular e arte, como o Movimento de Educação Popular, criado por Paulo Freire; assim como o Movimento Educação de Base (MEB), ligado à setores progressistas da igreja católica. Estes últimos com projetos de alfabetização e conscientização, que se não tivessem sido barrados pelo golpe militar em 1964, teriam contribuído sobremaneira para a educação do povo brasileiro. O próprio Paulo Freire tinha uma proposta de universidade popular, que passava também por iniciativas de extensão popular (comunicação) em projetos universitários de alfabetização, por exemplo, os que ocorreram ligados à UFPE.

Foi pensando no resgate destas iniciativas de educação popular que os estudantes de direito na década de 1990 organizaram-se em torno da Rede Nacional de Assessoria Jurídica Universitária (Renaju). A Rede tem como objetivo a organização de círculos de cultura voltados para o apoio à organização popular, com a comunicação sobre temas comuns a estudantes e movimentos sociais: o direito, o estado, construção da política de resistência e transformação.

Mas a Renaju não é a única iniciativa estudantil deste período. A Rede Popular de Estudantes de Direito (REPED) surgiu na década de 2000 como uma proposta dos movimentos sociais do campo e estudantes de direito, pela necessidade de apoio jurídico e para a construção de uma outra sociedade.

Além destas propostas, os movimentos sociais, como o MST, por exemplo, organiza ainda projetos de inserção no ensino formal, como as referidas turmas especiais, além das propostas de organização próprias do movimento, que conta com a participação de estudantes. É o caso da Assembléia Popular e as brigadas urbanas, que reúnem estudantes e outros militantes dos movimentos sociais, com um sentido de organização política mais avançado, com uma participação mais orgânica.

Incluem-se aí as propostas mais radicais para a construção de uma universidade popular. Os movimentos sociais brasileiros, principalmente o MST, reúnem-se em torno da construção de uma proposta própria de universidade, por meio de cursos nas escolas de formação e na organização da militância que frequenta cursos superiores.

Assim, é preciso que o movimento estudantil da assessoria desperte para a discussão da construção da universidade popular, conscientes da necessidade desta luta e dos caminhos que podem ser percorridos para a sua consolidação.