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quinta-feira, 12 de maio de 2016

A Acesso e sua contribuição para a construção de um direito insurgente

Essa semana, a coluna AJP na Universidade aproxima-se do fim de sua compilação dos textos produzidos para a disciplina tópica Assessoria Jurídica Popular, do primeiro semestre de 2014, da UFPR. O texto a seguir, de Heloyze Nathalie de Almeida, graduada em direito UFPR, aborda uma rica experiência de AJP (a da Acesso) e, dela, colhe reflexões sobre a prática de Assessoria em geral.

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A Acesso e sua contribuição para a construção de um direito insurgente

Heloyze Nathalie de Almeida

O Direito Insurgente se caracteriza pelo desenvolvimento da prática jurídica voltada à proteção dos menos favorecidos em face de um Estado distribuidor de desigualdades. Sempre munido de seu instrumento mais poderoso: o Direito.
Para que se possa compreender a real importância dos advogados populares construtores do Direito Insurgente é necessário ter em conta que a maioria da população é impedida de exercer minimamente a sua cidadania, sendo-lhe vedado ou obstaculizado o acesso à justiça. Outrossim, quando há alguma forma de prestação jurisdicional, esta sempre é cercada do caráter classista antipopular e pouco efetivo.
É nesse sentido que normas paralelas ao direito estatal são imprescindíveis, posto que através delas os oprimidos podem transformar a realidade de dominação e opressão existente no sistema capitalista. Entretanto, é preciso ponderar que sem o uso alternativo do direito imposto pelas classes dominantes, pouco é possível fazer, já que, infelizmente, ele ainda se faz presente em nossa sociedade.
Dessa forma, a atuação dos grupos formados por advogados populares, como a Acesso, se faz necessária, no sentido de que é por meio de sua militância que os injustiçados conseguem ver satisfeitos seus direitos.
A Assessoria Jurídica Popular é proposta com base em referenciais envolvendo a ética e a justiça, onde os menos favorecidos são o foco principal. De acordo com Alfonsin, (advogado que milita durante muito tempo pelas causas populares) a principal ideia da advocacia popular é unir concepções de um outro direito (seja o direito dos pobres, seja o direito insurgente) com uma concepção instrumental do direito (uso do processo judicial), que significa a união da assessoria jurídica com a prática insurgente.
A Acesso parte de uma concepção dogmática crítica do direito, onde a defesa processual dos movimentos populares é defendida fielmente. Contudo, sua atuação não se limita a esse tipo de defesa, tendo como formas de militância a orientação jurídica, a produção de teoria do direito e a tradução dessa teoria ao povo. É no trabalho de produção teórica que se percebe um diálogo aberto com o pluralismo jurídico e o direito alternativo.
A Assessoria Jurídica Popular pressupõe a mudança do lugar social do assessor jurídico que presta os seus serviços de maneira eficaz, além da mudança de pensamento quanto à interpretação do conteúdo jurídico-instrumental que cerca suas atividades. Segundo Alfonsin, a tarefa do assessor jurídico popular é a demonstração de que a pobreza já constitui, por si só, violação de direitos humanos fundamentais.
Além disso, a formação teórica de seus assistidos, que consiste na desmistificação dos mecanismos econômico-político-jurídicos, se revela um instrumento importante do trabalho desenvolvido pelos assessores jurídicos populares.
Ainda, o trabalho popular divide-se em três frentes, qual seja a comunitária, a política e a jurídica. Para ele, a mais importante é a comunitária, sendo a menos importante a jurídica. Isso demonstra que a verdadeira essência da assessoria jurídica popular não é a mera prestação de serviços jurídicos, mas sim a conscientização comunitária de que o povo pode se organizar e se posicionar frente à política para, através dos conhecimentos construídos em conjunto com os assessores, reivindicar os direitos que lhe são obstaculizados sistematicamente.
Todos os pontos desenvolvidos pelos advogados populares, que foram abordados nesse trabalho, traduzem o esforço de algumas pessoas comprometidas com a efetivação da justiça em transformar a realidade vivida pela maioria da população, seja por meio da utilização alternativa do direito estatal ou da formação teórica fundada no direito insurgente.
Referências:
PRESSBURGER, Miguel. “Direito insurgente: o direito dos oprimidos”. Em: RECH, Daniel; PRESSBURGER, Miguel; ROCHA, Osvaldo Alencar; TORRE RANGEL, Jesús Antonio de la. Direito insurgente: o direito dos oprimidos. Rio de Janeiro: AJUP/Fase, out.1990, p.06/12.

RIBAS, Luiz Otávio. Direito insurgente e pluralismo jurídico: assessoria jurídica de movimentos populares em Porto Alegre e no Rio de Janeiro (1960-2000). Florianópolis: Curso de Pós-Graduação (Mestrado) em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina, 2009, p. 57-72. 

quinta-feira, 5 de maio de 2016

Assessoria Jurídica Popular: nada deve parecer impossível de mudar

Prosseguindo a divulgação dos textos elaborados para a disciplina tópica Assessoria Jurídica Popular, da Universidade Federal do Paraná, ministrada por Ricardo Pazello, a coluna AJP na Universidade desta semana divulga uma reflexão sobre as dificuldades e potencialidades da prática de Assessoria Jurídica Popular, em especial as reflexões que se voltam à definição do próprio direito e as limitações/aberturas de uma atuação dentro da ordem. As autoras, Aline Carvalho (antiga integrante do SAJUP-PR), Amanda Gennari, Heloísa Kruger e Fernanda Macedo são formadas pelo curso de direito da UFPR.

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Assessoria Jurídica Popular: nada deve parecer impossível de mudar

Aline Carvalho
Amanda Gennari
Heloísa Kruger
Fernanda Macedo

A massificação e coisificação de grande parte da população, a qual vê, de geração em geração, a anulação da condição de sujeito de sua própria emancipação, dão corpo à grande desigualdade e exclusão social tão presentes na nossa realidade, não mais tão desapercebida aos olhos nus de qualquer cidadão brasileiro. Analisando tal contexto é de se presumir uma forte atuação de uma assessoria jurídica popular.
Obviamente, também considerando que tal presunção estaria por demais inocente, tendo em vista o Estado Capitalista sobre o qual se constrói a nossa sociedade, é que a temática da assessoria jurídica popular, em especial, toma-se muito mais complexa do que qualquer uma dessas teorias do direito.
Diante disso, vêm surgindo novas formas de se utilizar o direito em favor desses grupos oprimidos por um Estado capitalista e neocolonialista. Essa nova concepção social do direito se afigura em algumas designações já desenvolvidas por estudiosos, como o uso alternativo do direito, o direito alternativo e o direito insurgente.
O uso alternativo do direito seria uma espécie de atuação progressista dos operadores do direito (ou positivismo de combate), como no caso do movimento encabeçado pelos juízes gaúchos. O direito alternativo, por sua vez, consistiria em práticas e produções jurídicas por intermédio das próprias comunidades marginalizadas e oprimidas. Por fim, o direito insurgente viria como um conceito mais amplo, representando a prática jurídica comprometida com a classe excluída do sistema capitalista, partindo do pressuposto de que direito oficial não resolve as injustiças sociais, questionando-o e rompendo com ele.
Não por outro motivo é que a concepção do pluralismo jurídico também aparece como fundamento da assessoria jurídica popular. Uma das premissas básicas do pluralismo jurídico é a tentativa de (re)aproximação entre o direito oficial, vigente, posto, e as inúmeras interações sociais que ocorrem atualmente no nosso país. Essa corrente, amplamente debatida por grandes estudiosos brasileiros, propõe a busca de outras fontes do direito que transcendam os meios jurídicos convencionais, dando espaço para novos atores sociais que, em seu âmbito de atuação, também criam fenômenos jurídicos próprios. Se o que se almeja é um direito efetivamente democrático, ele deve absorver os influxos da própria sociedade civil.
É a partir daí que se deve conceber o direito insurgente como o principal instrumento dos grupos e movimentos historicamente oprimidos, se desenvolvendo paralelamente ao direito oficial. Um direito construído na periferia pare contestar a ordem estabelecida.
No entanto, o que se pretende na presente análise é avaliar qual e aplicabilidade prática dessas teorizações, através da atuação da Assessoria Jurídica Popular, desde o seu embrião nos núcleos de extensão das universidades, cuja principal proposta é a conjugação do saber acadêmico e científico com o saber popular. Para que isso seja possível, a AJUP procura levar às comunidades algo para além desse direito oficial, ensinado nas universidades, uma vez que este se encontra muito distante das diversas demandas que o grupo costuma se deparar na realidade.
Na prática, o maior desafio é romper com as barreiras, sejam elas burocráticas, institucionais, a falta de financiamento, o poder significativo utilizado pela mídia que apenas corrobora com a manutenção da exclusão social, ou, inclusive, o próprio direito que, ao considerar iguais os desiguais, acaba por validar a exploração histórica de uma classe por outra.
Assim, com vistas a essas barreiras e teias de proteção do sistema fechado, como se dará a aplicação do direito insurgente? Dentro ou contra tal sistema? Seria possível uma atuação simultânea dentro e fora? E, se optássemos por uma atuação exclusivamente fora e contra o sistema capitalista, de que forma poderíamos gerar os frutos almejados pela assessoria jurídica popular?

Verdadeiramente, não há uma resposta para todas essas interrogações que permeiem a atuação do advogado popular. Seja dentro ou fora do sistema, o incentivo à produção teórica e ao estudo do tema e a inserção do debate e da prática extensionista nas universidades são terminantes essenciais para uma atuação junto às comunidades marginalizadas, uma atuação não limitada ao mero peticionismo, mas comprometida em promover todas as medidas que possibilitem a recuperação dessa condição do sujeito do sua própria emancipação.

quinta-feira, 28 de abril de 2016

Assessoria Jurídica Popular: um importante marco na estrada

As tarefas, motivações e prioridades da Assessoria Jurídica Popular são fruto de uma reflexão que pretende discutir o papel e a importância desse tipo de atividade: essa é a temática abordada na coluna AJP na Universidade de hoje. O texto, mais um elaborado para a disciplina tópica “Assessoria Jurídica Popular”, é de autoria de André Thomazoni Pessoa Silva, graduado em direito pela Universidade Federal do Paraná.

Assessoria Jurídica Popular: um importante marco na estrada

André Thomazoni Pessoa Silva

As crônicas e agudas injustiças sociais que resultam do sistema econômico, político e jurídico vigente em nosso país inevitavelmente conformam violações/negações dos mais diversos direitos daqueles que integram a multidão de despossuídos, ressaltou outrora Jáques Távora Alfonsin. Estes(as), os(as) pobres, buscam suporte onde conseguem, ou seja,  no mais das vezes, nas assessorias jurídicas ditas populares.
Falar em assessoria jurídica popular implica, portanto, falar em acesso à justiça. Este reducionismo, entretanto, é perigoso. Há que se deixar claro que justiça é esta a que se pretende ascender, e reconhecer que as experiências das assessorias jurídicas populares são
muito mais complexas e amplas que a possível (e necessária, parece) assistência jurídica.
Movimentos, grupos sociais diversos, coletividades e grupos excluídos em geral descobririam, em processo histórico de afirmação e (re)conhecimento cheio de percalços - como não poderia deixar de ser -, que suas demandas, lutas e bandeiras não cairiam do céu ou por beneplácito dos generosos representantes da “democracia” institucional.
A Constituição da República e a legislação infraconstitucional são possibilidades (limitadas, contraditórias, contaminadas!). Os excluídos querem, eles precisam exercer seus direitos, e direitos apenas são direitos na medida em que são exigíveis.
Assim, tais atores incorporam ao seu arsenal de luta a disputa judicial por direitos em conjunto às antigas formas de estratégica política desenvolvidas no meio popular organizado. Como bem lembra Leandro Franklin Gorsdorf, movimentos sociais diversos optaram pela estratégica jurídica como um dos instrumentais de efetivação de direitos humanos – ou de garantia de não retrocesso na proteção destes mesmos direitos.
A assessoria jurídica popular, portanto, desponta como a prática reflexiva, dialética, de juristas voltados à problemática do acesso aos direitos, usando da técnica jurídica para tanto (e quando conveniente), monitorando políticas públicas diversas e priorizando a educação popular como norte de atuação e aprendizagem.
Acima de tudo, a assessoria jurídica popular existe em função de e respira do mesmo
ar dos assistidos. Produz acúmulos e atua conjunta e dialeticamente; problematiza o direito, a justiça, o político. Atua, não raro, pela alegalidade. Transcender e transgredir o direito posto são deveres da assessoria jurídica popular, se deseja de fato concretizar reivindicações populares – produtos de sujeitos coletivos de direito que também se tornam fonte de direito, conforme lembra Wolkmer.
Ingrato seria sintetizar a experiência de décadas das assessorias jurídicas populares em parcas linhas. Seu histórico, facetas, possibilidades - sempre em aberto, por óbvio - e classificações são objeto de estudos muito responsáveis, infinitamente mais maduros que este rascunho.
Pode-se, em derradeiro, dizer que o(a) assessor(a) jurídico(a) popular deve ser um marco na estrada para o movimento popular, os assistidos, e para si e seus pares também – por óbvio, posto que todos trilhamos o mesmo caminho.


Nem muito alto,
nem muito largo,
nem imperador,
nem rei.
Você é só um marco de estrada,
que se ergue junto à rodovia.
As pessoas passam
Você indica a direção certa,
e impede que elas se percam.
Você informa a distância
que se precisa ainda percorrer.
Sua tarefa não é pequena e toda gente lembrará sempre de você.

- Ho Chi Minh
            

quinta-feira, 21 de abril de 2016

AJUP, um trabalho pela igualdade

Trazendo mais um texto formulado para a disciplina tópica “Assessoria Jurídica Popular”, ministrada por Ricardo Prestes Pazello no segundo semestre de 2014 da UFPR, nossa discussão da semana, elaborada por Rafaela Zem e Ricardo Vidotto Monteiro, estudantes de direito da UFPR, aborda algumas questões sobre a prática da Assessoria Jurídica Popular, destacando, em especial, como sua atuação volta-se para o enfrentamento das desigualdades estruturais que compõe a nossa sociedade.

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AJUP, um trabalho pela igualdade

Rafaela Zem
Ricardo Vidotto Monteiro

            Vivemos numa sociedade extremamente desigual. O Brasil, entre algumas oscilações, vivencia um crescimento econômico considerável. Atualmente, de acordo com dados do Banco Mundial, nosso país ocupa a 7ª posição das economias mundiais, com um PIB de cerca de 2.396 trilhões de reais. Porém, as consequências de tanto avanço econômico não são percebidas pela maior parte dos brasileiros. Essa desigualdade é evidente quando se observa outro dado estatístico: o Brasil ocupa a 80ª posição em distribuição de renda e possui índices ainda piores quanto ao desenvolvimento humano – IDH, que mede educação, saúde e a expectativa de vida –, estando no 85º lugar no ranking, ficando atrás de países como: Jamaica, Peru, Ucrânia, Venezuela, Cuba, etc.
            Essa triste situação se deve a vários (e, complexos) motivos. Dentre um dos possíveis, percebe-se a prática recorrente de políticas neoliberais extrativistas, que desde o descobrimento – com o colonizador europeu –, até a atualidade, com as multinacionais estrangeiras, vem explorando e violando direitos e garantias fundamentais. Resultando nessa desastrosa desigualdade social, que aprisiona, manipula e domina boa parte da população.
            Na contramão dessa calamidade pública existe a atuação da AJUP (Assessoria Jurídica Popular). Formadas por pessoas que não compartilham da mesma ânsia pelo capital, que pretendem realizar um trabalho popular, de facilitação do diálogo entre os “oprimidos” e a “política”. Trabalham diante da complexidade e sensibilidade, dedicando suas vidas – quase que desenvolvendo um “estilo de vida” próprio – na luta dos interesses dos “desprestigiados”.
            A AJUP, ilustrada de forma muito reducionista, é concebida principalmente sobre três frentes de atuação: assessoria jurídica de movimentos sociais, formação dos advogados e lideranças populares e produção literária.
            Quanto à assessoria jurídica popular atuante em movimentos sociais, o que ocorre não é a simples prestação de uma assistência jurídica (na resolução, jurídica, dos conflitos, colocando o grupo ofendido em situação de passividade – sujeito visto como objeto), e sim a atuação na organização dos movimentos sociais e na Educação Popular, como forma autêntica de sua libertação.
            Outra frente de atuação seria a formação dos advogados populares e líderes populares. O advogado popular deve ter conhecimentos técnicos, sem deixar de lado a compreensão dos movimentos sociais, a fim de alcançar a organização social do grupo assessorado, pois só de forma organizada, a coletividade oprimida resistirá às agressões do Direito (Estado); atuando no campo político, pressionando as Instituições estabelecidas, transformando a realidade, efetivando-se como sujeitos dignos e iguais. 
            A produção literária seria outra forma de desempenho dos trabalhos da AJUP, demonstrando-se fundamental nas delimitações de vulnerabilidades dos movimentos assistidos ou sistematizando as atividades, consequentemente, desenvolvendo-os. A publicação também tem a finalidade de denunciar as violações do Estado, preservar a memória e as lutas populares, bem como a conquista de direitos. Ou seja, é a tentativa de influenciar o Estado a adotar políticas públicas concretas reivindicadas pelos movimentos sociais.
            Assim, percebe-se que a Assessoria Jurídica Popular nasce para combater as relações de poder sobre uma maioria desfavorecida (por exemplo: EMPREGADOR contra empregado, HOMEM sobre a mulher, ou ainda, as discriminações ofertadas contra etnias ou classes sociais desfavorecidas), vigentes em um Estado desigual. Sendo necessário para o advogado popular o engajamento político e a negação ao conforto econômico para colocar seu conhecimento técnico à disposição das classes populares. Logo, pode-se pensar que o advogado popular é o próprio movimento social, não sendo função exclusiva de um Bacharel em Direito, inscrito na OAB, mas de qualquer pessoa que simpatiza com a causa e enfrenta tanta injustiça social presente na realidade brasileira.

quinta-feira, 14 de abril de 2016

A linguagem como elemento determinante da assessoria jurídica popular

Hoje, a coluna AJP na Universidade mantém-se na discussão sobre o Teatro do Oprimido. As autoras, Alice Kelly de Meira Barros e Thays de Carvalho da Silva, ambas estudantes de direito da UFPR, em seu texto – produzido para a tópica “Assessoria Jurídica Popular” –, argumentam que as AJPs têm, no Teatro do Oprimido, importantes lições que devem ser seguidas. Entre elas, como ir além da linguagem jurídica cujos ornamentos impedem seu diálogo com o povo.

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A linguagem como elemento determinante da assessoria jurídica popular

Alice Kelly de Meira Barros
Thays de Carvalho da Silva

A assessoria jurídica popular muito tem a se espelhar na experiência do Teatro do Oprimido, de Augusto Boal [1], cujos objetivos são, basicamente, a democratização dos meios de produção teatral, o acesso das camadas sociais menos favorecidas ao teatro e a transformação da realidade através do diálogo. Essas técnicas podem refletir positivamente na forma de abordagem dos assessorados.
Não se pode negar que, não raro, os juristas utilizam uma linguagem rebuscada, própria de sua área de atuação, quando dialogam com aqueles que se reportam à assessoria jurídica popular. Isso, no entanto, além de dificultar o enlace entre o mundo jurídico e a realidade dos assessorados, pode soar de forma coercitiva, impositiva e leva-los ao afastamento. É preciso, portanto, estabelecer um diálogo que utilize verbetes e sinais por eles conhecidos, de modo que seja possível uma verdadeira interação.

Assim como se pratica com os envolvidos no Teatro do Oprimido, também os assessorados devem ser estimulados a intervir nas propostas apresentadas pelos assessores jurídicos populares. Considerando que se está a tratar da realidade de uma comunidade, melhor contribuição não há que a dos que a constituem e que estão em contato direto com os problemas apresentados. A assessoria jurídica popular não pode, de maneira alguma, colocar-se como uma entidade superior, como instituição máxima do saber, eis que os protagonistas desse relacionamento devem ser, na verdade, os assessorados.
O Teatro do Oprimido propõe a construção de uma imagem real e uma imagem ideal, a fim de que se possa chegar à imagem de trânsito, que nada mais é do que "um agir de transição" [2]. Assim também pode agir a assessoria jurídica popular: requerer aos assessorados que façam uma exposição de sua realidade, com a totalidade de seus problemas, bem como que apontem como gostariam que, de fato, fosse essa realidade. Após, analisando o paralelo entre a imagem real e a imagem ideal, poderão traçar metas, visando à modificação da realidade concreta, de modo que se torne a realidade ideal almejada.
Outra ideia utilizada por Boal em seu Teatro, também deve ser considerada e adaptada à realidade da assessoria popular: dar abertura aos assessorados para que proponham e executem soluções para os seus problemas [3]. Certamente eles irão se deparar com dificuldades, porém, entenderão que por melhor que seja a ideia, há obstáculos para colocá-la em prática, eis que demanda tempo e articulação. Dessa forma, saberão lidar melhor com as demoras ocorridas ao longo do caminho e até mesmo com as eventuais derrotas. Se não houver essa proximidade com a realidade enfrentada pela assessoria jurídica popular, facilmente surgirão descontentamentos e desistências, permeados pelo descrédito à assessoria jurídica popular.
Um trabalho jurídico popular que leve em consideração as sugestões apresentadas, e que, consequentemente, permita que os assessorados saiam da posição de espectadores e se transformem em participantes de todo o processo de resolução de conflitos, cumpre seu papel fundamental que é, de fato, assessorar e não resolver unilateralmente os problemas apresentados. Uma assessoria jurídica popular não deve dar aos assessorados algo acabado, mas em construção.
Nesse sentido, é aconselhável que a assessoria jurídica popular trabalhe com três Frentes, essenciais para o desenvolvimento de um contexto social mais justo e igualitário, que são: a frente teórica, que realiza estudos acadêmicos, com o objetivo de ampliar o conhecimento, buscando novas formas jurídicas de pensamento; a de educação popular, que promove cursos e oficinas a fim de facilitar o conteúdo teórico para que as próprias comunidades carentes possam compreender o direito em que estão envolvidas; e a judicial, que pleiteia perante os três poderes a materialização das reivindicações das organizações populares, realizando assim, alguns trabalhos jurídicos [4].
Vale ressaltar que o foco da frente teórica é proporcionar um espaço mais aberto, diferente dos escritórios de advocacia tradicionais, considerando a informalidade, o tratamento igualitário e a ampla possibilidade de diálogo, independentemente de hierarquia, permitindo a produção teórica de novos pensamentos jurídicos, "seja como fornecedora de informações, seja como elemento pedagógico que atuaa na facilitação da compreensão do conflito, seja como interlocutora junto aos órgãos incumbidos de executar políticas públicas, e até como defensora na instancia judiciária", dando apoio à formação de um jurista mais ciente das questões sociais em xeque [5].
Nessas condições, conforme a proposta de aproximação, com as ideias do Teatro do Oprimido, resta demonstrado que o trabalho com a comunidade não pode somente se focar na frente jurídica, visto que a essência da assessoria jurídica é possibilitar a facilitação dos conteúdos legais para a população insurgente, utilizando-se, por exemplo, do teatro, que é uma ferramenta de trabalho social, político e ético e que auxilia na transformação da sociedade e do indivíduo em si, já que dá voz aqueles que não sabem de que forma se expressar, demonstrando suas dificuldades e objetivos.

[1] BOAL, Augusto. Teatro do oprimido e outras poéticas políticas. 6 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991.
[2] BOAL, Augusto. Teatro do oprimido e outras poéticas políticas, 1991, p. 144-147.
[3] BOAL, Augusto. Teatro do oprimido e outras poéticas políticas. 6 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991. p. 139.
[4] RIBAS, Luiz Otavio. Direito insurgente e pluralismo jurídico: assessoria jurídica de movimentos populares em Porto Alegre e no Rio de Janeiro (1960-2000). Florianópolis: Curso de Pós-Graduaçào (Mestrado) em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina, 2009. p,68.
[5] RIBAS. Direito insurgente e pluralismo jurídico: assessoria jurídica de movimentos populares em Porto Alegre e no Rio de Janeiro (1960-2000), 2009. p. 77.

quinta-feira, 7 de abril de 2016

Teatro do Oprimido e Assessoria Jurídica Popular: duas maneiras alternativas de ver e tocar a realidade

Na coluna AJP na Universidade desta semana, lemos o texto de Ana Cristina Follmann, graduada em direito na UFPR. Nessa contribuição, que foi escrita para a tópica “Assessoria Jurídica Popular”, continuamos debatendo a temática do Teatro do Oprimido, mas, desta vez, com um enfoque que tenta aproximar e apontar as semelhanças entre a proposta de Augusto Boal e das Assessorias Jurídicas Populares: em especial na busca da libertação por meio da ação dialógica.

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Teatro do Oprimido e Assessoria Jurídica Popular: duas maneiras alternativas de ver e tocar a realidade

Ana Cristina Follmann

Metodologia desenvolvida por Augusto Boal no início da segunda metade do século XX, o Teatro do Oprimido busca utilizar-se da arte para trazer à tona discussões e trabalhos políticos e sociais, procurando atuar como ferramenta da transformação social.
Das pesquisas teatrais realizadas durante seu exílio consequente do regime militar que assolava o país, Augusto Boal procurou desenvolver uma espécie de teatro em que se desse a transformação do espectador em sujeito ativo, para que assim aquele pudesse passar do papel de consumidor do bem cultural para o de produtor de cultura.
Estimula, portanto, "a troca de experiências entre atores e espectadores, através da intervenção direta na ação teatral, buscando a análise e a compreensão da estrutura representada e a busca de meios concretos para ações efetivas que levem á transformação daquela realidade"' [1].


A partir de situações construídas com base em problemáticas vivenciadas por grupos socialmente oprimidos, o expectador-ator deve, a partir de suas experiências e da realidade observada e vivida, apresentar soluções.
Desta maneira, o teatrólogo inovou na maneira de se ver e de se fazer teatro, transformando indivíduos em sujeitos ativos que possuem a capacidade de repensar seu papel como cidadãos, tomando-se sujeitos em busca da justiça social.
 
O Teatro do Oprimido é uma poética para liberação. Todos estão livres para experimentar as mais diversas possibilidades dramáticas. Mas não se esgota na dramaturgia. O TO, em todas as suas formas, busca sempre a transformação da sociedade para a libertação dos oprimidos. [2]

Pode-se concluir que nada mais é do que educação popular, encorajando o sujeito a assumir posicionamentos e promover ações sobre o meio no qual se insere, visto como um "ensaio geral da Revolução, devendo terminar sempre na construção de um modelo de ação futura". [3]
A Assessoria Jurídica Popular, por sua vez, procura se inserir em novos espaços, principalmente aqueles que foram renegados, ao longo do tempo, aqueles que se vem à margem do direito: do sistema jurídico e da tutela de seus próprios direitos. Estes, portanto, são os oprimidos.
Ao se inserir, porém, aqueles que estão promovendo a Assessoria Jurídica Popular não procuram simplesmente dar soluções, levar respostas prontas, mas perceber a realidade daquele espaço, ouvir e não somente ensinar, mas aprender.

"A assessoria contra a massificação e a dominação concebe que o trabalho popular é uma arte de lidar com gente, não uma ciência, que se aprende com a prática. Como vícios próprios da massificação elege para elucidação: despersonalizar e descaracterizar a demanda popular, em nome do aparelhismo do partido, da igreja ou da classe (...)" [4]

Desta forma, promove-se a troca de conhecimentos, sem imposições, permitindo que a comunidade exponha suas demandas e seja possibilitada a solucioná-las.
Deve-se ter claro que o militante deve estar imbuído no "respeito para com as populações imersas nos processos sociais que se deseja estudar", o qual "se expressa particularmente através da devolução do conhecimento aos setores-chave da classe popular (...) devolver às massas com maior clareza e de forma sistematizada o conhecimento que delas recolheu difusamente”.
Conclui-se, portanto, que há grande semelhança na forma de atuar dos núcleos de Assessoria Jurídica Popular e dos grupos que utilizam as técnicas do Teatro do Oprimido, uma vez ambos buscam a emancipação do ser, sem que haja nas relações desenvolvidas a promoção de um sujeito que detém o conhecimento e o passa numa relação unilateral, mas busca a promoção da igualdade material dentro da relação, através da construção conjunta.

[1] SANTOS, Bárbara. Teatro do Oprimido. Centro do Teatro Oprimido.
[2] MOURA, Aliyne Dayse Macedo de. Direito e Arte: A utilização do Teatro do Oprimido por parte das Assessorias Jurídicas Universitárias Populares. 2012, p. 16.
[3] CRUZ, Joana. O que é o teatro do oprimido?
[4] RIBAS, Luís Otávio. Direito insurgente e pluralismo jurídico: assessoria jurídica de movimentos populares em Porto Alegre e no Rio de Janeiro (1960-2000). Florianópolis, 2009. P. 71.
[5] BONILLA, Victor D; CASTILLO, Gonzalo; BORDA, Orlando Fals; LIBREROS, Augusto. Causa popular, ciência popular. Uma metodologia do conhecimento científico através da ação. In: BRANDÃO, Carlos Rodrigues. Repensando a pesquisa militante. São Paulo: Brasiliense, 1999. P. 130-157.

Referências Bibliográficas:
BONILLA, Victor D; CASTILLO, Gonzalo; BORDA, Orlando Fals; LIBREROS, Augusto. Causa popular, ciência popular. Uma metodologia do conhecimento científico através da ação. In: BRANDÃO, Carlos Rodrigues. Repensando a pesquisa militante. São Paulo: Brasiliense, 1999.
CRUZ, Joana. O que é o teatro do oprimido? Disponível online <http://oprima.wordpress.com/o-que-e-o-oprimaiabout/›.
MOURA, Allyne Dayse Macedo de. Direito e Arte: A utilização do Teatro do Oprimido por parte das Assessorias Jurídicas Universitárias Populares. 2012. Disponível online <http://www.idb-fdul.com/uploadecl/files/2012_07_4181_4207.pdf›.
RIBAS, Luís Otávio. Direito insurgente e pluralismo jurídico: assessoria jurídica de movimentos populares em Porto Alegre e no Rio de Janeiro (1960-2000). Florianópolis, 2009.

SANTOS, Bárbara. Teatro do Oprimido. Centro do Teatro Oprimido. Disponível online: <http://ctorio.org.brinovosite/arvore-do-to/teatro-do-oprimido/›.

quinta-feira, 10 de março de 2016

As AJPs e uma teoria crítica da sociedade

A coluna AJP na Universidade retorna neste ano de 2016 com uma seleção de textos produzidos para a disciplina tópica (equivalente às disciplinas eletivas de outras instituições) Assessoria Jurídica Popular, ministrada por Ricardo Prestes Pazello, na Universidade Federal Paraná, durante o primeiro semestre de 2014. Como primeiro tema, trazemos a discussão sobre a relação da Assessoria Jurídica Popular com uma teoria crítica da sociedade – no caso, especificamente o marxismo – e quais contribuições esses construtos teóricos oferecem à prática das AJPs. O autor, Pedro Pompeo Pistelli Ferreira, é graduando em direito na Universidade Federal do Paraná e participou do MAJUP – Isabel da Silva.

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As AJPs e uma teoria crítica da sociedade

Pedro Pompeo Pistelli Ferreira

Entre várias questões que são necessárias para fundamentar uma boa prática de educação popular e, portanto, da própria assessoria jurídica popular, uma das mais basilares é a construção de uma concepção crítica da sociedade, que, se bem realizada, permitirá desde uma satisfatória crítica ao direito à possibilidade mesma de formular alternativas à realidade atual.
Isso é importante porque, na prática de assessoria junto ao povo, não basta convalidar-se com o sofrimento deste; urge, se se pretende um compromisso real com os esfarrapados e as esfarrapadas do mundo, uma explicação lógica e rigorosa da realidade, que permita compreender o porquê da situação de opressão e que, então, propicie a possibilidade de pensar alternativas à sociedade vigente.
Nenhum caminho, até hoje, parece melhor explicar a situação de pauperismo presente na nossa sociedade do que o marxismo. Marx, n’O Capital, faz uma cirúrgica análise da construção da riqueza capitalista: em aparência, ela parece relacionada à mercadoria e à sua esfera de distribuição (gera riqueza quem compra barato e vende caro); em essência, descobre-se que a geração de riqueza é impossível sem a compra da força de trabalho alheia, que produz mais valor do que recebe em salário. Assim, o trabalho, essa capacidade humana de transformar a natureza humanizando-a e transformar-se a si mesmo humanizando-se, torna-se atividade repetitiva, alienada, feita tendo em vista um mísero salário e não a plena realização do ser humano. Os setores burgueses, para lucrar, precisam utilizar meios diretos (reduções de salários, aumento da jornada de trabalho, etc.) e indiretos (aumento da tecnologia capitalista e, portanto, da produção e de suas forças produtivas) de exploração. A sociedade, dessa forma, deixa de ser controlada por homens e mulheres que buscam humanizar-se, mas sim por pequenos grupos que, cegados pela busca do aumento da produção e das riquezas, constroem uma sociedade com prioridades invertidas: o ser humano passa a ser governado pelo ímpeto do capital de acumular-se infinitamente, insaciavelmente.
Contudo, o rigoroso método usado por Marx para a apreensão da realidade não serve apenas para a denúncia dos problemas da sociedade; ele nos sugere a busca de alternativas para a construção de uma humanidade emancipada.
Sua atuação política e teórica esteve estreitamente ligada à organização do operariado: participou em reuniões de seitas socialistas de trabalhadores franceses, defendeu as revoltas dos tecelões da Silésia em 1844 contra as opiniões de antigos companheiros, participou da Liga dos Comunistas, atuou durante as insurreições de 1848, teve estreitos laços com o movimento cartista na Inglaterra, teve parte protagonista na Primeira Internacional dos Trabalhadores, acompanhou ativamente o breve governo da Comuna de Paris e fez-se importante interlocutor para os populistas russos em sua luta contra o tsarismo – para citar apenas alguns casos. Sempre teve tais condutas almejando aprender com a luta dos trabalhadores e das trabalhadoras e, dela, extrair alternativas ao capitalismo.
Lenin, por exemplo, captou com muita propriedade essa tendência, ao comentar a relação de Marx com a Comuna de Paris:
“Alguns meses antes da Comuna, no outono de 1870, Marx, pondo de sobreaviso os operários parisienses contra o perigo, demonstrava-lhes que qualquer tentativa para derrubar o governo era uma tolice ditada pelo desespero. Mas quando, em março de 1871, a batalha decisiva foi imposta aos operários e estes a aceitaram, quando a insurreição se tornou um fato consumado, Marx saudou com entusiasmo a revolução proletária. Apesar dos seus sinistros prognósticos, Marx não teimou em condenar por pedantismo um movimento ‘prematuro’ [...]. Muito embora o movimento revolucionário das massas falhasse ao seu objetivo, Marx viu nele uma experiência histórica de enorme importância, um passo para a frente na revolução proletária universal, uma tentativa prática mais importante do que centenas de programas e argumentos. Analisar essa experiência, colher nela lições de tática e submeter à prova a sua teoria, eis a tarefa que Marx se impôs” [1].
Não é à toa que Marx, após ser influenciado pela Comuna de Paris, reescreve O Capital, criando sua edição francesa – que ele próprio recomendou ser lida mesmo por quem já conhecia a versão alemã –, quando é, por exemplo, desenvolvida e estendida a parte sobre o fetichismo da mercadoria: esse fenômeno que só terá o fim de seu misticismo quando a denominada “figura do processo social da vida”, enfim, “como produto de homens livremente socializados, [...] ficar sob seu controle consciente e planejado” [2].
Logo, a construção teórica de Karl Marx é imprescindível para a consecução de uma atuação concreta e realmente libertadora das AJPs, porque, primeiro, explica de forma rigorosa a construção desigual e exploradora da sociedade capitalista; depois, dá indicações de como construir uma alternativa ao modo de produção vigente: com um estreito vínculo ao lado dos movimentos emancipatórios dos trabalhadores e das trabalhadoras, dos oprimidos e das oprimidas. Uma teoria crítica da sociedade que explique as razões da exploração e da opressão, como a propiciada pelo materialismo histórico – que, certamente, nunca deve isolar-se do diálogo com outros pensamentos críticos –, então, é um fundamental ponto de partida para pensar em temas caros à assessoria jurídica popular, como uma crítica ao direito, o estudo da completa marginalização de grande parte da sociedade e a reflexão incessante sobre a árdua execução de ações libertadoras que rumam para a construção “da felicidade que segue caminhando” [3].

[1] LENIN, Vladimir Ilitich. O estado e a revolução. Campinas-SP: FE/UNICAMP, 2011, p. 72, grifos nossos.
[2] MARX, Karl. O Capital: Crítica da economia política. t. I. Livro Primeiro. São Paulo: Editora Nova Cultural, 1996, p. 205.
[3] Trata-se do final de poema de Roque Dalton sobre Marx, com “tradução” nossa. Ver: DALTON, Roque. Karl Marx. Em: CHERICIÁN, David (comp.). Asalto al cielo: antología poética. 2. ed. Caracas: El perro y la rana, 2010, p. 445.


quinta-feira, 21 de janeiro de 2016

Morro





- Era ali?
- Foi aqui seu moço.
- Mas quem abriga a intolerância ao outro?
- Quem desabriga a esperança do povo?
- É que insistem em abortar o novo, seu moço.
- Mas calma lá, nós arranja outro lugar.
- Será?
- E se ficar?
- E se for pra lutar, lutar essa luta com os que forem ficar?
- O homem coletivo sente a necessidade de lutar.
- O homem coletivo sente a necessidade de lutar.
- O homem coletivo sente a necessidade de lutar?
- Todo dia, seu moço,
- Pouco a pouco, seu moço,
- Todo dia eu morro esse morro.
- Subiram o morro, passaram o caminhão nos barraco abandonado.
- Acho que os homi tá ca razão mesmo.
- Disseram-nos um direito cego, direito que nos dá medo.
- Vão derrubar tudo!
- Já?
- Já tem prazo, é prazo pra nós arranjá outro lugar.
- E dá pra aumentar?
- Podemos tentar.
- Vocês conseguem?
- Vocês conseguem.
- Podemos tentar. Será que o juiz conversa com nós?
- Sim. Pede licença e faz teu grito. Faz o teu direito.
- Será que o seu doutor ouviu a gente?
- Não importa, acho que vou embora antes mesmo de dezembro.
- Será domingo, depois da missa.
- Como queria que, por um dia, o direito se entortasse sem um teto, sem um puto no bolso, recebendo olhares desconfiados, sem ter para onde ir.
- Era preciso mesmo putalizar o direito, tirá-lo desse sossego.
- Ah, nesse dia, seu moço, o direito subiria, subiria direto para o morro.
- Levantaria, no desespero, um pequeno barraco de madeirite e lona.
- Em cima do chão batido, aprenderia a chamar de moradia seu abrigo, sua maloca.
- Veio nova ordem superior, lá da capital.
- Deu certo a pedição?
- Não.
- Apenas mais quarenta e cinco dias.
- Mas não se preocupe, meu amigo.
- Quarenta e quatro.
- A vida, seu moço, é realmente diferente.
- Quarenta e três.
- Ao vivo.
- Quarenta e dois, quarenta e um.
- É muito pior
- Quarenta, trinta e nove, trinta e oito.
- Artigo quinto, inciso vinte e dois.
- Trinta e sete.
- Artigo quinto, inciso vinte e dois.
- Trinta e seis.
- Trinta e cinco.
- Trinta e quat…
- Trinta e…
- Tr…
- …
- ...
- Todo dia, seu moço,
- Pouco a pouco, seu moço,
- Todo dia eu morro esse morro.


Esse texto foi inspirado nas atividades de assessoria jurídica popular exercidas pela LAJUP (Lutas Assessoria Jurídica Universitária Popular) junto aos moradores do Morro dos Carrapatos, ocupação urbana de cerca de 40 famílias na cidade de Londrina/PR.  Essa comunidade vem sendo ameaçada de despejo, por uma ordem judicial concedida em setembro de 2015, que concedeu 45 dias para reintegração de posse, tempo este prorrogado para mais 45 dias em julgamento de agravo de instrumento. As histórias dos moradores do Morro dos Carrapatos e os informes sobre a ocupação podem ser encontradas na página da LAJUP.

Reunião com moradores do Morro dos Carrapatos

Pensando no acúmulo e na articulação que este blogue proporciona aos diversos grupos de assessoria jurídica e advocacia popular no país, deixamos disponível as “pedições” de contestação e o agravo de instrumento protocolados no processo. Não poderíamos deixar de fazê-lo, principalmente pelo fato de que ambos são frutos não só de um de trabalho coletivo envolvendo estudantes, advogados e advogadas, e os morados do morro dos carrapatos, como também de conversas com outros tantos que militam na assessoria jurídica popular e que generosamente disponibilizaram suas “pedições”, pesquisas e experiências sobre o direito e, sobretudo, as coisas reais.