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domingo, 29 de maio de 2011

A vida nua concreta e a autoconsciência latino-americana: reflexão a partir de um poema de resistência

Há momentos em que o melhor é calar-se. Não se calar por não ter nada a dizer, mas porque faltam palavras para se dizer o indizível do dia-a-dia. Às vezes, falta inspiração; por outras, faltam forças. O indivíduo, em sua solidão costumeira, consegue tão-somente superar-se. Superar seu entorno é tarefa impossível. E o que fazer quando queremos transformar o mundo, recriá-lo, fazer caber todos? A solidão, o indivíduo, não são as respostas certas.

Os últimos acontecimentos têm evidenciado, de alguma maneira, isto. E daí me vir à cabeça a concretude da relação resfolegante vida-morte para nós. As mais recentes postagens de Phelipe Bezerra Braga demonstram-no (Mostra o que ninguém vê, de 27 de maio pela manhã, e Mostra o que ninguém vê, de 27 de maio à noite). Também eu e outros temos tocado nesta questão, às vezes inconscientemente. Basta lembrar as postagens sobre o falecimento de Sebastião Bezerra da Silva (Calourada do SAJU-USP e extensão) ou os quatro advogados populares mortos (Lembrando quatro advogados populares assassinados: símbolos de resistência jurídica).

Eu disse "relação resfolegante vida-morte para nós". Mas quem somos este nós? É certo que a relação vida-morte é universal, mas talvez não o sejam a perplexidade e agonia que gera bem como a fundamentalidade que adquire. Talvez, dessa forma, ganhe inteira a crítica ao filósofo d'além-mar: a "vida nua" não é mera abstração ou joguete simbólico de interpretação de um distante fenômeno essencial da vida; para nós, esta vida despida é totalmente concreta, seja porque não mera alegoria ou metáfora, seja porque não imaterial. Mas a questão persiste: o nós!

Vou lançar, agora, uma tese, pouco novidadesca, mas razoavelmente pujante, que concretiza a vida nua, já que negada, e que comunitariza o indivíduo, já que estéril em sua solidão. O exílio prático das "alegorias da derrota" latino-americanas (nem tão alegóricas assim) foi um possível apogeu da autoconsciência continental. E esta se expressou, reiteradamente, por vias poéticas.

Antes de começar a escrever esta postagem, pensei em vários títulos para ela. Percebi que pensar nos títulos era influência da necessidade do impacto, tal e qual o gerado em mim por um poeta desconhecido e que escreveu uma continental canção do exílio. "Longo caminhar", "Rocio do amanhecer", "Golpear-te América", "Uma vida quase inteira vivida na penumbra tumular dos socavões", "Cada promessa de paz é uma mentira", "Morrer sempre", "A vida é um gesto de amor desesperado", "Meu canto é um grito de combate", "Flores de sangue que murcharam", "Lírico fuzil" e "Iluminados corpos que tombaram"; tantos possíveis títulos, verdadeiras manchetes do impossível (ou inaceitável possível) de nosso tempo. Nosso, porque de todos nós, latino-americanos, latinos e americanos, para lembrar o poema.

E está dado que à mente vem a intertextualidade da poesia do tempo de antes e posterior, pois de Castro Alves a José Paulo Paes, de Tiago de Melo a Hamílton Faria, de Cenair Maicá a Chico Buarque, de Araújo Jorge a Ferreira Gular (mesmo que politcamente falecido) ou, ainda, de Manoel Bonfim a Darci Ribeiro, para lembrar apenas de brasileiros, tudo é discurso - e com que eloqüência! - a favor de uma "Canção de amor à América", como a do poeta da resistência Manoel de Andrade, curitibano e de exílio cediço, que escreveu o clássico "Poemas para la libertad" em 1970 e só em 2009 obteve uma sua publicação no Brasil, antecedida, dois anos antes, pela de outro livro, "Cantares".

Mas, como assinalei, tem vezes que é melhor calar, não ter nada a dizer, mas porque faltam palavras para se dizer o indizível. E como já calei pouco, deixo que o poeta diga por mim:



Canção de amor à América (Manoel de Andrade)

Ai América,
que longo caminhar!

Eu venho com o trigo do meu canto,
minha ternura aberta
e o meu espanto;
e desde o fundo de mim e assombrado
e pelos meus lábios de vinho e gaivotas,
te trago o meu cantar de caminhante.

Para ti, amada minha,
para teu corpo de cansaço
e por tua fome
eu trago este meu verso frutecido.

Eu venho com o rocio do amanhecer
sou o cantor da aurora
o que desperta
o que anuncia a vida e a esperança.
Eu sou o mensageiro destes anos
o cantor deste tempo e destas terras
eu sou daqui,
desde a Patagônia até o Rio Grande
e desde aqui alço meu canto para o mundo.

Ai América,
que longo caminhar!

Eu sou como uma ave que passa
apenas um cantor errante,
mas se na minha voz há uma guitarra delirante,
é para golpear-te América,
para levantar teu braço adormecido.

Agora venho cantar-te
e meu canto é como o dia e como a água
para que me entenda sobretudo o homem humilde.
Agora venho cantar-te
mas em teu nome América,
eu só posso cantar com a voz que denuncia.

Eu não venho cantar o esplendor de Machu Picchu
a Grande Cordilheira e a neve eterna;
não venho cantar a esta América de vulcões e arquipélagos
a esta América altiplânica da lhama esbelta e de vicunha;
eu venho em nome de uma América parda, branca e negra,
e desde Arauco a Yucatán,
venho em nome desta América indígena agonizante,
eu venho sobretudo em nome de uma América proletária
em nome do cobre e do estanho ensangüentado.

Eu hoje não vim cantar um continente de paisagens,
não vim falar dos lagos escondidos na montanha
nem dos rios que correm ao fundo dos vales florescidos;
não, eu não vim cantar a este trigo que se nega a quem semeia;
eu venho por uma história mais sincera,
venho falar do homem que vi e ouvi pelos caminhos.

Ai América,
que longo caminhar!

Eu venho falar do camponês
de sua pele seca e sua cor de bronze,
de sua túnica desbotada e o seu colchão de terra,
de sua resignação e seu misterioso silêncio,
de seu grito incontido que em alguma parte se levanta,
de sua fome saciada com o sangue dos massacres.

Eu venho falar do mineiro e sua morte prematura,
de uma vida quase inteira vivida na penumbra tumular dos socavões,
da silicose escavando dia a dia os pulmões dos operários jovens;
eu venho falar das palhiris bolivianas,
dessas desamparadas viúvas do mineiro massacrado ou soterrado,
que buscam no lixo do estanho,
o pão diário dos seus filhos.

Eu não vim para falar do encanto colonial destas cidades,
dos altares espanhóis recobertos com o ouro incaico,
das grandes praças onde se erguem as estátuas magníficas dos libertadores;
venho falar de favelas, barriadas e tugurios,
de povoações calhampas e vilas-misérias,
eu venho falar da tuberculose e do frio,
venho em nome dos meninos sem pão e chocolates.

Eu venho falar por toda voz eu se levanta,
por uma geração reprimida com fuzis,
venho falar das universidades fechadas
e com a marca das tiranias encravadas nas paredes.

Eu venho denunciar falsas revoluções
e o oportuno pacifismo,
venho falar de um tempo de desterros e torturas,
eu venho alertar sobre um terror que cresce uniformado
e sobre estes anos em que cada promessa de paz é uma mentira.

Ai América,
que longo caminhar!

Rumo ao norte
ao sul
a leste ou a oeste,
eu avanço atravessando estas nações.

Oh, caminhar, caminhar
e saber sentir-se um caminhante!
pois é tão triste morrer a cada dia
morrer com os punhos abertos e o coração vazio.
Morrer distante do homem e sua esperança
morrer indiferente ao mundo que morre
morrer sempre
quando a vida é um gesto de amor desesperado.

Oh, caminhar, caminhar!
mas caminhar como caminha o rio e a semente,
conhecendo a mais completa plenitude em seu destino.
Oh, caminhar!
e saber-se um dia fruto.
Caminhar
e sentir-se um dia mar.

Ai, América,
que não exista a dúvida em meu caminho,
que somente me guie este imenso amor que trago,
que apenas esta paixão de justo me enamore.

Fui prisioneiro,
mas outra vez sou pássaro,
outra vez um caminhante,
e volto a abrir a alma com meu canto.

Hoje me detenho aqui...
Levanto minha voz,
minha bandeira de sonhos,
minha fé.
Recolho meu testemunho e me vou.

Eu sou o jogral maldito
e bem-amado.
Meu canto é um grito de combate
e eu não canto por cantar.
Eu parto deixando sempre uma inquietude,
deixando numa senha a certeza de uma aurora.

Eu sou o cantor clandestino e fugitivo,
aquele que ama a solidão imensa dos caminhos.
Passo despercebido de cidade em cidade.
Em algum lugar público eu vou dizer meus versos
e ali conheço amigos e inimigos.
Mas sempre pude encontrar ao grande companheiro,
ao homem novo,
aquele que traz a marca verdadeira,
aquele que se aproxima em silêncio
e como um gesto inconfundível me saúda.

Ai América,
que longo caminhar!

Eu venho amada América,
para iluminar com meu canto este caminho,
te trago meu sonho imenso, latino e americano,
e meu coração descalço e peregrino.
Mas quando sinto meu sangue escorrendo-se nos anos
e que a vida se me acabe antes de ver-te amanhecida;
quando penso que é muito pouco amada minha
o que eu posso dar-te um poema;
ai, quando penso nestas flores de sangue que murcharam,
nestes iluminados corpos que tombaram,
e que talvez não pude fazer por ti quando quisera,
ai, se com o tempo eu descobrir
que este lírico fuzil que trago não dispara,
ai, América,
quem dirá que a intenção que tive foi sincera.

Quito, agosto-70

(Extraído da versão publicada na revista Encontros com a civilização brasileira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, n. 19, janeiro de 1980, p. 7-10, inclusive para pontuação e ortografia).

Ver mais:

- Manoel de Andrade, poeta da resistência;
- Postagens sobre Manoel de Andrade no blogue Banco da Poesia;
- El cantor pelegrino de América, por Enrique Rosas Paravicino.

Pós-escrito: esta reflexão foi construída como fechamento de um ciclo, pois passaremos a reestruturar a periodicidade de textos das colunas Prestes e Luiz Otávio. A Coluna Prestes esta semana completou sete meses, nos quais, ininterruptamente, todo domingo apareceu uma postagem minha para falar de crítica jurídica, marxismo, América Latina, antropologia ou movimentos populares. Depois de trinta domingos (este foi o trigésimo-primeiro), Luiz Otávio Ribas e eu dividiremos o primeiro dia da semana e traremos nossas reflexões a cada quinze dias cada um.

segunda-feira, 16 de maio de 2011

Os quilombolas e o estado: vídeo-reportagem sobre o quilombo de São João

Como mais um trabalho conseqüência da atuação do Ministério Público paranaense junto a comunidades tradicionais, e que já foi por mim aqui lembrada na postagem Os quilombolas e o estado: uso alternativo do Ministério Público, no Paraná, publico a reportagem de Henrique Oliveira, com imagens de Harrison Esmaniotto, sobre a Comunidade São João, comunidade de quilombolas do Paraná.


Foto de Maria José da Mota Santos trabalhando, especialmente homenageada na reportagem (arquivo do MP-PR)


quarta-feira, 4 de maio de 2011

Os quilombolas e o estado: uso alternativo do Ministério Público, no Paraná

Após ter tido a oportunidade de conhecer a atuação do Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Direitos Constitucionais (CAOP de Direitos Constitucionais) do Ministério Público do Estado do Paraná, trago para o blogue o texto da jornalista popular Ednubia Ghisi, que trabalha junto a este CAOP bem como ao CEFURIA, sobre a realidade dos quilombolas paranaenses da região mais pobre do estado, o Vale da Ribeira, e sua luta no plano institucional, o que demanda nossa reflexão e sensibilidade sobre os vários níveis de reivindicação/contestação dos movimentos populares.


Reunião do CAOP de Direitos Constitucionais com a comunidade quilombola de São João (PR), com a presença de professores universitários, advogados populares e agentes estatais (foto do acervo do MP-PR)

Quilombolas do Paraná lutam pelo reconhecimento de direitos
por Ednubia Ghisi

Em 1760, chegavam à região de Adrianópolis (PR), no Vale do Ribeira, os primeiros habitantes da comunidade São João. As memórias passadas de geração para geração relatam que João Muratinho e Tomázia Fernanda de Matos foram os precursores da ocupação, vindos da cidade de Eldorado Paulista, em São Paulo. São João é uma das 36 comunidades certificadas pela Fundação Cultural Palmares como remanescentes de quilombos no Paraná, fruto da resistência da população negra escravizada durante mais de 300 anos. Até 2010, foram identificadas mais de 80 comunidades quilombolas no Estado, segundo relatório do Grupo de Trabalho Clóvis Moura – grupo intersetorial criado em 2005 pelo Governo do Estado, com o objetivo de realizar o Levantamento Básico de Comunidades Negras.

A pequena vila iniciada por João e Tomázia, localizada na margem do Rio São João, hoje é habitada por 12 famílias quilombolas. Está a seis quilômetros da cidade paulista de Barra do Turvo e a aproximadamente 175 km da sede do município a que pertence, Adrianópolis, 374ª cidade no ranking estadual do Índice de Desenvolvimento Humano. A comunidade já foi maior, mas as dificuldades decorrentes do isolamento geográfico têm forçado a migração para o meio urbano, especialmente depois da criação do Parque Estadual das Lauráceas, na divisa entre Barra do Turvo e Adrianópolis, em 1979. Reserva importante do bioma Mata Atlântica, com 29.086 hectares de extensão, o Parque, por outro lado, dificultou ainda mais o acesso dos quilombolas às políticas públicas, desde a ligação com a rede elétrica até a construção de estradas que os conduza à sede do município de Adrianópolis.

Além de São João, as comunidades quilombolas Estreitinho, Três Canais e Córrego do Franco, de Adrianópolis, e Areia Branca, de Bocaiúva do Sul, vivem o mesmo contexto de isolamento desencadeado pela criação do Parque e são obrigadas a procurar os serviços públicos, como saúde e educação, no município de Barra do Turvo, em São Paulo, cidade mais próxima.

A partir da reivindicação das comunidades do Vale do Ribeira e de outros povos remanescentes de quilombos no Estado, desde 2008, o Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça dos Direitos Constitucionais tem buscado assegurar a efetivação dos direitos fundamentais destes grupos. Para o procurador de Justiça Marcos Bittencourt Fowler, que atuava no Centro de Apoio dos Direitos Constitucionais, incluir a questão quilombola nas incumbências do Ministério Público foi uma grande conquista, uma vez que não havia nenhuma atuação nesse sentido no Paraná ou em outros estados. Antes, apenas o Ministério Público Federal atuava, voltado especialmente às questões indígenas. “O trabalho tem sido o de inserir as demandas comunitárias na agenda do Estado em sentido amplo, pois estes povos estão há muitos anos à margem das políticas públicas, o que torna as respectivas necessidades estruturais e urgentes. É preciso ter atuação ampla”, afirma.

Osvando Morato dos Santos, morador da comunidade São João, avalia que, para além do isolamento geográfico, a população quilombola está invisível aos olhos do Estado. “Nós temos tido muito pouca atenção do estado e do município. O acompanhamento dos nossos problemas precisa ser mais presente e constante por parte do poder público”. Segundo Santos, a intervenção do MP-PR tem sido positiva e precisa continuar: “O Ministério Público tem nos ajudado bastante e trazido esclarecimentos sobre nossos direitos”.

Pé na comunidade
Se a existência de comunidades quilombolas era desconhecida no Paraná, intervir nesta realidade exigiu do Ministério Público um esforço de aproximação e compreensão das especificidades e da conjuntura em que vivem atualmente os remanescentes quilombolas. Na avaliação de Fowler, o poder público precisa levar em conta as peculiaridades dos diferentes grupos que formam o povo brasileiro quando executa uma política, para evitar injustiças e imposições. No caso da população quilombola, o procurador de Justiça sinaliza a origem como principal especificidade: “Os quilombolas nascem no contexto de opressão do regime escravocrata, em que seres humanos foram tratados como mercadoria. Eles têm a marca viva da opressão e se constituem enquanto resistência àquela realidade. O Estado precisa ter o cuidado de levar em conta essas particularidades, inclusive por ter sido protagonista e responsável pela escravidão”.

Dentro do projeto estratégico “Ministério Público Social”, o Centro de Apoio realiza visitas de campo para conhecer a realidade quilombola e sistematizar informações referentes ao grau de acesso às políticas públicas nas localidades. Para tanto, vem sendo realizados seminários, audiências públicas e reuniões com a intenção de fomentar e ampliar o diálogo entre as comunidades e órgãos estatais, estudiosos e integrantes das comunidades. As dificuldades encontradas nas diferentes localidades são parecidas e confirmam a precariedade em que vivem esses povos.

Há muito tempo os moradores reivindicam o reconhecimento de suas terras. Segundo informações do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), existem 36 processos de regularização de territórios quilombolas abertos no estado, mas por falta de técnicos a previsão é de que o reconhecimento demore a chegar: “A equipe do Incra está reduzida, são quatro servidores para atender todas as demandas. Os processos levarão pelo menos de quatro ou cinco anos para serem finalizados”, afirmou Claudio Marques, responsável pela regularização dos territórios quilombolas, durante audiência pública organizada pelo CAOP no Córrego do Franco, em Adrianópolis, em 20 de novembro de 2010.

No Vale do Ribeira, a extração de madeira de reflorestamento e a criação extensiva de búfalos em fazendas formam paisagem recorrente, em contraste visível com as práticas de agricultura familiar das comunidades tradicionais. Para ter acesso à estrada, os moradores precisam passar pelo rebanho, dando ensejo a repetidos casos de ataques dos animais, especialmente às crianças. Igualmente, a criação de búfalos nas fazendas da região contamina a água utilizada pela população.

O acesso à educação e à saúde é outra dificuldade recorrente. Para frequentar a escola, as crianças quilombolas são obrigadas andar de dois a seis quilômetros. “Se alguém fica doente precisa ser levado para a cidade a cavalo, como foi com a minha esposa, que adoeceu e acabou falecendo. Em outro caso recente, precisamos carregar nas costas um rapaz que tinha quebrado uma perna”, relata Santos.

O conjunto de demandas apresentadas pelas comunidades tem sido levado a órgãos públicos, federais e estaduais, a fim de que possam ser estruturadas políticas públicas específicas. Todavia, para além de esperar a iniciativa do Estado, as comunidades estão avançando na organização política e na inserção em espaços públicos de decisão, por meio da Federação de Comunidades Quilombolas do Estado do Paraná (Fecoqui), fundada em 2009, e da participação no Conselho Estadual de Desenvolvimento Rural da Agricultura Familiar, nos Conselhos Gestores dos Fóruns Territoriais nos Territórios da Cidadania, nos Conselhos Municipais de Desenvolvimento Rurais e nos Conselhos Municipais de Saúde, entre outros.

Resultados
A partir da intervenção do MP-PR, o município de Adrianópolis passou a deslocar para a região equipe técnica das áreas de saúde, educação e assistência social, a fim de solucionar os problemas detectados. Corrigiram-se, por exemplo, falhas no atendimento pelo posto de saúde e pela escola que assistem aquelas comunidades. As famílias também foram inscritas em programas sociais, como o Bolsa Família e o Luz para Todos. Foi disponibilizado, ainda, o acesso à aposentadoria destinada a trabalhadores rurais, por meio do INSS, que passará a destacar equipe para orientar os moradores e receber a documentação. Também já foram finalizados pelo Incra os laudos antropológicos necessários para o reconhecimento das áreas como territórios quilombolas.

Raízes reconhecidas
No Paraná, de acordo com dados de 2010 do Grupo de Trabalho Clóvis Moura, existem 36 comunidades certificadas pela Fundação Cultural Palmares como remanescentes de quilombos, 20 comunidades negras rurais e 32 indicativos de comunidades que poderão receber a certificação como quilombolas.

Durante o governo Lula, de 2003 a 2010, 1.573 comunidades foram certificadas pela Fundação Cultural Palmares, a partir da emissão de Certidões de Autodefinição, principalmente nos estados do Maranhão, Bahia, Minas Gerais, Pernambuco, Pará e Rio Grande do Sul. A certificação é a primeira etapa do processo de reconhecimento, quando a própria comunidade se autodefine quilombola. Depois da certificação, o processo segue para o Incra, para relatório que identifica e delimita as comunidades. Na terceira etapa, é realizada a identificação dos imóveis rurais dentro do território da comunidade quilombola, quando os imóveis particulares são desapropriados e as famílias não-quilombolas que se enquadram no Plano Nacional de Reforma Agrária são reassentadas pelo Incra. A quarta e última fase é a titulação, quando a comunidade recebe um único título correspondente à área total. Segundo informações da Fundação Palmares, de 1995 até 2010 foram emitidos 113 títulos, beneficiando 11.506 famílias. No Paraná, nenhuma comunidade foi titulada até o momento. Atualmente existem mais de dois mil processos abertos para certificação de comunidades quilombolas no país. 

(O presente artigo se encontra em "Contexto: revista do Ministério Público do Estado do Paraná", n. 1, março de 2001, p. 20-22.)

domingo, 24 de abril de 2011

Lembrando quatro advogados populares assassinados: símbolos da resistência jurídica

Motivado pela batalha teórico-prática de vários companheiros deste blogue em destacar a importância da assessoria jurídica popular inclusive no campo da advocacia popular, vou relembrar aqui quatro importantes advogados populares brasileiros que acabaram pagando com suas vidas o preço da luta política a serviço das classes subalternas.

O último domingo marcou a data do massacre de Eldorado dos Carajás. Num 17 de abril do nem tão longínquo ano de 1996, Oziel Alves Pereira e mais 18 trabalhadores sem-terra tombavam numa ação da repressão estatal contra a reivindicação e contestação de um movimento popular com a força do MST.

Por coincidência, nesta semana, caiu em minhas mãos um livro sobre vários militantes e lideranças populares assassinadas nos últimos 35 anos. Trata-se do livro “Raízes: memorial dos mártires da terra”, de Jelson Oliveira, um conjunto de poemas em homenagem a cada uma das vidas ceifadas no calor das lutas populares. Cada poema se intitula com o nome de um lutador assassinado e dentre eles está Oziel:

Tua sandália, Oziel, imprecisa no tamanho de crescer,
Inconstante na cor de parecer, gelou-se na poça vermelha.
Poça da noite misturada em 19 tons.

Muito se lembrou nestes dias que passaram o massacre e Oziel. Relembrá-los é um dever. Mas nas idas e vindas dos poemas também outras importantes personagens históricas surgiram, com especial interesse para nós da assessoria jurídica popular.

São quatro advogados. O primeiro é Eugênio Lira (sobre quem já se falou aqui no blogue) que acabou por atuar muito de perto junto a camponeses de terras griladas, chegando a participar ativamente das denúncias que levariam à CPI da grilagem. Um dia antes de seu depoimento na CPI, em Salvador, leva um tiro na testa quando estava à porta de uma barbearia da cidade baiana de Santa Maria da Vitória e ao lado de sua esposa grávida.


Eugênio Lyra


(Advogado dos trabalhadores/as rurais de Santa Maria da Vitória e Ecoribe, Bahia. Assassinado no dia 22 de setembro de 1977).

(Pesado, o tempo vestiu a suficiência do carvão
Engomado pelo destino severo da morte e suas ferramentas...)

Preservaste a dureza exata das verdades
Como rubis perpetuados no celeiro escuro da terra
Como peixe embebido no rio e suas diferenças
Como nuvem decifrando o enigma cilíndrico do azul.

Antes que a terra ouvisse o rouco grito
- e a queda do corpo recolhido
retornasse ao orvalho e à cal -,
foste um silencia estendido e úmido,
soprando acima dos tribunais armados.

Foste a fertilidade dos protocolos
E suas vasilhas de invejas e tiranias.
Habitante das legislações do amor e seus ninhos,
procuraste os roteiros desusados da Justiça
para traçar o direito proibido dos pobres.

Apartado como um rio, carregado de verdade e som,
Defendeste a integridade do povo
Na casa onde desfalece o corpo dos relâmpagos.
Indomado, acendeste a luz para lumiar
O caminho aos que te seguem noite adentro...

***

O segundo advogado é Agenor Martins Carvalho. Advogado de 950 famílias de posseiros desabrigados por conta de despejo em favor de empresários e pecuaristas de Porto Velho, Agenor foi brutalmente assassinado em sua casa, depois de algumas ameaças de morte. Seria conhecido como o “advogado dos pobres” e acabaria sendo um sinal de problemas para as elites locais rondonienses. Seus algozes não seriam condenados penalmente, mas apenas civelmente, em 2007, devendo pagar indenização à família numa quantia superior a 1 milhão de reais.


Agenor Martins de Carvalho

(Advogado dos Trabalhadores Rurais assassinado em sua casa em Porto Velho, Rondônia, atingido por dois tiros de revólver diante de sua esposa e filhos, na madrugada do dia 9 de novembro de 1980).

Lá, nas distâncias de novembro
Elevado nas paisagens fugidias
A agonia de um homem
Estendia a chuva sobre as árvores.
Deus visitava as palavras turvas
Espalhando a sombra dobre o cansaço.
Deus pendia das alturas do crucifixo,
Tudo era exposto e ambulante.
Tudo era provisório, mais do que as estrelas.

O homem freqüentava seus salões.
O homem alternava o silêncio com verdades:
Os pêndulos parados, os juízes, as leis.
O vago mercado da palavra.
A narrativa, as provas,
as perícias bem montadas sobre o crime.
As heranças e as fugas. As mentiras.
As discórdias afeitas para o nada.
Os testemunho, o sangue amargando as vozes.
Datas, pessoas, cifras, cofres: teu conteúdo.

O mundo porém, para ti, era leve demais
Como a sombra do carvalho.
Foste encontrar a claridade dos rios
E advogar pelo povo junto aos altares divinos...

***

O terceiro advogado é Joaquim das Neves Norte que trabalhou junto a arrendatários de fazendas da cidade sul-mato-grossense de Naviraí. Os trabalhadores rurais pleitearam, no judiciário e com assessoria de Joaquim, a permanência nas terras e denunciaram as agressões e ameaças dos proprietários. Como obtiveram ganho de causa, acabaram sofrendo a ofensiva dos latifundiários que soltaram 5 mil cabeças de gado nas plantações dos camponeses sem-terra e como estes reivindicaram indenizações na justiça, terminaram por sofrer mais violências, a ponto de verem assassinado seu advogado, Joaquim.

Joaquim das Neves Norte

(Advogado, 40 anos, pai de 4 filhos, assessor do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Naviraí-MS, colaborador da CPT-MS, assassinado a mando do fazendeiro Adolfo Sanches Neto, no dia 12 de junho de 1981).

Cumpro o apanágio das ausências
E o teu nome, das neves do norte
Chega impossível, improvável, inflamado.

Algo como um relatório inteiro de mortes,
Um esbulho, uma condenação, uma ilegalidade.

Não por existir, te condenam, mas por não desapareceres,
Por não conseguirem derrotar
Os sangues que ao teu sangue se juntam.
Pelas águas mal-dormidas que fazes correr
Rente aos leitos encurvados das noites do medo.
Pelas palavras dos que acreditam nos sonhos
Que crescem no meio das sementes.
Esses que agora se juntam para dizer:
“Se vê, se sente, Joaquim está presente!”

***

Por fim, o quarto advogado, Paulo Fonteles de Lima. Paulo ficaria conhecido como o advogado-do-mato. Ligado a grupos políticos comunistas clandestinos, conhece os porões da ditadura e é torturado junto de sua esposa. Também vem a se tornar um pesquisador sobre as Ligas Camponeses. Torna-se advogado a serviço das massas camponesas e deputado estadual pautando o problema da terra. Sempre esteve nas listas de “marcados para morrer”, no Pará, e sob os auspícios da UDR tem seu assassinato efetivado na fazendo Bamerindus (hoje ocupada pelo MST) por pistoleiros treinados pela ditadura.


Paulo Fontelles de Lima

(Advogado assassinado por pistoleiros por seu apoio à luta dos pobres do campo no sul do Pará, no dia 11 de junho de 1987, em Belém do Pará).

Brancas de cal as linhas de teu nome
Nas distâncias plantadas além das lavouras.
O homem retornando da colheita
C’o sol encalhado na algibeira
Soube a notícia pelo sino
Que o silêncio fez soar sobre o vermelho.

Nas casas nasceram relevos de tumulto
- algo como gravuras de relâmpagos
Rebentando através das roseiras.

A vila pôs-se em peregrinação
Até o cerne do silêncio.
Vestiram teu corpo de barro, por adoração.
Um buquê de sabiás atraíram como manto teu
- cambraia cinza te abrindo em filigranas de prata.

Criaram uma música sem aflição
Para circular teu exílio de ternuras.
As senhoras do povo cantaram gravemente
Para alcançar o vácuo das alturas, em vigília.
Houve um juízo e um delírio, paralelos,
Levando teu corpo além
No itinerário pendente do fogo...

A atuação junto às massas espoliadas do campo, a aproximação às bases cristãs, a sensibilidade social e o tino político, além de muita coragem e técnica jurídica invejável; tudo isto marca a vida e a morte desses advogados que ainda hoje são um eloqüente testemunho da resistência jurídica. A comunidade, a organização política e o flanco jurídico se unem e dão uma lição histórica sobre o que devemos fazer. A memória de Oziel se congrega à de Eugênio, Agenor, Joaquim e Paulo e, dessa forma, seguimos adiante em nossa batalha.

Conferir na rede:

*sobre Eugênio Lira:

- Eugênio Lyra, por sua mãe Dona Maria Lyra;

*sobre Agenor Martins de Carvalho:


*sobre Joaquim das Neves Norte


*sobre Paulo Fonteles de Lima:

- Violência e impunidade, por José Fernandes.

domingo, 30 de janeiro de 2011

Amílcar Cabral, as formas da resistência e o suicídio de classe

Muito está por ser lembrado e apropriado, para uma nova práxis, do que vem da continental luta de libertação dos africanos no segundo meado do século XX. Inclusive ao nível teórico. Ouvimos falar dos argelinos e dos sul-africanos: dentre os primeiros, Fanon (Frantz Fanon) e Memi (Albert Memmi), difundidos pela força do pensamento sartriano; quanto aos segundos, Bico (Steve Biko) e Mandela (Nelson Mandela), pela potencialidade da comunicação anglo-saxã. No entanto, o colonialismo português - para além de o francês e o inglês - também fez germinar, em suas colônias africanas (hoje, 5 países: Angola, Moçambique, Guiné-Bissau, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe), grandes líderes e referências para as recentes discussões descolonizadoras do poder e do saber.

Há quase quarenta anos, morria assassinado Amílicar Cabral, expoente da luta de libertação nacional em Guiné-Bissau e Cabo Verde. O dia 20 de janeiro é feriado nacional nestes dois países e muito pouco se fala disto e de tal personagem histórica (ver, como exceção que confirma a regra, a notícia Clone de Amílcar Cabral na memória, 38 anos depois).




Das festas co-memorativas de sua morte, surge um importante dever a todos nós: o resgate da ação-pensamento de um importante combatente contra o imperialismo, em prol da libertação nacional africana e do socialismo. Tendo se formado como engenheiro agrônomo na metrópole lusitana, voltou a sua terra natal para trabalhar na assessoria das atividades do campo e acabou fazendo parte da equipe que recenseou a região rural da Guiné-Bissau, o que lhe daria instrumentais fortíssimos para desenvolver sua luta política que já despontara desde os estudos superiores.

Da atividade técnica, passou à organização política, fundando o Partido Africano para Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC), engrossando o caldo de organizações a favor da libertação nacional das colônias africanas, e em especial das portuguesas. Apesar de divergências teóricas e prática, a força intelectual e política de Fanon e Cabral são marcos essenciais para a compreensão desse período histórico, bem como testemunhos ativos da exigência revolucionária na periferia do mundo. Assim como Fanon, Cabral morre antes de ver a independência total de seu país reconhecida, mas, como aquele, também participaria dos movimentos insurgentes desde a década de 1950.

Junto ao Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), à Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO) e ao Movimento de Libertação de São Tomé e Príncipe (MLSTP), o PAIGC é o exemplo histórico que nos arrasta à discussão da organização política; dentro dela, à análise conjuntural de uma determinada formação social. Dentre os principais líderes destas organizações revolucionárias e libertadoras - tais como Agostinho Neto (MPLA), Eduardo Mondlane ou Marcelino dos Santos (FRELIMO), Pinto da Costa (MLSTP) - Amílcar Cabral (PAIGC) certamente é um dos que nos legou um conjunto dos melhores, com reflexões dotadas de radicalidade e argúcia na compreensão da realidade, bem como de capacidade de sistematização.

Dois focos de suas análises merecem nossa atenção. De um lado, a insistente aposta nas formas de resistência; de outro, a interpretação de sua realidade, que o leva a sedimentar a concepção de "suicídio de classe".

Quanto às formas de resistência, há um seu depoimento histórico bastante interessante, gravado por ocasião do Seminário de Quadros, do PAIGC, de 1969. Publicado com o título "Análise de alguns tipos de resistência", concentra-se na depuração dos modos de resistir a partir de suas qualificações como "política", "econômica", "cultural" e "armada". Partindo do pressuposto de que toda dominação gera resistência, propõe que antes de mais vem a resistência política. Esta é que dá o tom da organização popular contra as formas do colonialismo, ensejada pelo desenvolvimento da consciência. A partir dela, reflete sobre as demais formas, com especial relevo para a resistência cultural. Poeta que fora, Cabral foi considerado como o "pai da nacionalidade" em Cabo Verde e seus versos bem o demonstram (lembrando que nasceu ele em Guiné - terra da mãe - e aos oitos anos foi viver em Cabo Verde - solo do pai):

Ilha

Tu vives — mãe adormecida —

nua e esquecida,

seca,

fustigada pelos ventos,

ao som de músicas sem música

das águas que nos prendem…

Ilha:

teus montes e teus vales

não sentiram passar os tempos

e ficaram no mundo dos teus sonhos

os sonhos dos teus filhos

a clamar aos ventos que passam,

e às aves que voam, livres,

as tuas ânsias!

Ilha:

colina sem fim de terra vermelha

terra dura

rochas escarpadas tapando os horizontes,

mas aos quatro ventos prendendo as nossas ânsias!

Como é sabido, Paulo Freire viria a desenvolver sua pedagogia em vários países africanos pós-libertação nacional, como a Tanzânia e São Tomé e Príncipe, mas também Guiné-Bissau e Cabo Verde. Apesar de não terem trabalhado juntos, devido à prematura morte de Cabral, apresentam afinidade teórica sensível. Se Paulo Freire propõe uma dialética de denúncia-anúncio para uma sociedade nova (denunciar a opressão e anunciar a liberdade), Amílcar Cabral afirma que a resistência é "destruir alguma coisa, para construir outra coisa". Na singeleza de suas palavras, o potencial descolonial de seu pensar. E, acima de tudo, a importância da resistência para a mobilização das classes populares.

A resistência, porém, é exercida concretamente - e não na abstração das teorias. Em seu texto clássico "A arma da teoria: fundamentos e objetivos da libertação nacional em relação com a estrutura social" (na verdade, um discurso realizado em Havana, por ocasião da 1ª Conferência de Solidariedade dos Povos da África, da Ásia e da América Latina, em 1966) - há uma versão virtual do texto dentro da coletânea "Amílcar Cabral: livro", com o título "Fundamentos e objetivos" -, Cabral consigna a necessidade da luta armada, em seu contexto (um apelo a uma "violência libertadora" que faria qualquer benjaminiano simpatizar-se com ele) e faz uma avaliação da situação de classes dentro do colonialismo, cuja marca é a dominação direta pelo imperialismo, distingundo-se, portanto, do neocolonialismo, no qual haveria dominação imperialista indireta. Assim sendo, o líder do PAIGC enfatiza a centralidade das forças produtivas livres, assumindo o critério do "nível das forças produtivas" como o motor da história (já que as classes sociais não eram universais, pois não teriam havido antes da apropriação privada dos meios de produção nem subsistiriam às fases superiores das sociedades socialistas nascentes), e chega a desenhar um esboço da situação das classes na África, notadamente a lusitana.

É aí que aterrissa a questão do "suicídio de classe", que viria a ser incorporado pelo pensamento freiriano. Lutar contra o imperialismo e a favor da libertação nacional exigia, segundo ele, a organização política, que se apresentava como sendo uma vanguarda revolucionária capaz de praticar a conscientização com as massas populares. Isto até o ponto de se formar uma vanguarda popular, formada e encabeçada pela classe trabalhadora do campo e cidade. Mas este esquema ideal - que, é certo, justificava as trilhas seguidas pelas revoluções africanas - não podia prescindir de uma importante mediação de transição: a pequena-burguesia.

Para Cabral, "a única camada social capaz, tanto de consciencializar em primeiro lugar a realidade da dominação imperialista, como de manipular o aparelho do Estado, herdado dessa dominação, é a pequena-burguesia nativa". Mas, atenção, não se trata de uma frase ingênua ou mesmo astuta. Trata-se, isto sim, de uma análise concreta de sua realidade. Apesar de não dotada de universalidade, ela nos traz uma importante reflexão, já que oriunda da análise objetiva dos movimentos de independência africanos. Tanto é que é ele mesmo que nos diz que há um dilema subjacente à verificação deste fenômeno, o de que há dois caminhos a serem seguidos por tal pequena burguesia: "essa alternativa - trair a revolução ou suicidar-se como classe - constitui o dilema da pequena burguesia no quadro geral da luta de libertação nacional". E é exatamente a este ponto que gostaríamos de chegar: como podem os assessores populares agir revolucionariamente? Sem dúvida nenhuma - a não ser para os que consideram anacrônica tal expressão "revolução" -, esta ação pressupõe a luta de classes e o protagonismo das classes subalternas, que na América Latina chamamos de classes populares trabalhadoras. O que os universitários das camadas médias do modo de produção capitalista periférico podem fazer nesse contexto? Parece que o suicídio de classe, apontado por Amílcar Cabral, é o nosso grande exercício histórico, confirmando a totalidade objetivo-subjetiva da pertença de classe.

Que fique a reflexão, meio incial e um tanto polêmica, como sinal da vitalidade e criatividade do pensamento de tão importante figura do socialismo do século XX, chamado Amílcar Cabral.

Ver ainda:

- textos de Amílcar Cabral (inclusive o citado "Fundamentos e objetivos"), na página da Associação Guiné-Bissau Contributo;

- página da Fundação Amílcar Cabral;

- página do CIDAC - Centro de Intervenção para o Desenvolvimento Amílcar Cabral;

- texto "Alguns princípios do partido".