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sexta-feira, 19 de junho de 2015

Carta das comunidades quilombolas de Barro Vermelho e Contente

Companheirxs, segue a Carta construída pelas Comunidades Quilombolas de Barro Vermelho e Contente, localizadas no município de Paulistana/PI em processo de resistência e conflito frente as violações de direitos humanos com a instalação da Ferrovia Transnordestina, inserida no PAC. O processo constituem violações de direitos em cadeia, desde a sonegação da consulta prévia aos povos e comunidades tradicionais prevista na convenção 169 da OIT, bem como, invasão e perturbação da posse, destruição de cercas, barreiros e roças, indenizações irrisórias dentre outras. Solicitamos axs companheirxs das assessorias jurídicas populares, organizações políticas e entidades em defesa de direitos humanos que colaborem na divulgação desta carta que denuncia esse processo de ameaça ao saber e modo de vida quilombola. Contamos com o apoio dxs companheirxs. Att, Coletivo Antônia Flor - assessoria popular das Comunidades Quilombolas de Barro Vermelho e Contente.

Rodrigo Portela

FOTO: Racismo Ambiental

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CARTA ABERTA A SOCIEDADE BRASILEIRA ANTE AS VIOLAÇÕES DOS DIREITOS DE COMUNIDADES QUILOMBOLAS PELA FERROVIA TRANSNORDESTINA

Recolhemos na mesma comunhão o trabalho, as lutas, o martírio do Povo Negro de todos os tempos e de todos os lugares. E invocamos sobre a caminhada, a presença amiga dos Santos, das Testemunhas, dos militantes, dos Artistas, e de todos os construtores anônimos da Esperança Negra”.
Pedro Casaldáliga e Pedro Tierra em Missa dos Quilombos


Nós, Comunidades Quilombolas de Contente e Barro Vermelho, grupos de assessoria jurídica popular, grupos de pesquisas, grupos de extensão, outras organizações e pessoas abaixo assinadas, vimos publicamente manifestar repúdio e indignação, bem como intensificar as denúncias referentes à situação de violação de direitos deflagrada nas comunidades quilombolas de Contente e Barro Vermelho (Paulistana - Piauí) ante a implantação da ferrovia Transnordestina.

Vivenciamos, atualmente, um momento delicado no que se refere à proteção territorial e cultural das comunidades tradicionais, indígenas e quilombolas em nosso país. O curso de um projeto caracterizado como neodesenvolvimentista tem sido levado adiante, com grave desconsideração aos direitos já garantidos destas populações.

É nesse contexto que se insere a ferrovia Nova Transnordestina, obra prevista e financiada no âmbito do PAC – Programa de Aceleração do Crescimento do governo federal em parceria com os governos estaduais (Ceará, Piauí, Pernambuco). O desrespeito aos direitos das comunidades quilombolas iniciou-se na concepção do projeto e em seu licenciamento, dado que mesmo com a constatação da presença de comunidades Quilombolas no traçado da obra, não foi elaborado pela empresa, nem exigido pelo órgão ambiental licenciador (IBAMA) o planejamento e diálogo com as comunidades atingidas sobre os impactos da ferrovia, concedendo a licença prévia nº 311 em 23/03/2009 e logo depois a licença de instalação nº 638 em 05/08/2009. Diante da dimensão dos impactos de tal obra, todas as comunidades atingidas tinham o direito à informação e no caso das comunidades quilombolas, além disso, tinham o direito a Consulta Prévia, Livre e Informada, prevista no artigo 6° da Convenção 169, que determina a consulta aos povos e comunidades tradicionais interessados, “sempre que sejam previstas medidas legislativas ou administrativas suscetíveis de afetá-las diretamente”.

A violação a tais direitos reverberou em uma sequência de outras violações já vivenciadas no cotidiano das cidades e comunidades mais próximas das obras, tais como deslocamentos forçados, indenizações com valores injustos e irrisórios, invasão e perturbação na posse e propriedade dos atingidos, perda de plantações, rachaduras nas moradias e benfeitorias, alteração e perda do patrimônio arqueológico, cultural e ambiental, destruição nos modos de criar, plantar e produzir, configurando, assim, uma violação ao direito à terra, ao trabalho e à soberania e segurança alimentar. Esse conjunto de violações caracteriza um processo de risco a existência das comunidades quilombolas.

Diante de tais fatos, as comunidades Contente e Barro Vermelho, desde o início vêm denunciando, reivindicando seus direitos, resistindo frente ao ataque ao seu modo de vida. Foram feitas denúncias à 6ª Câmara do MPF, que deram origem a inquéritos civis na Procuradoria da República dos Direitos do Cidadão e no MPF de Picos, bem como foi assinado um Termo de Compromisso entre Transnordestina Ltda e Fundação Cultural Palmares estabelecendo como critério de validação do Plano Básico Ambiental Quilombola (PBAq) – documento necessário para a concessão da licença ambiental – a sua aprovação pelas comunidades atingidas (importante ressaltar que ao longo do traçado da ferrovia foram identificadas, pela própria TLSA, 14 comunidades quilombolas), em 2012, época em que a obra parou.

Entretanto, a licença ambiental de instalação 638 foi renovada em fevereiro de 2014, quando a Transnordestina ainda não havia começado sequer o diálogo com as comunidades sobre o PBAq (a data da primeira visita de apresentação deste é de junho de 2014, na qual a comunidade rejeitou a proposta e fez exigências, conforme documento da própria TLSA). Desde então as obras retornaram em vários trechos sem aprovação do PBAq pelas comunidades, e em relação as Comunidades de Barro Vermelho e Contente a reunião de validação (chamada assim nos documentos da própria TLSA) vem sendo marcada e desmarcada desde novembro de 2014, causando instabilidade e total descrença das comunidades na efetivação das medidas mitigatórias e compensatórias – que se referem a prejuízos causados há 4 anos e que não foram reparados!

Além disso, a informação fornecida se restringe a um documento de difícil compreensão e a uma cartilha sem a prestação de assessoria adequada, além de que a reunião prevê poucos momentos de fala da própria comunidade, existindo ainda a pressão de que nessa única reunião sejam acordados todos os problemas que a construção da ferrovia e de seu funcionamento causou e causarão às comunidades, o que pode gerar acordos sem a devida avaliação por parte da comunidade, destacando-se assim algumas das inumeráveis problemáticas existentes na maneira de condução e no formato dessa reunião. Diante desses vícios, constata-se que a reunião de validação do PBAq vem sendo promovida sob o signo da pressa e da pressão, e acreditamos que o formato atualmente proposto reforça o tratamento autoritário, verticalizado, violento e desrespeitoso destinados às comunidades de Contente e Barro vermelho em seus processos de participação, autonomia, e decisões coletivas.

É importante ressaltar que em nenhum momento esta reunião pode ser confundida com a Consulta Prévia prevista na Convenção 169 da OIT. A temporalidade e o avanço das obras não permitem considerar esta consulta como “prévia” e seu objeto é extremamente mais restrito que o da verdadeira Consulta Prévia, dado que as comunidades impactadas poderiam opinar sobre todos os aspectos do empreendimento, o que atualmente é impossível diante da materialidade e avanço das obras. Tampouco podemos concordar com o formato proposto, ao desconsiderar que a consulta prévia deve ser um processo participativo, informativo, e que a informação deste processo deva ser prévia, completa, independente e livre, sendo o princípio da boa fé norteador deste processo.

Atentamos ainda à situação peculiar de violência e intimidação vivenciada pelas comunidades de Contente no dia 08 de janeiro de 2015, dois dias antes da (última) data prevista para realização desta reunião de validação do PBAq, em que, a empreiteira responsável pela construção da ferrovia colocou suas máquinas e homens dentro do território quilombola, em clara sinalização do quão as obras avançaram sem respeitar os acordos feitos, bem como dispostos a descumprir leis e violar os territórios, os direitos e o bem-estar das comunidades. Esse intuito da TLSA só não se realizou por conta da resistência da comunidade de Contente, que se colocou no canteiro de obras e não permitiu o recomeço da construção da ferrovia em seu território.

Em episódios recentes, funcionários da TLSA pressionaram as comunidades a aceitarem o início das obras, com falas grosseiras por parte do engenheiro da empresa afirmando que a obra vai acontecer queira a comunidade ou não. As comunidades sentiram-se profundamente desrespeitadas nessa reunião, pois a pressão e grosseria chegaram ao nível de não deixar as pessoas falarem. A esta atitude da empresa, as comunidades responderam em reunião seguinte com carta de reivindicações e com a explanação das violações cometidas pela empresa e dos motivos de não aceitarem a volta das obras sem o cumprimento de toda a carta entregue. Ficou acordada nova reunião (em julho), com presença do MPF, Fundação Cultural Palmares, SEPPIR e INCRA, para a TLSA apresentar planos de ações para cumprimento das exigências. Por outro lado, a reunião de validação do PBAq não tem previsão para ser realizada, ao mesmo tempo em que a TLSA afirma a não necessidade da aprovação para seguir com a obra, violando as normativas sobre licenciamento ambiental e os direitos territoriais quilombolas. Além disso, todos os dias chegam notícias do avanço dos trilhos e do funcionamento da ferrovia, tanto no sentido Piauí, como no sentido.

O momento é crucial para o paradigma com o qual obras como essa são realizadas: o prosseguimento será uma legitimação da ação sem respeito às comunidades quilombolas e comunidades camponesas, será esvaziamento de direitos, processo que enfraquece a ordem democrática de direito para todos, a contrario sensu, o apoio a resistência é contribuir para o fortalecimento de grupos oprimidos que há muito pouco foram visibilizados pela Constituição e que, ainda assim, tem seus direitos sistematicamente esvaziados. Diante deste cenário, conclamamos a sociedade brasileira a se solidarizar, denunciar a grave situação de violação de direitos vivenciada pelas populações tradicionais e quilombolas atingidas pela Transnordestina e apoiar a luta e resistência de Contente e Barro Vermelho.
Assinam,
Comunidade Quilombola Barro Vermelho
Comunidade Quilombola Contente
Associação de Assessoria Técnica Popular em Direitos Humanos – Coletivo Antônia Flor
Corpo de Assessoria Jurídica Estudantil da Uespi – Coraje
Centro de Assessoria Jurídica Popular de Teresina – Cajuína;
Grupo de Pesquisa, Ensino e Extensão Direitos Humanos e Cidadania - DiHuCI/UFPI
Núcleo de Assessoria Jurídica Universitária Comunitária Justiça e Atitude - NAJUC JA.
Comissão Pastoral da Terra – Piauí
Coordenação Estadual das Comunidades Quilombolas do Piauí – CEQOC

quinta-feira, 19 de março de 2015

Insurgência quilombola e assessoria jurídica popular

No dia dos anos da Insurreição de São José do Queimado, no Espírito Santo, de 1849, divulgamos este texto de Carlos Eduardo Lemos Chaves, advogado da AATR-BA e da RENAP. Ele conclui que o trabalho do advogado no enfrentamento de instituições estatais autoritárias precisa orientar-se pelo apoio político às comunidades quilombolas. Aborda o caso do Quilombo Rio dos Macacos, em Simões Filho, no Estado da Bahia. Trata-se de texto da coluna AJP e Universidade, que reúne os resultados da turma de “Teorias Críticas do Direito e Assessoria Jurídica Popular”, da Especialização em Direitos Sociais do Campo da UFG, na Cidade de Goiás.

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Da resistência à força: a insurgência no conflito entre a Marinha do Brasil e o Quilombo do Rio dos Macacos

Carlos Eduardo Lemos Chaves
Advogado popular na Bahia

estudante da Turma de Especialização em Direitos Sociais do Campo - Residência Agrária (UFG)

“Da resistência à força” é o tema central do meu projeto de pesquisa apresentado no Programa de Pós-Graduação em Direitos Sociais do Campo – Residência Agrária, da Universidade Federal de Goiás. Merece destaque aqui por trazer um duplo sentido: seja o da resistência à força bruta empregada pela Marinha de Guerra do Brasil na gradativa tentativa de total desterritorialização da Comunidade Quilombola do Rio dos Macacos; seja o da trajetória da resistência, pura e simples,com o acúmulo de visibilidade e força política que a comunidade vem adquirindo ao longo dos anos de conflito.

Hoje pode-se considerar, inclusive, as vitórias alcançadas nesta trajetória de luta, se levarmos em conta os primeiros contatos dos quilombolas com as entidades de assessoria popular. Isto ocorreu em meados de 2011, quando era iminente a expulsão do seu território tradicional por decisão do juiz Evandro Reimão dos Reis, da 10ª Vara da Justiça Federal da Bahia.

A comunidade remanescente de quilombo já vinha resistindo às investidas das forças estatais desde meados dos anos 1950. Neste período, fazendas de antigas usinas de açúcar, que outrora se valiam da mão-de-obra escrava, em tempos coloniais, começaram a ser desapropriadas pela União e incorporadas ao patrimônio da Marinha. A Fazenda Macacos recebeu as paredes da barragem construída no rio que dá nome à Comunidade, quando doada pela Prefeitura de Salvador à Marinha pela Lei Municipal n. 492 de 5 de julho de 1954. Neste período ainda não havia sido criado o município de Simões Filho, que hoje abriga o quilombo.

Tal doação desconsiderou à época o registro da existência da comunidade naquele território, contido na própria escritura que a consigna. Teve início um processo violento de desterritorialização e exploração. No princípio fora com a construção da barragem, nos anos 1970, com o estabelecimento da Vila Naval construída para moradia de oficiais. Este processo culminou na expulsão de diversas famílias, na destruição de áreas de roças e terreiros de candomblé.

Estas práticas de desagregação socioeconômica e cultural perpetuam-se até hoje. Com tentativas de destruição de casas, proibição de construções, reformas e do cultivo de roças.Assim, impede-se o acesso a direitos básicos como água, saneamento, saúde, luz e educação. Esta realidade remete ao contexto histórico de “cercamento dos campos” descrito, por exemplo,pelos marxistas. Na medida em que aparentam um retorno às formas primevas de acumulação do capital. As estratégias de privação da comunidade dos meios de sobrevivência no território tradicional, com o argumento de supostos danos ambientais causados pelos quilombolas em áreas de uso para exercícios táticos pelos oficiais, ocorrem num contexto tido como mais amplo - de defesa da soberania nacional -, que culminaria inclusive com a proteção dos campos de petróleo do pré-sal contra ameaças estrangeiras (!).

Esta semelhança faz-se atual no momento em que forças militares buscam destruir a existência autônoma do quilombo. Trata-se de uma clara demonstração do cunho militarista que o atual governo tem fomentado no enfrentamento de conflitos socioambientais e manifestações políticas no país. Preferem atirar os quilombolas à “vala comum” das massas exploradas pelo capital, desprovidos do território que lhes garante seus caracteres tradicionais.

Fonte: Ascom, MPF-PR
As recentes tentativas de intimidação das lideranças nos alerta ainda para um poder remanescente das forças armadas no país.Com instauração de inquéritos militares e prisões violentas e arbitrárias, com base no Código Penal Militar gerado no período ditatorial. É necessário discutir a legitimidade destas normas e conceitos face à sua incoerência perante a Constituição promulgada no contexto de redemocratização do estado brasileiro. A exemplo do que fizeram os juristas italianos precursores das teorias do direito alternativo nos anos 1960.

O Poder Judiciário vem, até então, incentivando essas práticas. Opta por uma condução questionável dos processos judiciais movidos pela Marinha contra os quilombolas. Com desrespeito aos princípios básicos do processo civil (acesso à justiça, ampla defesa) e uma interpretação restritiva e ideologicamente conservadora do direito. No sentido oposto da concepção marxista do direito adotada pela assessoria jurídica popular. Esta contraria as teorias clássicas, afasta-se da perspectiva lógico-racional que serve bem ao positivismo, para situá-lo enquanto fenômeno intrínseco às relações sociais.

É necessário despontar a crítica ao direito posto, uma vez em que se mostra permeado por uma ideologia dominante. Somente uma parcela privilegiada da população é capacitada para fazer a tradução à sociedade, a partir dos seus interesses próprios. Enquanto que para a camada não beneficiada economicamente o direito aparece na sua face excludente e repressora. De forma que é a força da insurgência desta comunidade negra rural que tem garantido a permanência na terra. Contra a opressão de viés racista das Forças Armadas e do Judiciário, fundada em resquícios coloniais. Como as sentenças proferidas desde agosto de 2012, que ferem o Direito Constitucional, determinando a expulsão dos quilombolas do seu território tradicional.

Isso leva a refletir sobre a atuação da assessoria popular, sobretudo no âmbito judicial.Se a luta pela permanência e titulação do território tem contribuído na esfera da formação e da articulação política. Mesmo que, até então, não tenha havido êxito no campo judicial. Com as estratégias do positivismo de combate (para fazer valer os direitos reconhecidos aos quilombolas) ou do uso alternativo do direito (sobrepondo os princípios inerentes à dignidade da pessoa humana aos argumentos que prezam pela soberania nacional).


Portanto, a compreensão da comunidade sobre os limites do direito posto tem permitido aos quilombolas traçar suas próprias estratégias de luta pela permanência no território.A arena da luta política se sobrepôs à disputa no campo do Judiciário.As ações concretas tem mais força que a atuação judicial, embora esta ainda continue. Assim, no enfrentamento às violações e negativa de direitos, as estratégias de insurgência extraídas da prática da assessoria/advocacia popular têm conseguido somar forças com o poder de resistência da comunidade.Para que a cada ato de repressão das forças institucionais a luta dos quilombolas avance na conquista das suas pautas, até o definitivo reconhecimento do seu direito ao território tradicional.

Fonte: Alan Tygel, Vírus Planetário

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quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

O quilombo Paiol de Telha e a emancipação do Paraná

Ricardo Prestes Pazello
professor de Antropologia Jurídica do curso de direito da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e secretário-geral do Instituto de Pesquisa, Direitos e Movimentos Sociais (IPDMS)

O artigo abaixo já virou história: neste 19 de dezembro, dia da emancipação política do Paraná, realizou-se o final do julgamento da argüição de inconstitucionalidade do decreto federal 4.887/2003 sobre demarcação de terras quilombolas, no âmbito da ação que envolve o processo administrativo em prol do quilombo Invernada Paiol de Telha (Guarapuava, Paraná). Por 12 a 3, decidiram os desembargadores que se trata de ato normativo constitucional, vitória para as 4 mil comunidades existentes no Brasil hoje, mesmo diante das dificuldades que o próprio decreto impõe para os processos de titulação e que as quase inexistentes políticas em defesa dos territórios das comunidades tradicionais indicam.


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A data de 19 de dezembro marca a solenidade que trouxe à 5ª Comarca de São Paulo sua emancipação. O Paraná, em cerimônia solene, empossava Zacarias de Goes e Vasconcelos, seu primeiro presidente provincial (ao tempo do império, os estados se chamavam províncias e os governadores, presidentes) e arrefecia os ânimos das elites locais que, desde pelo menos 1811, aspiravam ter seu próprio governo regional.

Por coincidência histórica, ficou destinada para este dia importante tomada de decisão, por parte do aparelho judicial brasileiro, acerca da continuidade da luta quilombola não só no estado do Paraná, mas em todo o país. Se a 19 de dezembro os paranaenses relembram a cerimônia que executou a lei imperial 704 a qual criava a nova província e a isto chamam de emancipação do Paraná; agora, à mesma data só que 160 depois, os paranaenses guardam expectativa sobre qual o futuro anunciado pelo judiciário (e, portanto, pelo estado nacional) para as comunidades remanescente de quilombos, em sede de argüição de inconstitucionalidade quanto ao decreto 4.887/2003 que regulamenta artigo da Constituição de 1988 referente à demarcação de terras quilombolas.

Os anos que separam 1853 de 2013 são uma boa régua para medir a distância entre a emancipação formal e a material. A historiografia mais tradicional, no Paraná, não se contenta em exaltar a importância da emancipação formal e fundamenta-a em episódios históricos que assinalam o quão engajada esteve a elite local nesta empreita: o movimento emancipacionista de 1811, capitaneado por Correia de Sá; a conjura separatista de 1821, abraçada por Bento Viana; a cooptação legalista (antifarroupilha e antiliberal) de 1842; a propaganda pró-emancipação, de Paula Gomes e Correia Júnior; os 10 anos de debates parlamentares, em que se destacaram Cruz Machado e Carneiro de Leão; enfim, todos os meios que estiveram à disposição da ordeira classe política paranaense durante o império.

Pouco se fala, entretanto, que enquanto as elites ervateiras e pecuaristas de então buscavam se separar de São Paulo, o Paraná se constituía em um privilegiado palco de resistência, em que indígenas, negros e caboclos assumiam todo o protagonismo. E é exatamente esta resistência que fica resgatada no cerne do debate judicial do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4).

A argüição de inconstitucionalidade foi suscitada por desembargadores da 3ª turma do TRF4 no âmbito da apreciação de procedimento administrativo do INCRA que visava a demarcar o território quilombola Invernada Paiol de Telha, em Guarapuava. Assim, ao analisar o caso concreto, os julgadores pretenderam atacar o próprio ato normativo que torna possível a demarcação, o decreto 4.887/2003.

Ocorre, contudo, que ao atacarem o decreto acabam por atacar a própria história. Se algum tipo de emancipação formal houve em 1853, agora corremos o risco de retornar à estaca zero em termos de emancipação material. Ainda que o decreto de 2003 não seja a regulamentação ideal reivindicada pelo movimento quilombola, justamente por suas intrincadas exigências procedimentais muito próprias de um sistema jurídico que fetichiza a pretensa segurança jurídica, ele se apresenta como um avanço jurídico em relação a) à total invisibilidade em que foram colocadas as comunidades tradicionais negras no Brasil até 1988; b) à inércia normativa que se assumiu a partir da promulgação da Constituição e à ineficácia de se destinar a competência para realizar demarcação de terras para órgão sem estrutura técnica e financeira (caso da lei 7.668, que criou a Fundação Cultural Palmares); e c) à despropositada regulamentação promovida em 2001, por meio do decreto 3.912, que exigia que os territórios quilombolas, para serem reconhecidos, estivessem ocupados por pelo menos 100 anos, desde 1888 até 1988 (da abolição da escravatura até a Constituição da nova república), o que explicita o abismal déficit que carregou consigo referido decreto, quanto a fundamentos históricos, sociais, econômicos e culturais.

É de se salientar que o risco frente ao qual os quilombolas estão expostos é o risco de adiarem uma vez mais as condições de sua emancipação material. A comunidade quilombola do Paiol de Telha, mesmo existindo desde 1860, decorrência de herança recebida por 11 negros escravizados na região de Guarapuava, tem o condão de servir de paradigma em termos de reconhecimento institucional de sua condição. A constituição dos quilombos não pode continuar dando margem a interpretações que considerem estes grupos como “coisa de negros fugidos”. Este é o primeiro passo que devemos dar no sentido de denunciar e superar as estruturas racistas nas quais estamos inseridos. No entanto, outros passos precisam igualmente ser dados e, dentre eles, a luta pelo reconhecimento institucional, ainda que mesmo esta luta não esteja a salvo de vários limites e contradições.

Os quilombolas do Paiol de Telha possuem a marca da resistência e da luta pelos “modos de criar, fazer e viver” que lhes são próprios. Carregam consigo uma história esquecida, a partir da qual podemos reviver os indígenas guarapuavanos resistindo às bandeiras portuguesas e à caça a eles empreendida após a chegada família real ao Brasil, em 1808; a Junta da Real Expedição e Conquista de Guarapuava, que serviu de chamariz para que caboclos ocupassem a região; os mais de 40% da população do Paraná escravizada em 1853 e sua resistência comunitária; a substituição da mão-de-obra, conhecida como política “linista” (de Lamenha Lins), que passou a promover o suposto branqueamento populacional, com a inserção do imigrante europeu no interior paranaense, em detrimento da população negra aqui já estabelecida.

A grande questão em jogo é saber até que ponto o estado brasileiro, via seus poderes instituídos, compactuará e promoverá o etnocídio e o genocídio. No caso, das comunidades quilombolas. Na medida em que se trata de considerar o território das comunidades negras como terras tradicionalmente ocupadas e não como a forma jurídica “propriedade”; na medida em que “democracia” e “segurança jurídica” não são expressões que se prestem à desfaçatez da lógica mercantil e dos interesses daqueles que sempre estiveram despreocupados com as maiorias a não ser quando elas se rebelam; na medida em que os 160 anos que separam a emancipação formal do Paraná, em 1853, da ainda distante emancipação material de nosso povo, neste 2013, são a mais eloqüente régua que computa toda a desigualdade que vige entre nós; considerando todas estas “medidas” é que nossos olhos se voltarão ao TRF4 e assistiremos, com expectativa, à sua decisão, estando certos de que só representarão os anseios de todo o povo brasileiro, e não só o paranaense, se agirem de modo a reconhecerem a constitucionalidade do decreto 4.887, fazendo deste 19 de dezembro aí sim uma data que tenha alguma coisa a ver com emancipação.

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Texto publicado nos seguintes veículos de comunicação:

- Página da Terra de Direitos;
- Página do CEDEFES;
- Jornal Brasil de Fato.

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quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

Os quilombos, o judiciário e a política

Fernando Prioste
coordenador da Terra de Direitos e advogado popular no caso Paiol de Telha


O debate jurídico sobre a titulação dos territórios quilombolas está polarizado entre os que defendem a aplicação imediata da Constituição e os que exigem a aprovação de mais uma lei para que o art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) da Constituição Federal possa ser aplicado. Mas, sabe-se que o debate jurídico não se limita a questões técnicas de possibilidade de aplicação das leis, pois o princípio da legalidade, tão valorizado pelo positivismo como pressuposto lógico da dita “segurança jurídica”, não está alheio à realidade que o circunda. As decisões do Poder Judiciário, por mais que neguem os tribunais, não são frutos exclusivos da técnica profissional neutra dos magistrados. 

Ao levar em conta os aspectos da judicialização da política e da politização da justiça, o debate sobre os direitos constitucionais das comunidades quilombolas desvela os valores políticos e ideológicos, entre outros, que influenciam os posicionamentos jurídicos no tema. O caso da titulação do território quilombola Paiol de Telha, que envolve o julgamento da constitucionalidade do Decreto Federal 4887/03 pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4), não foge à regra. Os oito votos proferidos na sessão de julgamento do órgão espacial do TRF4, em 28 de novembro, escancaram as divergências e abrem caminhos para entender as tensões que determinarão o resultado final do julgamento. Seis foram favoráveis e dois contrários à constitucionalidade do Decreto. 

Aqueles que defendem a aplicação imediata da Constituição e a constitucionalidade do Decreto Federal 4887/03, em regra, não escondem os fundamentos políticos e ideológicos que influenciam o manejar da técnica jurídica. De modo geral reconhecem o Brasil como um país com forte opressão racial sobre negros e negras, destacam a dívida histórica do Estado e da sociedade para com as comunidades quilombolas e, entre outros fundamentos, valorizam o papel que o povo quilombola tem, hoje, nos campos econômico, cultural e político de nossa sociedade. Essas premissas político-ideológicas orientam a aplicação técnica do direito que eleva o art. 68 do ADCT à categoria de norma de direitos humanos, reconhecendo ainda que a norma constitucional tem aplicação concatenada com a realidade a que veio regular. Nesse sentido, entendem que a Constituição Federal, em sua integralidade, assegurou, às comunidades quilombolas, e à sociedade brasileira, direitos que viabilizem a reprodução física, social, econômica e cultural dessas comunidades.

Por outro lado, aqueles que defendem a inconstitucionalidade do Decreto Federal 4887/03 não expõem de forma explícita os fundamentos políticos e ideológicos que sustentam seus posicionamentos jurídicos. Alegam, em verdade, que não se alinham a uma ou outra posição política, pois a decisão é estritamente técnica. Nesse contexto, argumentam que o texto constitucional do art. 68 do ADCT não é suficientemente nítido para ser aplicado, e que o respeito ao estado democrático de direito impõe que a titulação dos territórios quilombolas esteja necessariamente amparada em lei. Ou seja, não basta o comando constitucional. Sustentam que as alterações havidas entre os Decretos Federais 3912/2001 e 4887/03 demonstram a situação de insegurança jurídica que só poderia ser superada com a aprovação de uma lei que regulasse o art. 68 do ADCT.  Nesse sentido, consignou o juiz federal Nicolau Konkel Jr, citado pela Desembargadora Marga Inge, relatora do caso do Paiol de Telha no TRF4:

Sem se alinhar a uma opção política ou outra, resta evidente que cada governo emprestou ao art. 68 do ADCT o significado que corresponde à linha ideológica de cada partido. Aliás, é natural que assim o seja, sendo inconcebível que as administrações sejam rebeldes com seus compromissos históricos. No entanto, se é verdade que os fatos sejam assim, não é menos verdade que o Direito tenha que ser refém dos fatos. Afinal, o Direito não é a ciência do ser, mas do dever ser, sendo seu papel conter, quando necessário, a rebelião dos fatos

O quadro que se apresenta é claro: existe uma necessidade premente de discussão sobre os limites e o alcance do art. 68 do ADCT. No entanto, essa discussão deve ocorrer no foro adequado que é o Congresso Nacional. Se é inegável que cabe ao Poder Judiciário Sindicar eventual regulamentação do tema, também não se pode excluir a necessidade de prévio debate político, a partir de um texto legal que reflita a vontade do povo e não a da administração que expede o decreto.” (sem grifos no original)
Como se vê no trecho acima transcrito, as decisões judiciais estão impregnadas de valorações políticas que orientam o pensar e agir jurídico. Afirmar que a vontade popular não está nítida na Constituição Federal, que ainda é necessário fazer um debate político sobre o tema para se afirmar o direito já inscrito na Carta Magna e que o direito deve conter a rebelião dos fatos (no caso, a titulação dos territórios quilombolas), não é um raciocínio lógico matemático que se extrai de uma suposta interpretação neutra da lei.

A posição jurídica daqueles que insistem em negar a constitucionalidade do Decreto Federal 4887/03 se escora em posição política que, via de regra, está associada à negação das políticas raciais afirmativas - por exemplo, o sistema de cotas - e a um suposto agravamento do conflito agrário decorrente da aplicação da política pública de titulação e reconhecimento de direitos às comunidades quilombolas. Também está associada a uma supervalorização do direito de propriedade em detrimento dos direitos humanos econômicos, sociais, culturais e ambientais daqueles que não são proprietários.

O nazismo e os quilombolas 

O processo de titulação do território quilombola Paiol de Telha é questionado pela Cooperativa Agrária Agroindustrial Entre Rios, produtora de commodities. Durante o julgamento do caso do Paiol de Telha, em novembro, o advogado Eduardo Bastos de Barros, que representante de alguns integrantes da Cooperativa Agrária, comparou a origem dos alemães que hoje ocupam o território com a origem dos quilombolas que foram expulsos de suas terras. Disse o advogado que os alemães vieram para o Brasil após o fim da Segunda Guerra Mundial, uma vez que o governo da Suíça comprou terras na região de Guarapuava e doou aos alemães derrotados no conflito. Ainda segundo o representante da cooperativa, os alemães teriam perdido todos seus bens na terra de origem por terem integrado o exército do 3º Reich durante a guerra e, assim, na visão do advogado, teriam uma origem humilde como a dos quilombolas do Paiol de Telha. A terra recebida pelos alemães do governo suíço não é o território quilombola do Paiol de Telha.  

Contudo, a afirmação do advogado apenas corrobora o abismo de desigualdade entre os alemães acolhidos pelo Estado brasileiro e a situação de total invisibilidade da comunidade quilombola frente ao Estado.  No embate entre a versão dos quilombolas - que afirmam terem sido expulsos à bala de suas terras - e dos alemães - que dizem ter comprado a terra dos quilombolas - fica o desafio de tentar compreender como se deu, e como se dá, a relação de disputas por terras entre descendentes de negros que foram escravizados e ex-militares alemães do regime nazista de Hitler.

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- Saiba mais sobre o caso clicando aqui.
Processo eletrônico no TRF4.

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

Antropologia jurídica: vídeos sobre comunidades tradicionais


O recente ressurgimento da antropologia jurídica no Brasil foi criado muito mais pela luta de movimentos sociais e povos e comunidades tradicionais do que por atos normativos extravagantes. Ainda que dispositivos constitucionais, desde 1988, garantam (e, de alguma maneira, inventem) a existência de comunidades com modos de vida diferenciados, como as indígenas e as quilombolas, ou que leis federais, estaduais, decretos, portarias e instruções normativas rejam a proteção de outras comunidades tradicionais, é a própria luta destas por reconhecimento, visibilidade, resistência e contestação que vem assegurando seu retorno como preocupação do direito nacional. Mudanças no ensino jurídico e na realidade social interpelam para o recomeço da relação entre antropologia e direito, no Brasil contemporâneo. Um dos capítulos privilegiados para se estudar tal relação é o do "direito das comunidades tradicionais", que funde saberes multi, inter e transdisciplinares como os conhecimentos tradicionais, a sociologia e a antropologia ou os direitos indígena, étnico, agrário e ambiental. Eis o motivo pelo qual divulgamos alguns vídeos que podem servir como material didático para se estudar referido "direito das comunidades tradicionais", a partir de 3 exemplos havidos no estado do Paraná: os indígenas kaingans, os faxinalenses e os quilombolas.

I. 
Texto e edição de Carlos Coutinho, imagens de Carlos Cardoso, narração de Marcos Hummel, produção de Valêncio Xavier, realização de “Globo Repórter” (1980).






II. 
Roteiro de Roberto M. de Souza, Mayra L. Bertussi, Esmael Telles Junior, José C. Vandresen e José C. Telles, narração de Flavia Rocha, edição de Ewerton Rudnick, direção e imagens de Anderson Leandro, produção de QuemTV, realização da Rede Faxinal e IEEP (2005).





III. 
Reportagem e edição de Henrique Oliveira, imagens de Harrison Esmaniotto, realização do CAOP-Direitos Constitucionais-MP/PR (2010).


quarta-feira, 11 de julho de 2012

Uma crítica ao ensino jurídico e os direitos dos quilombolas


Uma crítica ao ensino jurídico: como a pluralidade metodológica ajuda a compreender a Adin nº 3.239-9, no caso dos direitos quilombolas.

Por Gabriele Batista Vieira*, enviado para o e-mail assessoriajuridicapopular@gmail.com

Existem limites no ensino jurídico tradicional, na perspectiva kelseniana da teoria pura do direito, que serão aqui explorados sob o olhar do caso do julgamento da Ação direta de inconstitucionalidade (Adin) do decreto nº 4.887 de 2003 que regulamenta os territórios quilombolas e dá outras providências.
Depois de ler atentamente a Adin, a manifestação do Advogado-Geral da União e a manifestação do procurador-Geral da República fica muito evidente que, há limites de compreensão sobre os direitos quilombolas reivindicados que recaem no método como os juristas lidam para decidir questões como, por exemplo, a constitucionalidade de tal decreto.


Kelsen é responsável pela teoria a qual se funda o direito positivo, que de forma brilhante justifica filosoficamente o direito enquanto ciência mediante o paradigma da teoria da norma fundamental, no entanto, muitas respostas do mundo da vida, que chegam até o poder judiciário não são constituídas dentro desta ciência fundada por Kelsen. Isto nos remete a afirmar que existem incompletudes semânticas na norma jurídica, e por este motivo, o ensino jurídico deve levar em consideração uma pluralidade metodológica como alternativa de compreensão sistêmica do direito.

Resumidamente, a Adin, destaca quatro aspectos, para fundamentar o seu pedido de inconstitucionalidade do decreto n º 4.887/2003. O primeiro deles é referente ao uso da via regulamentar, argumenta-se que os direitos que o decreto prevê não deveria ser mediante decreto, e sim, mediante lei. O segundo, é sobre o ato de desapropriações que o decreto assegura, argumenta-se que não deve haver desapropriação em áreas que a própria Constituição declara como definitivas dos remanescentes de quilombos, numa perspectiva de direito de propriedade. O terceiro, é sobre o conceito do termo remanescentes de quilombos, argumenta-se que o decreto deve ater-se aos remanescentes e não aos descendentes de quilombos, e ainda restringe o conceito de quilombos e dos seus territórios a uma visão patrimonialista de propriedade. E por fim, traz a tona o conceito de território quilombola, descaracterizando o que o decreto prevê, numa abordagem multireferencial, de reprodução física, social, econômica e cultural, argumenta-se que o território quilombola é somente aquele durante a fase imperial da história do Brasil em que os quilombos se formaram, numa visão estática.

Todos os quatro aspectos acima mencionados podem ser confrontados juridicamente se seguirmos a cartilha da teoria pura do direito, ensinada na academia, o problema reside em saber se, a resposta do julgamento da Adin será satisfatória para aqueles que estão reivindicando os direitos dos quilombolas. 

O direito também é criado a partir das tensões sociais provocadas pelos movimentos sociais, como os quilombolas, e não somente pela ciência do direito da teoria pura aprendida na academia. Neste sentido, os sistemas, sejam eles: jurídico, econômico, ou político, tem autonomias funcionais e quando surge, no sistema jurídico, em especial, uma Adin requerendo a ilegalidade de um decreto, não significa que os sistemas estão funcionando mal, mas sim que estão em desequilíbrio com as demandas sociais. Para melhor compreender esta questão pela abordagem sistêmica seria necessário partir da premissa de que cada sistema opera com critérios diferentes de outros sistemas.

Os que reivindicam os direitos dos quilombolas se organizam em torno de carências coletivas de duas espécies: o não reconhecimento da cidadania, e/ou contra a negação histórica de direitos. Neste sentido, o direito enquanto ciência jurídica ainda não consegue alcançar metodologicamente objetos sociais como estes.

Observe-se que a todo tempo os juristas fecham os olhos para a dinâmica social, para a elasticidade do conceito de território, para a hibridez do conceito de identidade, para a complexidade histórica do conceito de quilombos etc. pois estas respostas certamente não estão na ciência jurídica, porque o direito é limitado e limitador, daí advêm a urgência que o ensino jurídico deve ter em dialogar com outras metodologias das ciências sociais. É tempo de nos pormos sob um novo sol, e assim deixarmos ser orientados por novas bússolas metodológicas do direito.

* Gabriele Batista Vieira é Bacharela em direito pela UCSal, mestranda em Ciências Humanas e Sociais pela UFABC, vice-presidente do Instituto Pedra de Raio – Justiça Cidadã.

segunda-feira, 16 de maio de 2011

Os quilombolas e o estado: vídeo-reportagem sobre o quilombo de São João

Como mais um trabalho conseqüência da atuação do Ministério Público paranaense junto a comunidades tradicionais, e que já foi por mim aqui lembrada na postagem Os quilombolas e o estado: uso alternativo do Ministério Público, no Paraná, publico a reportagem de Henrique Oliveira, com imagens de Harrison Esmaniotto, sobre a Comunidade São João, comunidade de quilombolas do Paraná.


Foto de Maria José da Mota Santos trabalhando, especialmente homenageada na reportagem (arquivo do MP-PR)


quarta-feira, 4 de maio de 2011

Os quilombolas e o estado: uso alternativo do Ministério Público, no Paraná

Após ter tido a oportunidade de conhecer a atuação do Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Direitos Constitucionais (CAOP de Direitos Constitucionais) do Ministério Público do Estado do Paraná, trago para o blogue o texto da jornalista popular Ednubia Ghisi, que trabalha junto a este CAOP bem como ao CEFURIA, sobre a realidade dos quilombolas paranaenses da região mais pobre do estado, o Vale da Ribeira, e sua luta no plano institucional, o que demanda nossa reflexão e sensibilidade sobre os vários níveis de reivindicação/contestação dos movimentos populares.


Reunião do CAOP de Direitos Constitucionais com a comunidade quilombola de São João (PR), com a presença de professores universitários, advogados populares e agentes estatais (foto do acervo do MP-PR)

Quilombolas do Paraná lutam pelo reconhecimento de direitos
por Ednubia Ghisi

Em 1760, chegavam à região de Adrianópolis (PR), no Vale do Ribeira, os primeiros habitantes da comunidade São João. As memórias passadas de geração para geração relatam que João Muratinho e Tomázia Fernanda de Matos foram os precursores da ocupação, vindos da cidade de Eldorado Paulista, em São Paulo. São João é uma das 36 comunidades certificadas pela Fundação Cultural Palmares como remanescentes de quilombos no Paraná, fruto da resistência da população negra escravizada durante mais de 300 anos. Até 2010, foram identificadas mais de 80 comunidades quilombolas no Estado, segundo relatório do Grupo de Trabalho Clóvis Moura – grupo intersetorial criado em 2005 pelo Governo do Estado, com o objetivo de realizar o Levantamento Básico de Comunidades Negras.

A pequena vila iniciada por João e Tomázia, localizada na margem do Rio São João, hoje é habitada por 12 famílias quilombolas. Está a seis quilômetros da cidade paulista de Barra do Turvo e a aproximadamente 175 km da sede do município a que pertence, Adrianópolis, 374ª cidade no ranking estadual do Índice de Desenvolvimento Humano. A comunidade já foi maior, mas as dificuldades decorrentes do isolamento geográfico têm forçado a migração para o meio urbano, especialmente depois da criação do Parque Estadual das Lauráceas, na divisa entre Barra do Turvo e Adrianópolis, em 1979. Reserva importante do bioma Mata Atlântica, com 29.086 hectares de extensão, o Parque, por outro lado, dificultou ainda mais o acesso dos quilombolas às políticas públicas, desde a ligação com a rede elétrica até a construção de estradas que os conduza à sede do município de Adrianópolis.

Além de São João, as comunidades quilombolas Estreitinho, Três Canais e Córrego do Franco, de Adrianópolis, e Areia Branca, de Bocaiúva do Sul, vivem o mesmo contexto de isolamento desencadeado pela criação do Parque e são obrigadas a procurar os serviços públicos, como saúde e educação, no município de Barra do Turvo, em São Paulo, cidade mais próxima.

A partir da reivindicação das comunidades do Vale do Ribeira e de outros povos remanescentes de quilombos no Estado, desde 2008, o Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça dos Direitos Constitucionais tem buscado assegurar a efetivação dos direitos fundamentais destes grupos. Para o procurador de Justiça Marcos Bittencourt Fowler, que atuava no Centro de Apoio dos Direitos Constitucionais, incluir a questão quilombola nas incumbências do Ministério Público foi uma grande conquista, uma vez que não havia nenhuma atuação nesse sentido no Paraná ou em outros estados. Antes, apenas o Ministério Público Federal atuava, voltado especialmente às questões indígenas. “O trabalho tem sido o de inserir as demandas comunitárias na agenda do Estado em sentido amplo, pois estes povos estão há muitos anos à margem das políticas públicas, o que torna as respectivas necessidades estruturais e urgentes. É preciso ter atuação ampla”, afirma.

Osvando Morato dos Santos, morador da comunidade São João, avalia que, para além do isolamento geográfico, a população quilombola está invisível aos olhos do Estado. “Nós temos tido muito pouca atenção do estado e do município. O acompanhamento dos nossos problemas precisa ser mais presente e constante por parte do poder público”. Segundo Santos, a intervenção do MP-PR tem sido positiva e precisa continuar: “O Ministério Público tem nos ajudado bastante e trazido esclarecimentos sobre nossos direitos”.

Pé na comunidade
Se a existência de comunidades quilombolas era desconhecida no Paraná, intervir nesta realidade exigiu do Ministério Público um esforço de aproximação e compreensão das especificidades e da conjuntura em que vivem atualmente os remanescentes quilombolas. Na avaliação de Fowler, o poder público precisa levar em conta as peculiaridades dos diferentes grupos que formam o povo brasileiro quando executa uma política, para evitar injustiças e imposições. No caso da população quilombola, o procurador de Justiça sinaliza a origem como principal especificidade: “Os quilombolas nascem no contexto de opressão do regime escravocrata, em que seres humanos foram tratados como mercadoria. Eles têm a marca viva da opressão e se constituem enquanto resistência àquela realidade. O Estado precisa ter o cuidado de levar em conta essas particularidades, inclusive por ter sido protagonista e responsável pela escravidão”.

Dentro do projeto estratégico “Ministério Público Social”, o Centro de Apoio realiza visitas de campo para conhecer a realidade quilombola e sistematizar informações referentes ao grau de acesso às políticas públicas nas localidades. Para tanto, vem sendo realizados seminários, audiências públicas e reuniões com a intenção de fomentar e ampliar o diálogo entre as comunidades e órgãos estatais, estudiosos e integrantes das comunidades. As dificuldades encontradas nas diferentes localidades são parecidas e confirmam a precariedade em que vivem esses povos.

Há muito tempo os moradores reivindicam o reconhecimento de suas terras. Segundo informações do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), existem 36 processos de regularização de territórios quilombolas abertos no estado, mas por falta de técnicos a previsão é de que o reconhecimento demore a chegar: “A equipe do Incra está reduzida, são quatro servidores para atender todas as demandas. Os processos levarão pelo menos de quatro ou cinco anos para serem finalizados”, afirmou Claudio Marques, responsável pela regularização dos territórios quilombolas, durante audiência pública organizada pelo CAOP no Córrego do Franco, em Adrianópolis, em 20 de novembro de 2010.

No Vale do Ribeira, a extração de madeira de reflorestamento e a criação extensiva de búfalos em fazendas formam paisagem recorrente, em contraste visível com as práticas de agricultura familiar das comunidades tradicionais. Para ter acesso à estrada, os moradores precisam passar pelo rebanho, dando ensejo a repetidos casos de ataques dos animais, especialmente às crianças. Igualmente, a criação de búfalos nas fazendas da região contamina a água utilizada pela população.

O acesso à educação e à saúde é outra dificuldade recorrente. Para frequentar a escola, as crianças quilombolas são obrigadas andar de dois a seis quilômetros. “Se alguém fica doente precisa ser levado para a cidade a cavalo, como foi com a minha esposa, que adoeceu e acabou falecendo. Em outro caso recente, precisamos carregar nas costas um rapaz que tinha quebrado uma perna”, relata Santos.

O conjunto de demandas apresentadas pelas comunidades tem sido levado a órgãos públicos, federais e estaduais, a fim de que possam ser estruturadas políticas públicas específicas. Todavia, para além de esperar a iniciativa do Estado, as comunidades estão avançando na organização política e na inserção em espaços públicos de decisão, por meio da Federação de Comunidades Quilombolas do Estado do Paraná (Fecoqui), fundada em 2009, e da participação no Conselho Estadual de Desenvolvimento Rural da Agricultura Familiar, nos Conselhos Gestores dos Fóruns Territoriais nos Territórios da Cidadania, nos Conselhos Municipais de Desenvolvimento Rurais e nos Conselhos Municipais de Saúde, entre outros.

Resultados
A partir da intervenção do MP-PR, o município de Adrianópolis passou a deslocar para a região equipe técnica das áreas de saúde, educação e assistência social, a fim de solucionar os problemas detectados. Corrigiram-se, por exemplo, falhas no atendimento pelo posto de saúde e pela escola que assistem aquelas comunidades. As famílias também foram inscritas em programas sociais, como o Bolsa Família e o Luz para Todos. Foi disponibilizado, ainda, o acesso à aposentadoria destinada a trabalhadores rurais, por meio do INSS, que passará a destacar equipe para orientar os moradores e receber a documentação. Também já foram finalizados pelo Incra os laudos antropológicos necessários para o reconhecimento das áreas como territórios quilombolas.

Raízes reconhecidas
No Paraná, de acordo com dados de 2010 do Grupo de Trabalho Clóvis Moura, existem 36 comunidades certificadas pela Fundação Cultural Palmares como remanescentes de quilombos, 20 comunidades negras rurais e 32 indicativos de comunidades que poderão receber a certificação como quilombolas.

Durante o governo Lula, de 2003 a 2010, 1.573 comunidades foram certificadas pela Fundação Cultural Palmares, a partir da emissão de Certidões de Autodefinição, principalmente nos estados do Maranhão, Bahia, Minas Gerais, Pernambuco, Pará e Rio Grande do Sul. A certificação é a primeira etapa do processo de reconhecimento, quando a própria comunidade se autodefine quilombola. Depois da certificação, o processo segue para o Incra, para relatório que identifica e delimita as comunidades. Na terceira etapa, é realizada a identificação dos imóveis rurais dentro do território da comunidade quilombola, quando os imóveis particulares são desapropriados e as famílias não-quilombolas que se enquadram no Plano Nacional de Reforma Agrária são reassentadas pelo Incra. A quarta e última fase é a titulação, quando a comunidade recebe um único título correspondente à área total. Segundo informações da Fundação Palmares, de 1995 até 2010 foram emitidos 113 títulos, beneficiando 11.506 famílias. No Paraná, nenhuma comunidade foi titulada até o momento. Atualmente existem mais de dois mil processos abertos para certificação de comunidades quilombolas no país. 

(O presente artigo se encontra em "Contexto: revista do Ministério Público do Estado do Paraná", n. 1, março de 2001, p. 20-22.)