Creio que a melhor forma de fazê-lo é “colocando o dedo na ferida”, ou melhor, mostrando onde estão as veias abertas da Amazônia, qual é a profundidade do corte, e quem são os “vampiros” que dela se beneficiam. Essas veias abertas, no entanto, não são puramente “econômicas”, mas também ecológicas, culturais, ideológicas.
Para onde correm as veias abertas da Amazônia?
Começo por estas últimas, que se apresentam como as mais difíceis de transpor, especialmente para alguém que não vive na região, e é massacrado todos os dias com os conceitos manipuladores sobre a Amazônia, produzidos pelos centros de produção ideológica do atual sistema-mundo vigente, e reproduzidos ad nauseam pelos monopólios dos meios de comunicação.
Por exemplo, a noção do “arcaico”, do “atrasado”, da “selvageria” que muitas vezes se associa com o povo da região. Há quem romanticamente aceite tal conceito, considerando os traços de subdesenvolvimento que assolam e dizimam a população da região como “provas cabais” de sua inadaptação ao modo de produção capitalista, o que supostamente seria “bom” (por mais estranha que seja, essa opinião é mais comum do que se imagina, especialmente entre parte de uma juventude pequeno-burguesa mais propensa a conceitos “anticapitalistas” de corte pós-moderno). Há outros que se valem destas noções como “provas irrefutáveis” da “incapacidade” do povo da região em determinar seu próprio destino, e, especialmente, em se relacionar com a monumental biodiversidade amazônica.
Se a primeira noção é útil ao sistema-mundo hegemônico, pois legitima o abandono do povo ao “deus-dará”; a segunda é essencial para a legitimação das brutais intervenções sobre a região, explorando sua força de trabalho e saqueando suas riquezas naturais em prol do Deus-Capital. Essa, como aponta Dussel em “1492: o encobrimento do Outro”, é a essência do mito sacrificial da Modernidade, ideologicamente violenta pois procura transformar a razão do Outro (na verdade, o “absolutamente Outro”, o inassimilável e impossível dentro do sistema hegemônico, o que na Amazônia corresponde, especial, mas não exclusivamente, ao índio) em não-razão, de forma a legitimar sua própria razão (irracional, bárbara, violenta) como a única possível e racional.
Das veias ecológicas abertas me parece que todos conhecem; ou melhor: conhecem a ponta do iceberg. Sabemos da ação destrutiva do avanço do agronegócio na Amazônia (os monocultivos de grãos, o avanço da pecuária extensiva etc), que jura não ser a responsável pelo “arco do desmatamento” mas não conta que sua ação é articulada com a dos madeireiros, rotulados como os “únicos e grandes vilões” na questão (e ainda que não sejam os únicos, são também responsáveis pela destruição da floresta). Sabemos disso especialmente porque os movimentos ambientalistas nos contam, e nisso prestam um grande favor à natureza e à sociedade. Favor ainda maior prestariam se nos contassem quem são seus financiadores, e o que efetivamente propõem para a região...
Uma das mais duras constatações a que cheguei estudando a Amazônia nesses 2 anos refere-se ao papel de muitas organizações ambientalistas (quase todas, e especialmente as maiores, chamadas por Diegues de “as multinacionais da conservação”), e do próprio Direito Ambiental no que se refere à Amazônia. Em geral, estas organizações lutam contra o avanço do agronegócio na região (no caso das mais “radicais”), ou por seu controle estrito (no caso das mais “moderadas”), não em virtude das conseqüências para os povos da região, mas sob uma preocupação puramente preservacionista. E o preservacionismo (cuja vertente mais radical e conhecida é a “ecologia profunda”) é uma ideologia ambientalista criada nos EEUU na mesma linha e época da filantropia burguesa (só que aplicada aos animais e às plantas, como as “sociedades protetoras”, “salvem os golfinhos” etc etc), que se tornou um aporte útil ao Impérialismo a partir da crise econômica de 1969-74, e também da 3ªRevolução Tecnológica.
Fui e continuarei sendo muito criticado por esta conclusão, a que cheguei e apresentei em minha dissertação de mestrado, na qual busquei apresentar os limites e as possibilidades jurídicas que alguns espaços territoriais especialmente protegidos oferecem aos povos da Amazônia diante do avanço do agronegócio e da transgenia (não sem antes buscar os fundamentos estruturais e históricos que permeiam essa questão). Considero, porém, que ela foi e é necessária para evitar que abramos ainda mais uma veia ao tentarmos fechar outra. De nada adianta “salvar” a Amazônia do avanço do agronegócio, e entregá-la de mão beijada ao Império criando “áreas protegidas” que nada mais são que "armazéns de biodiversidade", estoques de matéria-prima barata para as indústrias da 3ª Revolução Tecnológica (farmacêuticas, cosméticas, de biotecnologia etc). Não que todas as áreas protegidas tenham esse perfil, mas, mesmo nos casos de áreas juridicamente criadas a partir da luta dos movimentos socioambientalistas, o que se vê na prática é uma atuação do Poder Público que criminaliza, restringe e afinal inviabiliza as formas de vida das populações nessas áreas.
Fica claro então que as veias abertas ideológicas, culturais, ecológicas etc estão ligadas entre si, e, em especial, com as propriamente econômicas. Não porque queiramos que assim seja, ou que nosso método aponte para essa conclusão, mas porque a dinâmica da realidade concreta aponta nesse sentido. A biopirataria é a forma típica de veia econômica aberta pelas indústrias da 3ª Revolução Tecnológica. O agronegócio é outra veia aberta, que alimenta multinacionais do ramo alimentício (de capital brasileiro ou estrangeiro), ao mesmo tempo em que a fome ainda não foi erradicada na região. A madeira é uma veia da qual já sangrou tanto, que a fonte já começa a escassear, sendo ainda explorada por parasitas menores. A geração de energia elétrica é outra veia aberta que alimenta construtoras e empresas de mineração e siderurgia, que se aproveitam hoje da mais profunda veia aberta da Amazônia.
Caminhões, trens, navios: tudo serve para sugar as veias abertas
Não é de agora que as veias abertas da Amazônia jorram imensas riquezas (e já dizia Eduardo Galeano que talvez a grande miséria da América Latina tenha sido justamente toda a sua riqueza). Já era assim desde seu en-cobrimento, com a escravização do índio para a coleta de drogas-do-sertão e o corte de madeira, e foi assim com o famoso período da borracha. Não se trata porém de uma “sina”, de um “destino manifesto”, nem de incapacidade do povo em ser livre. A disposição de luta do povo amazônida está gravada na História com a famosa Cabanagem, e também com revoltas que a historiografia oficial não atribui maior importância. Essa disposição não ficou presa aos antepassados, mas segue hoje nas radicalizadas greves dos operários da construção civil, nas paralisações freqüentes dos servidores públicos, nas freqüentes lutas de barricadas que ocorrem nos bairros em protesto contra a falta de serviços públicos; isso sem contar as lutas dos movimentos indígenas, quilombolas, campesinos etc.
"No seu meio, o amazônida nativo é imbatível"
Digo sem medo de errar: os responsáveis pelo saque da Amazônia e pela miséria de seu povo são, em associação com o Imperialismo e as transnacionais, os “ilustres” membros da classe dominante local (os Maiorana, os Barbalho, os fazendeiros com trabalho escravo, os empreiteiros de prédios de papel etc), uma verdadeira lumpen-burguesia a qual se associam profissionais e técnicos a soldo destes, dentro dos quais se inclui toda uma camarilha de juristas que os cercam, nos tribunais e nos escritórios. A intelectualidade, encastelada na Universidade, é de um silêncio ensurdecedor e conivente, com raras e dignas exceções. Uma delas, o professor Aluizio Lins Leal, economista marxista e historiador amazônida, nos diz em sua Sinopse histórica da Amazônia: “no seu meio, o amazônida nativo é imbatível – e pode libertar-se desde que tenha consigo um projeto político”.
Um dia, as veias abertas serão fechadas. E não há de demorar.