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sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

As veias abertas da Amazônia: uma contribuição ao debate

Diz a lenda que o Rio Amazonas foi criado com as lágrimas da lua...

Gostaria hoje de fazer uma pequena homenagem à Amazônia e ao seu povo, com toda sua exuberância, seu calor humano e seu inspirador espírito de luta. Faço isso como registro pessoal, já que é minha última postagem em terras amazônidas, ao menos por um bom tempo...

Creio que a melhor forma de fazê-lo é “colocando o dedo na ferida”, ou melhor, mostrando onde estão as veias abertas da Amazônia, qual é a profundidade do corte, e quem são os “vampiros” que dela se beneficiam. Essas veias abertas, no entanto, não são puramente “econômicas”, mas também ecológicas, culturais, ideológicas.

Para onde correm as veias abertas da Amazônia?

Começo por estas últimas, que se apresentam como as mais difíceis de transpor, especialmente para alguém que não vive na região, e é massacrado todos os dias com os conceitos manipuladores sobre a Amazônia, produzidos pelos centros de produção ideológica do atual sistema-mundo vigente, e reproduzidos ad nauseam pelos monopólios dos meios de comunicação.

Por exemplo, a noção do “arcaico”, do “atrasado”, da “selvageria” que muitas vezes se associa com o povo da região. Há quem romanticamente aceite tal conceito, considerando os traços de subdesenvolvimento que assolam e dizimam a população da região como “provas cabais” de sua inadaptação ao modo de produção capitalista, o que supostamente seria “bom” (por mais estranha que seja, essa opinião é mais comum do que se imagina, especialmente entre parte de uma juventude pequeno-burguesa mais propensa a conceitos “anticapitalistas” de corte pós-moderno). Há outros que se valem destas noções como “provas irrefutáveis” da “incapacidade” do povo da região em determinar seu próprio destino, e, especialmente, em se relacionar com a monumental biodiversidade amazônica.

Se a primeira noção é útil ao sistema-mundo hegemônico, pois legitima o abandono do povo ao “deus-dará”; a segunda é essencial para a legitimação das brutais intervenções sobre a região, explorando sua força de trabalho e saqueando suas riquezas naturais em prol do Deus-Capital. Essa, como aponta Dussel em “1492: o encobrimento do Outro”, é a essência do mito sacrificial da Modernidade, ideologicamente violenta pois procura transformar a razão do Outro (na verdade, o “absolutamente Outro”, o inassimilável e impossível dentro do sistema hegemônico, o que na Amazônia corresponde, especial, mas não exclusivamente, ao índio) em não-razão, de forma a legitimar sua própria razão (irracional, bárbara, violenta) como a única possível e racional.

Das veias ecológicas abertas me parece que todos conhecem; ou melhor: conhecem a ponta do iceberg. Sabemos da ação destrutiva do avanço do agronegócio na Amazônia (os monocultivos de grãos, o avanço da pecuária extensiva etc), que jura não ser a responsável pelo “arco do desmatamento” mas não conta que sua ação é articulada com a dos madeireiros, rotulados como os “únicos e grandes vilões” na questão (e ainda que não sejam os únicos, são também responsáveis pela destruição da floresta). Sabemos disso especialmente porque os movimentos ambientalistas nos contam, e nisso prestam um grande favor à natureza e à sociedade. Favor ainda maior prestariam se nos contassem quem são seus financiadores, e o que efetivamente propõem para a região...

Uma das mais duras constatações a que cheguei estudando a Amazônia nesses 2 anos refere-se ao papel de muitas organizações ambientalistas (quase todas, e especialmente as maiores, chamadas por Diegues de “as multinacionais da conservação”), e do próprio Direito Ambiental no que se refere à Amazônia. Em geral, estas organizações lutam contra o avanço do agronegócio na região (no caso das mais “radicais”), ou por seu controle estrito (no caso das mais “moderadas”), não em virtude das conseqüências para os povos da região, mas sob uma preocupação puramente preservacionista. E o preservacionismo (cuja vertente mais radical e conhecida é a “ecologia profunda”) é uma ideologia ambientalista criada nos EEUU na mesma linha e época da filantropia burguesa (só que aplicada aos animais e às plantas, como as “sociedades protetoras”, “salvem os golfinhos” etc etc), que se tornou um aporte útil ao Impérialismo a partir da crise econômica de 1969-74, e também da 3ªRevolução Tecnológica.

Fui e continuarei sendo muito criticado por esta conclusão, a que cheguei e apresentei em minha dissertação de mestrado, na qual busquei apresentar os limites e as possibilidades jurídicas que alguns espaços territoriais especialmente protegidos oferecem aos povos da Amazônia diante do avanço do agronegócio e da transgenia (não sem antes buscar os fundamentos estruturais e históricos que permeiam essa questão). Considero, porém, que ela foi e é necessária para evitar que abramos ainda mais uma veia ao tentarmos fechar outra. De nada adianta “salvar” a Amazônia do avanço do agronegócio, e entregá-la de mão beijada ao Império criando “áreas protegidas” que nada mais são que "armazéns de biodiversidade", estoques de matéria-prima barata para as indústrias da 3ª Revolução Tecnológica (farmacêuticas, cosméticas, de biotecnologia etc). Não que todas as áreas protegidas tenham esse perfil, mas, mesmo nos casos de áreas juridicamente criadas a partir da luta dos movimentos socioambientalistas, o que se vê na prática é uma atuação do Poder Público que criminaliza, restringe e afinal inviabiliza as formas de vida das populações nessas áreas.

Fica claro então que as veias abertas ideológicas, culturais, ecológicas etc estão ligadas entre si, e, em especial, com as propriamente econômicas. Não porque queiramos que assim seja, ou que nosso método aponte para essa conclusão, mas porque a dinâmica da realidade concreta aponta nesse sentido. A biopirataria é a forma típica de veia econômica aberta pelas indústrias da 3ª Revolução Tecnológica. O agronegócio é outra veia aberta, que alimenta multinacionais do ramo alimentício (de capital brasileiro ou estrangeiro), ao mesmo tempo em que a fome ainda não foi erradicada na região. A madeira é uma veia da qual já sangrou tanto, que a fonte já começa a escassear, sendo ainda explorada por parasitas menores. A geração de energia elétrica é outra veia aberta que alimenta construtoras e empresas de mineração e siderurgia, que se aproveitam hoje da mais profunda veia aberta da Amazônia.

Caminhões, trens, navios: tudo serve para sugar as veias abertas

Não é de agora que as veias abertas da Amazônia jorram imensas riquezas (e já dizia Eduardo Galeano que talvez a grande miséria da América Latina tenha sido justamente toda a sua riqueza). Já era assim desde seu en-cobrimento, com a escravização do índio para a coleta de drogas-do-sertão e o corte de madeira, e foi assim com o famoso período da borracha. Não se trata porém de uma “sina”, de um “destino manifesto”, nem de incapacidade do povo em ser livre. A disposição de luta do povo amazônida está gravada na História com a famosa Cabanagem, e também com revoltas que a historiografia oficial não atribui maior importância. Essa disposição não ficou presa aos antepassados, mas segue hoje nas radicalizadas greves dos operários da construção civil, nas paralisações freqüentes dos servidores públicos, nas freqüentes lutas de barricadas que ocorrem nos bairros em protesto contra a falta de serviços públicos; isso sem contar as lutas dos movimentos indígenas, quilombolas, campesinos etc.

"No seu meio, o amazônida nativo é imbatível"

Digo sem medo de errar: os responsáveis pelo saque da Amazônia e pela miséria de seu povo são, em associação com o Imperialismo e as transnacionais, os “ilustres” membros da classe dominante local (os Maiorana, os Barbalho, os fazendeiros com trabalho escravo, os empreiteiros de prédios de papel etc), uma verdadeira lumpen-burguesia a qual se associam profissionais e técnicos a soldo destes, dentro dos quais se inclui toda uma camarilha de juristas que os cercam, nos tribunais e nos escritórios. A intelectualidade, encastelada na Universidade, é de um silêncio ensurdecedor e conivente, com raras e dignas exceções. Uma delas, o professor Aluizio Lins Leal, economista marxista e historiador amazônida, nos diz em sua Sinopse histórica da Amazônia: “no seu meio, o amazônida nativo é imbatível – e pode libertar-se desde que tenha consigo um projeto político”.

Um dia, as veias abertas serão fechadas. E não há de demorar.

domingo, 13 de fevereiro de 2011

A questão agrária na América Latina: questionamentos iniciais


"O lavrador de café" (1934), de Cândido Portinári


Há muito, os movimentos sociais populares vêm aumentando sua atenção para a construção de uma teoria que realmente consiga explicar a realidade na qual vivemos, em conformidade com os aspectos estruturais que nos condicionam e com as necessidades subjetivas que nos acometem. Neste sentido, o resgate das mais variadas interpretações do materialismo histórico é algo bastante compreensível e, aliás, não poderia ser diferente.

No entanto, este resgate não pode esquecer-se de seu contexto. O entorno no qual se insere a interpretação marxista na América Latina é fundamental para situarmos bem o nosso problema histórico em seu conjunto complexo de articulações. Apenas e tão somente desta forma é que poderemos avançar rumo a uma teoria que respalde nossa prática, ainda mais se propusermos que se trate de uma práxis atrelada aos movimentos populares.

Tanto o método quanto a crítica da economia política empreendida por Marx e a tradição que o seguiu não podem ser vistos distanciadamente com relação aos problemas históricos que nos afligem, desde o lado de cá do Atlântico.

Dessa forma é que se torna fundamental para nós, latino-americanos, a questão agrária e as implicações deste questionamento dentro do rol de problematizações oferecidas pela crítica marxista. E daí fazer muito sentido, também, a construção de um marxismo latino-americano, não com a intenção de isolá-lo do debate europeu, por exemplo, mas antes com o fito de criar uma mediação geopolítica, concreta e necessária, para a interpretação de nossa realidade.

Assim, se a questão agrária é muito mais que um problema voltado para índices de produtividade ou preços de itens produzidos no campo (o que se costumou chamar de “questão agrícola”), ela implica uma análise qualitativa que não pode descurar de um instrumental teórico potente. A questão agrária se volta para problemas da ordem das relações de produção, o que faz com que tenhamos de nos preocupar com a organização do trabalho efetivado no meio campesino, assim como a inserção deste problema dentro do quadro maior da organização da produção em toda nossa sociedade, a qual tem o signo histórico do capitalismo.

O modo de produção capitalista é regido pela junção de relações de produção com o desdobramento das forças produtivas, as quais se denotam por um critério básico quanto aos agentes nelas envolvidos: a propriedade ou não dos meios de produção. A não propriedade dos meios de produção representa a propriedade apenas da força de trabalho individual, a qual pode ser livremente vendida no mercado de trabalho com as garantias do direito moderno e suas formas jurídicas, em especial as contratuais.

Eis que, desse jeito, chegamos ao encontro do conceito universal-abstrato do modo de produção com a questão agrária, já que esta envolve justamente relações de produção no campo. E é a partir deste encontro que o debate se amplia e se complexifica, já que, na América Latina, a forma histórica da acumulação primitiva do capital se deu de um modo distinto daquele empreendido no capitalismo central.

Na verdade, em torno disso houve - e há ainda - toda uma discussão exegética para se saber qual o papel desempenhado pelo continente conquistado e colonizado ao tempo do expansionismo marítimo europeu. Se, por um lado, a acumulação primitiva do capital se deu de modo a operar uma ruptura com a feudalidade e suas características laborais peculiares, tais quais as relações de servidão, pertença à terra e integração do trabalhador com seus meios de produção; por outro lado, ela só se tornou possível com as riquezas metálicas e mercantis propiciadas pela exploração do chamado novo mundo. A colonização das Américas é o outro lado da moeda do nascedouro do modo de produção capitalista. Outro lado da moeda, outro lado da moenda... de gente.

É o que, então, se coloca como grande problema para interpretação de nossa realidade: diante da impossibilidade de se aceitar o caráter feudal ou semi-feudal de nosso continente (ainda que muitos de nossos bons intérpretes, e não só os maus, tenham lançado mão desta concepção eurocêntrica), como caracterizar o nosso modo de produção a partir da questão agrária que sempre nos acompanhou e continua a nos acompanhar?

A teoria da dependência, seguindo uma série de reflexões críticas e marxistas do continente feitas até então, preferiram designar o nosso modo de produção como sendo capitalista, sim. Mas com a peculiaridade do colonialismo. Um capitalismo colonial, portanto. O que deveria ser o óbvio, em verdade, foi o ponto de chegada de todo um embate que ficaria sendo conhecido como o “estéril debate sobre o caráter feudal da América Latina”.

Decorrência das interpretações “feudalizantes” da formação histórica da América Latina foram, dentre outras, a compreensão de que para ultrapassar a situação do subdesenvolvimento seria necessário conspirar para o avanço das forças produtivas da burguesia nacional, frente ao semi-feudalismo imperante; a visualização de sociedades duais no continente, em que, em uma banda, estariam regiões modernas e, em outra, regiões atrasadas e primitivas que deveriam ser absorvidas pelas modernas; e, ainda, a conjuração do caráter revolucionário do campesinato, em seus setores populares.

O problema do campesinato é central para se compreender a América Latina, em especial sua força revolucionária. E mais: não sendo, as nossas, sociedades duais, trabalhadores do campo e da cidade têm uma relação inextricável. Sem desprezar, logicamente, suas diferenças, é preciso notar que todas as lutas do continente não puderam passar ao largo das guerras camponesas, inseridas ululantemente na conflito de classes que move nossas sociedades periféricas. Se, entre os soviéticos, os termos da discussão de davam em volta de se saber se os camponeses formavam parte de um modo de produção próprio (Chaianov) ou se eram uma transição para o capitalismo a partir dos resquícios do modo de produção feudal (Lênin), entre nós este debate deve se renovar a um ponto tal que possamos estabelecer as relações entre o camponês e a organização do trabalho, especialmente se aqui não grassam as massas campesinas de proprietários de terra e meios de produção em geral. Afinal de contas, cabe o questonamento (como tentativa de esclarecimento a partir do debate empreendido em torno do texto postado há duas semanas, “A ‘classe-que-vive-do-trabalho’: e o que a AJP tem a ver com isso?”, por Diego Augusto Diehl, aqui no blogue): qual o conceito de campesinato que devemos utilizar e o que nos deve fazer concluir que não se tratam de setores das classes populares que integram a “classe-que-vive-do-trabalho”?