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sexta-feira, 27 de novembro de 2015

Abraços, Destruições e Belo Monte: o velório de uma ilha para o desenvolvimento de uma hidrelétrica

Por Assis da Costa Oliveira

Ilha do Arapujá, no início do desmatamento.
No dia 30 de agosto de 2015 houve o velório de uma ilha em Altamira, no estado do Pará. Isto é, o Fórum de Defesa de Altamira reuniu uma parcela da população da cidade para promover o derradeiro abraço simbólico da ilha do Arapujá, referência maior da paisagem da orla da cidade, situada no meio do rio Xingu. O abraço simbólico tinha motivo: em poucos dias, uma ilha construída ao longo de milhares de anos seria (e foi) totalmente desmatada, seus animais retirados ou esquecidos a própria sorte, para, ao final, não restar nenhuma prova do que era essa ilha, para além daquela que continuará a existir nas memórias, imagens e corações dos moradores locais.

As máquinas desmatando a ilha.
Segundo o licenciamento ambiental da obra da Usina Hidrelétrica de Belo Monte, o termo técnico para esse ato é “supressão da massa vegetal” do rio Xingu, procedimento “necessário” para aumentar a velocidade de escoamento da água e reduzir sua acidificação devido a decomposição da madeira, assim “beneficiando” a produção da futura energia elétrica. Dito assim, parece até suavizar a atrocidade de tal operação. Trata-se de uma “massa vegetal” que representa ilhas, florestas e animais que serão suprimidos para os, agora, “entulhos” darem lugar aos intentos humanos de produção da “energia limpa” de Belo Monte, além das famílias ribeirinhas e indígenas que lá habitam serem indenizadas ou remanejadas para outros locais, bem longe do rio.

A manifestação do Fórum de Defesa de Altamira.
Para grande parte da população de Altamira, e da região do Xingu, a ilha do Arapujá não era uma “massa vegetal” ou um empecilho aos objetivos do empreendimento de Belo Monte. Muito pelo contrário. Arapujá era uma ilha que dava sentido as suas formas de vivenciar o território local, de apreciar a paisagem da orla da cidade, de reconhecer-se na floresta “na outra beira do rio”, para além do concreto urbano do “lado de cá”.  Como traduzir para a lógica técnico-administrativa essa dimensão do afeto, da identidade e da memória coletiva, se a dimensão afetivo-simbólica é desconsiderada nos estudos prévios de impacto ambiental do licenciamento ambiental e do processo de intervenção do empreendedor no território? Como dimensionar tais impactos e a projeção (inter)subjetiva que eles acometem nas pessoas, suprimindo uma parte considerável daquilo que entendiam por seus modos de vida, seus modos de vivenciar o território local?
No ato ocorrido dia 30 de agosto, Raimunda Gomes da Silva, moradora antiga de Altamira, sintetizou bem o que é essa dimensão afetivo-simbólica de habitar o território, da “amizade com o Arapujá”: “Eu vim hoje aqui dá esse abraço no Arapujá, porque daqui do Arapujá eu só vou levar lembranças boas, já tirei o meu sustento daqui. Hoje pra mim ver o Arapujá morrer, pra mim não é uma despedida, é uma lembrança que eu vou guardar comigo, de uma ilha que já foi minha amiga de suprir minha necessidade por conta do berço que ela guardava que era o peixe. Hoje, ela se encontra nesse desespero da morte, mas eu queria dizer que ela vive para sempre no meu coração”.
O significado e o sentimento da amizade, do abraço, do berço e da memória, tal como relatados por Raimunda, revelam o quanto para os moradores locais tal ilha não era (e é) apenas um elemento físico-biológico do meio ambiente amazônico, mas parte daquilo que compreendem como seu patrimônio cultural, um “outro sujeito” portador de referência à identidade, à ação, à memória dos seus modos de criar, fazer e viver, como reza o artigo 216 da Constituição Federal de 1988, de suas práticas cotidianas e históricas de vivenciar o rio Xingu e a cidade de Altamira.

Cartazes e cânticos, no término do abraço simbólico.
Como bem nos lembra Jean Hébette, trata-se de uma forma de organização da vida social que é radicalmente confrontada e desestruturada pela dinâmica organizacional dos grandes projetos, mas cuja população dita “impactada” aprende, nesse processo, a resistir e a se organizar, a criar estratégias de visibilizar a dimensão afetivo-simbólica do território, de sua conversão em patrimônio cultural e em legado de seus direitos humanos, de seus sentidos éticos de humanidade e de justiça.
Vai-se o Arapujá, mas ele não morre, resiste na memória das pessoas e persiste no questionamento dos fins do modelo de desenvolvimento que o matou: Valeu a pena? Para quem e com que custos? É preciso lembrar de uma reflexão contida no filme Narradores de Javé, cuja comunidade fictícia ironicamente encontrou o mesmo destino que o Arapujá, e que num certo momento um morador do vilarejo de Javé vaticina: “uma terra vale pelo que produz, mas pode valer mais ainda pelo que esconde”. Toda uma dimensão afetivo-simbólica foi alojada num canto esquecido da política de desenvolvimento que cristaliza o processo de implantação de Belo Monte. Os que sabem olhar – e sentir – tal dimensão não tardam em anunciar seu valor e o valor cultural do território; os que não sabem – ou não querem – ver tal dimensão podem, enfim, continuar a dormir no “berço esplendido” da injustiça socioambiental. 

sábado, 9 de julho de 2011

Notícias do Front (ou da Fronteira)

O aumento exponencial da migração de pessoas para a cidade de Altamira/PA, por conta da propaganda governamental e empresarial do possível início de instalação do canteiro de obras da usina hidrelétrica e, portanto, de contratação de pessoas, tem gerado efeito nefasto no preço dos aluguéis e dos terrenos, cujas vítimas são sobretudo as pessoas mais pobres.

Nos bairros populares da cidade, em especial nos de baixada (localizados próximos do rio Xingu ou de seus canais, e que sofrem alagações anuais por conta da cheia do rio e, com a UHE Belo Monte, serão permanentemente inundados), o preço do aluguel que, antes, girava em torno de 50 a 100 , agora subiu para 200 e até 500 reais, por conta do aumento da demanda e da tentativa dos proprietários de lucrarem.

Nesse cenário, algo de interessante está ocorrendo. As classes populares destes bairros que vivem de alugueis, sentindo na pele os efeitos perversos sobre a moradia urbana, passaram a lutar pelo direito à moradia por meio da organização de levantes populares de ocupação de áreas ao redor da cidade que não estavam (e estão) cumprindo a destinação habitacional ou de produção agrícola.
Momento de tensão: negociação entre polícia e ocupantes

Em um mês, quatro ocupações foram realizadas em áreas "abandonadas" pelos seus proprietários, e cujos ocupantes, pressionados até o pescoço pelo aumento dos aluguéis, viram como única alternativa para garantirem espaço de moradia ou, ao menos, sensibilizar o poder público para o problema social que aflora, em busca de soluções.

Visitei duas das ocupações recentemente, na qualidade de assessor jurídico. Em ambas ouvi relatos semelhantes, como a que me contou dona Elza (nome fictício), de 42 anos: "Meu marido morreu faz oito meses. Tenho duas crianças para criar e ganho um salário mínimo no emprego. Morávamos numa casa, de aluguel, e este passou de 50 reais para 200 reais. Como é que eu posso pagar isto e ainda garantir o alimento das crianças? Não dá. Saí de lá e coloquei minhas coisas na casa da minha sogra. Agora estou aqui para lutar por uma casa para ter tranquilidade."

Este movimento quase que espontâneo das pessoas em busca de moradia têm gerado muitos conflitos e disputas jurídico-policiais na atualidade. Em uma das ocupações, mais de 20 pessoas foram levadas para delegacia devido ação da polícia em cumprimento à mandado de reintegração de posse, de caráter liminar, expedido pelo Judiciário local. Em outra, telefonemas anônimos tem alertado as organizações que auxiliam as ações a respeito de possíveis atos de violência a serem cometidos contra pessoas identificadas como lideranças.

O mais importante de tudo isso é que o povo (num recorte das classes sociais localizadas nos bairros populares, em especial de baixada) não está passivo ao processo de agudização de seu direito humano à moradia. Mesmo que, outrora, não quisesse se mobilizar para lutar por pautas, como a ambiental e dos povos indígenas, mas incisivamente ligados à questão da UHE Belo Monte e, portanto, não estivesse diretamente na frente de luta contra o empreendimento, o fato de estar passando na pele por um dos problemas sociais que a mera alusão a possibilidade de implementação da obra tem gerado (aumento dos aluguéis), desencadeou processo popular de mobilização que ao mesmo tempo que procura ocupar áreas desabitadas da cidade também procura pressionar o poder público para que resolva a demanda habitacional gerada por este "estrangeiro" maior chamado UHE Belo Monte, que não pediu licença para entrar nas vidas dessas pessoas, e que agora precisa saber lidar com as demandas que não previu (ou que previu de forma minimizada), como as ligadas à moradia.

Sobre o assunto, também consultar:







quinta-feira, 12 de maio de 2011

Notícias do Front (ou da Fronteira)

Por Assis Oliveira

Eis uma constatação: onde há grandes projetos o Estado só existe transmutado no empreendedor privado que passa a assumir as obrigações públicas.


Protesto contra emissão de licença prévia à NESA

Na região do rio Xingu/PA, por exemplo, a história da relação do Estado – e, de modo mais específico, do governo federal – com os povos e territórios locais foi sempre se interessar pelos últimos somente quando há interesse de benefício “nacional” na relação. Se remontarmos à época do boom da borracha, passando pelas políticas de migração e chegando até a égide dos grandes projetos agro-mineradores e hidrelétricos, tudo indica que este cantinho a sudoeste do Pará não tem outro (fatídico) destino senão o de se desenvolver a custas dos lucros (ou recursos naturais) que dele possa se remover/transferir para outras paragens, mais ao Norte no contexto internacional (vide a expansão do comércio de commodities com a China, por exemplo) e mais ao Sul no contexto nacional (sendo o encaixe geopolítico no Plano de Aceleração do Crescimento, vulgo PAC, de Lula-Dilma, a principal política de investimento continuado no setor de infra-estrutura e agronegócio para a região).

Pois bem, no âmbito das disputas político-jurídicas envolvendo o projeto de construção da UHE Belo Monte, houve, com a emissão da licença prévia ambiental, a estruturação de 66 condicionantes, sendo 40 IBAMA e 26 da FUNAI, que devem ser cumpridas – ou deveriam, pois mesmo não havendo cumprimento efetivo de todas isso não barrou a emissão da licença parcial de instalação, como bem informamos em outra postagem – pelo empreendendo privado que ganhou a licitação para construção da obra, então conhecido inicialmente como Consórcio Belo Monte, mas como na região Norte a idéia de consórcio está (quase) sempre ligada aos grupos de extermínio de trabalhadores e trabalhadoras do campo e da cidade, financiados pela elite política/agrária/comunicacional regional, o simbolismo do nome foi mudado para Norte Energia S.A., mais conhecido por NESA.

Quero aqui me reportar ao conteúdo de algumas das condicionantes que devem ser atendidas pela NESA: (a) “incluir entre as ações antecipatórias: (i) início da construção e reforma de equipamentos de educação/saúde, nos casos dos sítios de construção com sede em Altamira e Vitória do Xingu”; (ii) “início das obras de saneamento básico em Altamira e Vitória do Xingu; (iii) implantação de saneamento básico em Belo Monte e Belo Monte do Pontal antes da construção dos alojamentos”; (b) “Áreas de Preservação Permanente (APP’s) para os reservatórios do Xingu e dos Canais (500m)”; (c) “Garantir a manutenção das praias no rio Xingu e a reprodução de quelônios”; (d) “Plano de fiscalização e vigilância emergencial para todas as terras indígenas (da região direta ou indiretamente impactada pela obra)”; (e) “melhoria da estrutura (com apoio financeiro e de equipe técnica adequada), da FUNAI, para gestão e controle ambiental e territorial da região.”

Como se percebe, caberá ao empreendedor privado disponibilizar recursos financeiros e elaborar políticas sociais voltadas para a educação, a saúde, o saneamento básico, a preservação ambiental, a segurança de terras indígenas e a estruturação de órgão indigenista governamental, tudo o que seria de competência do Estado brasileiro, e que historicamente esteve ausente nessa região amazônica, virá agora travestida de privatização dos direitos sociais básicos e com extrema dependência do capital privado para manutenção ao longo do período em que estiver vigente a concessão, é dizer, nos próximos 35 anos.


Rio Xingu, numa de suas paisagens ameaçadas

Levando-se em conta o fato de mais de 70% dos recursos financeiros da NESA serem provenientes do repasse do BNDS, ou seja, de dinheiro público obtido com os impostos pagos pelos cidadãos, e que a maior parte das empresas privadas que compõe o consórcio – Queiroz, Mendes Júnior, J. Malucelli Construtora, Serveng, entre outras – desembolsou milhões de reais para financiar a campanha para eleição da atual presidenta do país, Dilma Roussef, constata-se a troca de favores e a privatização de dinheiro público que envolve todo o processo de disputa pela implementação da UHE Belo Monte.

Durante o I Sarau de Poéticas e Direitos Humanos, evento organizado pela Assessoria Interdisciplinar e Intercultural em Direitos Humanos, tivemos a oportunidade de debate questões ligadas aos grandes projetos na Amazônia, e particularmente a UHE Belo Monte, por meio da mostra documentários cinematográficos produzidos pelo cineasta Andrea Rossi, com a realização de debates que trouxeram a tona falas significativas – lembrando Paulo Freire – de lideranças indígenas e de movimentos sociais que servem para refletirmos:
  • Será que tem que ter a barragem para que a região se desenvolva: questionamento que desmonta e desvela a visão utilitarista, reproduzida pelos seguidos governos federais brasileiros, que atribui ao território amazônico possibilidade de investimento para desenvolvimento a)social somente no caso de despertar algum interesse de usufruto nacional ou internacional, pouco levando em conta os interesses locais, sobretudo de povos e comunidades tradicionais.
  • Condicionante é obrigação do governo, e não dever do empreendedor: o que resume o questionamento provocativo de qual o papel do Estado nos cenários dos grandes projetos.
  • Meu pai matou um tamanduá-bandeira e o IBAMA multou para pagar por isso. E agora, que eles [NESA], vão matar milhares de bichos e plantas, eles vão pagar?: emblemática reflexão sobre qual indenização/reparação é possível quando se trata de milhares de vidas animais, vegetais e humanas que serão intensamente impactadas, seja com a morte por inundação ou a mudança crítica dos modos de vida.

Confira também: