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domingo, 9 de setembro de 2012

As ninguéns e a prisão por nada



                                               
Sueli, Vânia e Maria Aparecida, três mulheres pobres, pele escura ou parda, desempregadas que, a despeito de suas trajetórias individuais, protagonizam um triste episódio comum em suas vidas: o encarceramento pelo furto de bens irrelevantes ou tabelados com valores de pouca monta, ação delituosa alcançada pelo princípio da insignificância (ou bagatela), há muito consagrado pelo Direito Penal brasileiro.

Em seus históricos, casos banais da prática delinquente não violenta, pouco ou nada atentória ao patrimônio de outrem, e a restrição de suas liberdades em regimes fechados.  Maria Aparecida, por exemplo, carrega no próprio corpo a marca de seu cárcere e a prova cabal da total ineficiência do sistema prisional de nosso país, assim como a distorção de qualquer mínima concepção do que seja ressocialização de seres humanos: ela perdeu a visão do olho direito, após ‘silenciosas’ torturas e tratamentos degradantes durante sua prisão de um ano e alguns meses, por furto de um xampu e um condicionador calculados no valor de 24 reais.

Seria reconfortante, em que pese a lamentável história de vida dessas mulheres, saber que esses são casos isolados desse tipo de violência perpetrada por agentes do Estado Penal Máximo, sob cuja égide vivemos. Mas não são. Ao contrário, são a tônica de um sistema maquinalmente pensado, articulado e com funcionalidade a pleno vapor que tem por intuito a exclusão de populações pobres urbanas da participação de uma vida social ‘saudável’.

O Estado Democrático de Direito encontra um de seus maiores simulacros nos sistemas de Justiça criminais, onde, embora lance mão de técnicas hermenêuticas e dogmáticas para a defesa de indiciados/as sob a perspectiva da não restauração de estado de exceção, carrega em seu espírito o fundamento da pena (ou penitência) como prática pedagógica de ressocialização de indivíduos ‘desviantes’, bem como se utiliza de tal compreensão como verdadeira arma em uma política de trancafiamento de grupos seletos em uma sociedade desigual.

Assim, se por um lado estabelece-se que é indispensável um juízo proporcional entre a lesividade ao bem jurídico e a drasticidade da pena que se pretende aplicar ao ato antijurídico (principio da bagatela/proporcionalidade), por outro lado, e na prática, arrastam-se aos confins das cadeias (desumanas e degradantes), indivíduos que, sem uso de força, violência ou grave ameaça, se apropriam de queijinhos, xampus, leite e outros bens dessa relevância material. Se de uma banda, prevê-se o livramento para pessoas que não representam ameaça à segurança da sociedade, de outra, aprisiona-se e mantém em regime fechado mulheres cujo delito se resume a subtração de bens com valores irrisórios, que nada ofendem o patrimônio alheio e que, portanto não podem configurar risco de dano ao corpo social. Não seria exagero aproximar a atuação estatal nesses casos às execuções sumárias próprias dos regimes autoritários.

Tratar a prática do furto de bagatelas como espetáculo de uma sociedade punitiva e incriminadora é, frise-se, trazer para a tutela ineficiente e precária do sistema carcerário brasileiro seres pertencentes às classes populares que, desamparados por um Estado Social, terminam por cair nas garras de um Estado Penal, cuja função política se consubstancia, infalivelmente, na guerra e no extermínio à/da pobreza.

Entretanto, não basta ser pobre. Tem de ser mulher e, geralmente, negra ou parda. Aqui não há coincidências e sim convergências. As três personagens do filme da vida real em comento são pessoas do sexo feminino, histórica e socialmente excluídas do gozo de direitos mínimos e herdeiras de um legado patriarcal ainda vigente que determina, de forma padrão, seu lugar e conduta por serem, simplesmente, mulheres. As massas urbanas pobres e/ou faveladas têm na figura da mulher negra a sua identidade majoritária, fenômeno social explicado pelo processo de feminização da mão de obra precarizada e, por consequência, da pobreza. Dentre as principais razões para tal fenômeno, estão: a desvalorização e não remuneração do trabalho doméstico; a baixa escolaridade feminina derivada da dupla/tripla jornada de trabalho - que lhes impossibilita o acesso e permanência às/nas escolas - e o crescimento vertiginoso de famílias monoparentais de baixa renda sob a chefia de mulheres, onde grande parte delas desempenha atividades informais ou precárias, não deixando de mencionar as que se encontram desempregadas.

Diante desse quadro, como não reconhecer o estado de necessidade (em um sentido político e social) dessas mulheres que, como Sueli, cogita a possibilidade de voltar a furtar na falta de condições para comprar o leite do neto recém-nascido? Condenam-se à morte social, por meio das prisões, vidas humanas exploradas, negligenciadas e marginalizadas, em um esforço perverso de eliminação do que é feio, sujo e aviltante à ordem neoliberal. Não servem para o trabalho nem têm poder de compra, no entanto, são pessoas que tem seu desejo de posse moldado, estimulado e alimentado pela lógica do consumo. Some-se a isso, a apropriação capitalista dos valores machistas, que faz mulheres sonharem com corpos e cabelos perfeitos, tratados pelos produtos oferecidos pela indústria da estética. Furtar da drogaria um xampu ou um creme que se sabe não ter condições de adquirir torna-se um sintoma irrefutável da máquina de ilusões lubrificada a crime e castigo pelo sistema político-econômico posto.

São mulheres desejantes impedidas de desejar, fruto de sua contemporaneidade nefasta e injusta, revestida de uma pretensa moralidade imposta pela criminalização de condutas mais realizadas por componentes das classes marginalizadas, como consequência de sua condição social e humana. São alcançadas tão somente pelos braços fortes e repressores do Estado, que materializa em seu sistema criminal, integralmente, sua carga valorativa machista na medida em que pune não apenas pessoas desviantes, mas mulheres pobres, que deveriam estar zelando pela proteção e manutenção dos bons costumes da família e que, ao contrário, ousaram ocupar o espaço da rua onde coexiste a criminalidade. Seus estigmas multifacetados lhes valem uma vida pós-cárcere de miséria e condenação social perpétua, rendendo-lhes maiores obstáculos a qualquer tentativa de emancipação.

Essas são mulheres encarceradas por furto de coisa alguma, como mostra o Documentário Bagatela.

Por Juliana de Andrade.

Linque para o documentário: http://vimeo.com/46332547 

sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

Porque ser feminista



Começo essas linhas por um título sem pontuação. Sem saber se a oração acima se trata de uma afirmação necessária, implicada no mundo, ou de uma indagação constante que me atravessa, cá em um dos exercícios indispensáveis à pretensão de horizontalidade – a autocrítica - venho repensando quais as razões determinantes pra me auto-afirmar enquanto defensora dos direitos das mulheres. É imensurável a importância do feminismo na minha vida, como mulher, como indivíduo que direta ou indiretamente já foi e é ainda afetado pela vigência dos padrões hegemônicos de subjugação do feminino. Mas concluo que as razões estão além. Estão no outro. Na verdade, em outras, tão gente/mulheres quanto eu.

E essa conclusão vem fácil. Ganha corpo no simples estar viva no mundo e se permitir olhar pros lados. Não consigo mais empreender um passo que seja nas ruas sem observar os movimentos das pessoas, suas manifestações, perfeitamente encaixadas na dinâmica social excludente que nos é sobreposta. Explico-me. Na última segunda feira, dia 12, quando assistia à mesa redonda que deu início à V Semana Social Brasileira, com debate sobre participação popular na construção do Estado Democrático e sobre a Campanha em defesa das Terras, Águas e Povos do Piauí, debate esse conduzido por duas aguerridas professoras piauienses, diga-se de passagem, não pude deixar de observar a quantidade de mulheres que daquele espaço tomavam assento, como expectadoras. Eram trabalhadoras rurais do assentamento Salitre Chileno I, que há cinco anos ocupa uma propriedade privada localizada no km 25 da BR 316, entre Teresina e Demerval Lobão, região da Grande Teresina, em condições subumanas de existência. Faziam-se presentes para mais uma luta travada em nome de direitos que provavelmente sequer conheçam o nome, mas primariamente a necessidade. Eram muitas: senhoras e jovens, as primeiras pensando no bem estar dos filhos adultos e netos, as segundas, acompanhadas de seus rebentos. Sabem-se lá quantos afazeres domésticos deixaram para trás a fim de ocupar um espaço político tão vital pros dias que ainda estão por nascer.

O que mais me chamou atenção, entretanto, foi o esvaziamento constante do auditório por essas mulheres. Os cuidados com as crianças ou a preocupação com seus esposos lhes tiravam recorrentemente o foco do debate. Estavam ali desde cedo, com sede, com fome. Aos poucos, o ato de hastear a bandeira do movimento, inicialmente em punhos femininos, passou a ser realizado por homens. As vozes entoadas nos gritos de luta já não eram mais tão agudas. O grave masculino tomava de conta. Como não identificar que se trata de clara evidência da exclusão, gradativa ou não, da mulher nos espaços de diálogo, de construção intelectual, de desenvolvimento enquanto individuo político/social?

O que me leva a parir esse texto e observar a gritante necessidade de um olhar mais profundo para as mulheres em uma sociedade patriarcal é que fica uma certeza de estarmos vivendo eternamente em um ciclo de dependência, de submissão e pobreza desses indivíduos. Para mim é fácil falar/pensar/lutar em/por emancipação. Ou pelo menos, é um processo bem menos dificultado do que para essas assentadas ou para tantas outras mulheres em condições precárias de vida. A despeito das críticas, tive acesso aos meios de produção, de vida e à educação formal, ainda que reprodutora de desigualdades. Com todas as suas limitações, foi esse privilégio a mim dado que me permitiu sentar à frente de um notebook, ter acesso às informações de que preciso, escrever essas linhas. Sem contar com toda uma estrutura (que devo admitir) mais do que básica no meu âmbito familiar, que me propicia ter tempo, energia e foco para produzir. Para essas mulheres, sujeitos de uma realidade social distinta da minha, parece impossível expressar-se como o faço agora.

É mais do que poder (a mim concedido, em contraposição ao direito, delas tolhido) de expressão. Eu quero tratar aqui do direito de sonhar e ter meios efetivos de concretizar seus desejos. Quero falar da oportunidade de enxergar um horizonte de transformação, que tenha também como objeto desenhado, além da construção de uma vida com dignidade, a superação de tantas outras desigualdades estruturadas a partir da desigualdade de gênero. Pautas históricas dos movimentos feministas como a legalização do aborto, a liberdade sexual das mulheres, o direito de decisão sobre seus corpos e vidas, a ocupação dos espaços políticos, penso, devem parecer idioma estrangeiro, linguagem indecifrável para essas trabalhadoras e outras tantas companheiras de gênero oriundas das classes populares.

O que chega a doer, tamanha a indignação que causa, é essa determinação tão certa, absoluta, do lugar da mulher na sociedade. Estamos tão submersos nessa compreensão torta de mundo e de vida, tão vendados, que é quase improvável perceber o quanto a lógica dominante nos afeta nas mínimas práticas, nos nossos sentimentos, até no que acabamos por entender por felicidade e realização. Não tenho dúvidas de que essas trabalhadoras encontram suas satisfações servindo à família. Não me atrevo a questionar a certeza da não marginalização e a segurança que mulheres vítimas de violência doméstica devem carregar ao não abandonar o lar, com seus filhos por criar (o lar que, segundo dados recentes, ainda é objeto de posse dos maridos agressores). Essa definição do papel feminino, tão irracionalmente absorvida, é a principal responsável por usurpar de tantas mulheres a chance de construção de um pensamento novo, de politização. Quem pode questionar a ordem se desdobrando entre conquistar o pão dos filhos e seus cuidados?

Pesquisando um pouco mais, me deparo com falas de mulheres que se envolveram com o tráfico no intuito de dar sustento aos filhos, abandonadas que já foram pelos companheiros. Dando um passeio despretensioso no centro comercial da cidade, é impossível não notar como as mulheres dominam os setores de empregabilidade informal, ganhando salários irrisórios. Tomando um ônibus, não consigo deixar de pensar que logo estarei fazendo parte de um diálogo político, com homens e mulheres, planejando o que fazer do futuro, lendo um livro, repensando o mundo e a mim mesma. Mas nesse mesmo ônibus, disputo apertadamente espaço com outras mulheres, tão diferentes de mim, cansadas e de olheiras alarmantes, marcadas pela jornada diária dividida entre trabalho, filhos e marido, prontas para mais uma rotina de trabalho, despreocupadas com maquiagem e saltos altos. Às vezes feridas na pele, pelo homem que amam, outras vezes, feridas na alma, pela vida. Todas, sem perspectivas de emancipação efetiva.

É diante desse quadro e da constatação de que a pobreza, além de cor, também tem gênero, que preciso (e de outro jeito não poderia ser) me entender feminista. Penso, na verdade, que ser feminista deveria ser pressuposto de qualquer pessoa que lute por transformação da realidade posta. Como falar em superação das desigualdades sem, contudo, combater as opressões de gênero que aprofundam o ciclo de exclusão de seres humanos da participação da vida livre, desamarrada?

Chego ao fim desse texto querendo mesmo é fazer uma observação. Ao longo do tempo, pude perceber que as discussões de gênero ainda são tímidas em muitos espaços ocupados por assessores e educadores populares. Não raro, as reações de estranhamento ao tema são bem visíveis. Longe de querer apontar o dedo para as pessoas, entendendo que esse debate é de fato dificultoso, porque mesmo nós, defensores de seres humanos, também somos frutos da cultura política posta, fica aqui o desejo de contribuir, de alguma forma, para o despertar para a importância dessa luta que não é minha só, mas de todos nós, homens e mulheres. Porque ser feminista é uma necessidade. Sem mais interrogações. Ponto final.

domingo, 30 de outubro de 2011

Mulheres encarceradas pelo tráfico: a modernização do arcaico.

O tráfico de drogas vem se constituindo, na visão de estudiosos do tema, como uma economia criminal urbana, gerando, longe do alcance da lei, a comercialização de mercadorias e serviços às trevas da clandestinidade e das regras de “mercado”. Nessa dinâmica, o Estado desenvolve função dúbia, quando por um lado realiza atos coercitivos amparado por seus instrumentos legais penais e por outro, recolhe lucros de práticas de extorsão, corrupção e retenção de excedentes advindos dos vultosos investimentos na segurança dos negócios (como contrabando de armas, por exemplo). Verifica-se que o Estado Brasileiro, em sua ambigüidade funcional, quando do enquadramento de substâncias psicotrópicas à ilegalidade, pune grupos seletos envolvidos com a atividade criminosa e obtém lucro ilícito por meio desses “mercados negros”, mostrando claros interesses da máquina burocrática na manutenção dessa “ordem”.

No tocante a esses grupos a quem a punição é direcionada, a despeito das cifras indizíveis que fomentam esta economia, importante observar que tal atividade, vestida pelo manto da ilegalidade, é conduzida por indivíduos que vem a ser alvo da repressão estabelecida pelas ingerências estatais. Quem são esses indivíduos? Porque se envolvem/envolveram com o tráfico de drogas?

Trata-se de indivíduos pobres, principalmente mulheres - duplamente vulneráveis - que se converteram na principal mão de obra destes procedimentos ilegais. Nos últimos anos, houve intenso recrutamento de mulheres, jovens, a maioria de mães solteiras, para o desempenho de atividades de baixo-escalão na cadeia do tráfico de drogas. Nessa dinâmica, as mulheres raramente ocupam um papel administrativo, concentrando-se nos pólos mais atingíveis, encarregando-se de tarefas mecânicas como embrulhar e armazenar, estabelecendo-se em ambientes mais privados ou assumindo o papel de “mula”, personagem incumbida do transporte de drogas para dentro de presídios ou outros lugares.

Embora a lei de drogas (Nº 11.343/06) estabeleça em seu artigo 33 uma série de atos tipificados como criminosos, são os setores de ação na cadeia do tráfico ocupados por pessoas pobres e, mais diretamente, por mulheres - colocadas na ponta dessas atividades, como reflexo de sua fragilidade econômica e social – os que mais sofrem os efeitos da coerção estatal. Denota-se, assim, que o recrutamento para o tráfico e o encarceramento de mulheres encontram suas convergências sociais, materializando-se em expressão das forças econômicas e das relações patriarcais vigentes em nossos dias.

Importa ressaltar que as situações de vulnerabilidade econômica e social a que as mulheres historicamente estão submetidas são reproduzidas na micro-realidade do tráfico de drogas. A lógica aí desenvolvida é verdadeira vitrine das relações sociais postas, baseadas na centralidade do poder masculino. Não há coincidência no aumento significativo do aprisionamento de mulheres com a intensificação da repressão às drogas, mas uma resultante da divisão sexual do trabalho que reverencia o homem e sua posição social privilegiada e que obriga milhares de mulheres à sujeição a atividades precárias, degradantes e repreensíveis, inclusive do ponto de vista penal.

Isso porque a categorização de uma conduta como crime é uma decisão política, fundamentada pelos interesses dos grupos investidos de poder para tal decisão, visando o extermínio de determinadas pessoas do convívio social. Assim, direito e sistema penais, como instrumentos de controle social, são a materialização dessas decisões políticas, revestindo-se de legitimidade a barbárie derivada do jus puniendi estatal. Frise-se que, ideologicamente, o Estado garantidor da ordem e da paz social precisa dar resultados eficazes da sua atuação. Assim, por meio da polícia, intensifica a repressão às substâncias ilícitas agindo com maior incidência no momento de maior exposição do tráfico: o transporte. Ter-se-ia, assim, respostas concretas e positivas à política de combate às drogas, a “garota-propaganda” da efetividade estatal.

Diante da estreita relação entre machismo/patriarcado e criminalização da pobreza através da ilegalidade atribuída às drogas, visíveis são as raízes criminológicas, históricas e sociais que explicam a natureza de grande porcentagem das mulheres presas, fundadas no machismo reinante e na promiscuidade estatal de comprometimento com o capital sócio-cultural hegemônico.

imagem: muher presa na Penintenciária Feminina de Santana, São Paulo.

sexta-feira, 15 de julho de 2011

Quando a insônia nos obriga a gritar.


“Ostra Feliz não faz pérola”, já diria Rubem Alves em uma de suas metáforas poéticas, metáfora esta que enseja a idéia de que a produção é resultado direto de alguma espécie de sofrimento. O caríssimo autor coloca que sem a dor, ou a infelicidade momentânea, a ostra não dá ao mundo a beleza de sua pérola. Antes de se pretender ser bonito, esse texto é sim fruto direto do sofrimento, físico (que neste instante me acomete) e social, de ser mulher. A idéia aqui é (re)produzir por meio das palavras a indignação.

Essa indignação que grita por se expressar vem também acompanhada pelo desejo de denotar que a dor feminina (moral, psicológica ou física), estrategicamente ocultada da realidade das relações postas e naturalizada pela dinâmica capitalista de resolução imediata para as ocorrências diárias (suprimento lucrativo de demandas), é tão parte de nossas vidas quanto o sol aparecer cada manhã. No entanto, homens e mulheres, vitimizados/moldados pelo machismo, acabam por absorver, inconscientemente, os comandos sócio-culturais de abstração dessas construções históricas. As mulheres silenciam sua dor, por não entendê-la ou enxergá-la como parte do processo de imposição dos valores masculinos, e os homens, herdeiros do legado machista e/ou opressores de carteirinha, desconhecem ou permanecem indiferentes a essa dor.

E aqui faço uma breve explanação de que se trata sim, também, de um processo de vitimização, de homens (isso mesmo!) e mulheres. É preciso ressaltar que o feminismo objetiva atacar e desconstruir o machismo, e não os homens. Não se pode querer combater a desumanidade do preconceito aqui enfatizado com a mesma moeda, desconsiderando a condição humana do homem, que nada mais é que fruto de gerações e gerações de domínio masculino sobre a mulher. É claro que conhecer e, ainda assim, reiterar (ou mesmo se abster de conhecer) como tal domínio encontra respaldo em nossa sociedade é prática agressiva e atentória à nossa dignidade feminina. Mas há que se reconhecer que esta prática amplamente corroborada tem sua matriz cultural, histórica e ideológica nas raízes capitalistas. Com isso quero apenas dizer que, assim como muitas mulheres, embora incorram em condutas machistas, não vislumbram o teor violador de suas ações (por conta da sua naturalização), muitos homens oprimem sem o ânimus de fazê-lo, de forma não deliberada, por ignorarem os efeitos de suas práticas. Assim, é indispensável trazer à tona que a dor é a fiel companheira de nós mulheres e que é possível ser, se não erradicada, pelo menos diminuída, bastando para isso que sejamos enxergadas como seres humanos.

Voltando ao cerne da questão, situação que me motivou a escrever essas linhas de indignação, quero tratar da dor como fonte de lucro ou mercadoria, resultante da ressignificação das conveniências capitalistas, e de seus efeitos no cotidiano feminino. Para tanto, há que se expor a lógica de subjugação e naturalização do corpo da mulher que, na melhor das hipóteses, é força de trabalho que sustenta a economia capitalista, sem o devido reconhecimento, e fonte de deleite e prazer para o indivíduo do sexo masculino, resguardando-se assim, também, o machismo. Para ser mais específica, quero tratar da cólica menstrual por meio de uma indagação crucial: a quem/que serve esta dor pélvica de que porcentagem considerável de nós, mulheres, padece mensalmente?

Para responder essa questão, basta perceber as filas crescentes em clínicas ginecológicas particulares de mulheres desesperadas por um tratamento combativo e eficaz contra este calvário. Ressalto as clínicas particulares por que as públicas, via de acesso (?) de mulheres pobres, teriam pouca demanda deste tipo de reclamação, uma vez que esta epidemia é ainda mais naturalizada entre as camadas populares, devido à negação do acesso à informação de que há reversibilidade para este sofrimento. Sem falar no aumento significativo de campanhas publicitárias de absorventes, analgésicos e até cosméticos, porque é impossível trabalhar ou estudar- e dessa forma, ocupar as ruas, espaço natural do homem - com cara de azedume, facilmente notada pela invasão das olheiras, resultantes das noites mal dormidas, e espinhas, típicas do período menstrual. As indústrias bioquímicas e de produtos de higiene pessoal, além das redes de farmácias e lojas de conveniência, agradecem.

Toda essa análise poderia cair por terra se a cólica menstrual (dismenorréia, primária ou secundária) fosse um processo saudável do organismo feminino. Mas não é. Tive o cuidado de ler um pouco mais a respeito, antes de me indignar verbalmente, e pude constatar que a causa para este mal é eminentemente machista. Explico-me. A mulher desenvolve a dismenorréia primária pelo aumento da produção de prostaglandinas no útero, que promovem contrações uterinas dolorosas. Essas substâncias são mais ligeiramente processadas no corpo feminino como forma de resposta à ansiedade ou estresse, depressão (principalmente se associada com distúrbio alimentar), dificuldade de relacionamentos interpessoais, história familiar, (especialmente se parente de primeiro grau), menarca em idade jovem, entre outros fatores. Vale ressaltar que o aumento considerável de prostaglandinas, ocasionado pelo agravamento das situações antes mencionadas, pode causar lesões no útero, tais como a endometriose, inflamação pélvica, mioma, adenomiose, cistos ovarianos, varizes pélvicas e anormalidades congênitas uterinas e vaginais, causando assim a evolução do quadro clínico da dismenorréia primária para a secundária.

Fácil notar que todas estas situações corriqueiras - potenciais desencadeadoras das dores físicas às quais nós, mulheres, já estamos familiarizadas - estão diretamente relacionadas à posição da mulher na sociedade machista e às expectativas aí geradas. O lugar da mulher é reflexo da divisão social do trabalho, que nos estabelece territórios e responsabilidades próprias. A tripla jornada de trabalho de esposa, mãe e trabalhadora nos condiciona a existência à estrita obediência aos padrões de beleza, aos cuidados com o lar, à sensibilidade (ou fragilidade) nas relações e ao trabalho duro e desgastante, já que os nossos salários ainda são menores que os dos homens (ainda que todos desempenhemos as mesmas funções). Ansiedade, depressão, distúrbios alimentares são apenas capítulos da desumanizante e castradora novela da perfeição, ideal há muito cobrado pelos homens e, impensadamente, reivindicado por nós mulheres. A intensa circulação de livros de auto-ajuda está aí para comprovar isso.

Para complicar ainda mais o quadro da dor física desenvolvida pelas cólicas menstruais, que geralmente não se encerram em si, fazendo-se acompanhar por transtornos gastrointestinais (inclusive com vômitos), dor referida nas costas, nas coxas e cefaléia, não nos esqueçamos de que quando a dor é demasiado intransigente, o rendimento (ou sua falta) no trabalho e nas atividades diárias cai exponencialmente, gerando-nos ainda mais constrangimentos e desconfortos, financeiros e sociais. E como se toda essa porcaria machista até aqui exposta ainda não fosse suficiente, somos obrigadas a suportar piadinhas de estupro, o tolhimento de nossa forma de vestir e agir, o abafamento de nossas falas, a rotulação de nossas práticas e a restrição de cargos políticos a serem ocupados. Só pra efeitos de ilustração de como nosso sofrimento é desmerecido, não faz muito tempo vi tweets de rapazes que afirmavam: “Deu até vontade de menstruar para poder usar esse absorvente da propaganda da Paola Oliveira”. A despeito de toda a beleza livre e jovial (e obviamente idealizada, porque é impossível se sentir nessas condições com todas as pontadas hardcore que as cólicas nos dão) que a propaganda transmite, afirmar tal coisa é nem se dá ao trabalho de se colocar no nosso lugar, e mesmo fazendo-o, é achar que tamanha dor é suportável, irrelevante. Tenha dó!

A minha indignação neste momento que me proponho a concluir este texto fica ainda por conta da minha segunda noite perdida de sono e, conseqüentemente, de toda a bagunça orgânica que sobra pro resto do dia. Sei que esse drama não é exclusividade minha. Como sei também que ainda existe toda uma cultura de terror, implícita e explícita, relacionada à minha liberdade sobre meu corpo. E se por acaso eu quisesse me entupir de anticoncepcionais para aliviar minha dor, mesmo sabendo que eles podem produzir efeitos colaterais, tais como ganho de gordura, estrias, celulites e etc...? E se eu decidisse não mais menstruar, retirando de vez o útero ou os ovários? Não seria essa uma forma precoce de não mais procriar e por tanto não mais colocar no mundo futuras forças de trabalho? Ou pior, não seria lamentável perder entre todas as minhas capacidades, aquela que faz de mim essencialmente mulher: a de ser mãe?

Sem esquecer meu lugar de origem acadêmica nessa história toda, venho da graduação em um campo do conhecimento que nega absurdamente o sexo dos sujeitos de direitos, porque o próprio conceito destes sujeitos ainda tem classe, cor, idade e gênero definidos. Para mim, resta a certeza de que o Direito, fruto do Estado Liberal de alijamento de direitos, nada faria para proteger esta pobre infeliz prostrada, massacrada pela dor (e debruçada sobre o notebook e a revolta incontida) da sarjeta social que o machismo nos impõe.

Mas sim, ainda somos o sexo frágil e merecemos flores e chocolates (que são sempre preferíveis ao sexo) no nosso dia como prêmio de consolação! E no turbilhão das dores, do corpo e da alma, se fez esta pérola: raivosa, sem brilho e áspera, como as marcas que os séculos nos deixam.

Observação: texto parido inicialmente para postagem no “Blogueiras Feministas” e aqui postado para compartilhamento de críticas sobre o Machismo, no Dia Mundial do Homem.

domingo, 3 de julho de 2011

AJP e o resgate de nossa latinidade

por Juliana de Andrade Marreiros

Acabo de assistir ao jogo de abertura da Copa América deste ano, estrelado por Argentina, Bolívia e por muita rivalidade em campo. Impossível não sentir um coração latino-americano bater mais forte diante de tantas emoções colocadas nessa disputa desportiva, que, diga-se de passagem, pretende-se, de forma diplomática, celebrar a confraternização entre as nações através de embates saudáveis. Entretanto, é exatamente na rivalidade e na garra que moram nossas maiores identificações futebolísticas, na medida em que qualquer duelo entre países latino-americanos se torna verdadeiro palco para atuações explosivas, tensas, apaixonadas e patriotas.

Tanta paixão, a despeito de qualquer lugar-comum reproduzido por nós, latinos, e por povos para além Atlântico, é marca registrada de nossa cultura, enquanto povos dominados, escravizados e explorados, relegados ao plano inferior, em termos políticos, geográficos e econômicos. Somos as gentes que tiveram de suportar as dores do colonialismo, da tortura, das inconfidências, da ditadura, do desemprego, da recessão e tivemos (e ainda temos, afinal as amarras ainda permanecem as mesmas) que segurar a barra cotidianamente, pra pôr o pão na mesa, pra abolir a escravidão, pra sobreviver à repressão. Somos sim movidos pela paixão, especialmente pela paixão à vida!

As nossas expressões artísticas revelam muito do caráter emocional e político que nos impulsiona, sem necessariamente afastar o conteúdo racional de suas concepções. Para efeitos de ilustração, várias são as personalidades que se destacam no campo das artes essencialmente latinas, tais como Neruda, Chico Buarque, Garcia Márquez, o cartunista Quino, Machado de Assis, Eduardo Galeano, Tarsila do Amaral (esses são só os que me vêm à mente agora), entre outros tantos nomes proeminentes. Não se pode negar que América Latina contribui com o mundo, marcadamente, através de suas produções artísticas de resistência e denúncia.

Ora, partindo dessas constatações, queda-se inafastável a necessidade de transportar esse arcabouço de valores artísticos e culturais para a luta contra a submissão política e (por que não dizer?) teórica. A transformação da realidade de opressão na qual nós latinos nos circunscrevemos exige não só um acúmulo crítico e reflexivo conjuntural de nossas localidades, mas (e primordialmente) de nossas afetações com o que nos oprime. Essa afetação pode se manifestar de variadas formas, até inconscientemente. Nesse cerne, as culturas populares latinas acabam por reproduzir muito das experiências de exploração e do desejo de superação. Então, antes mesmo de se pensar e se trabalhar em torno da mobilização e da luta coletiva por direitos, é fundamental a identificação dos sujeitos oprimidos com essas manifestações.

Nesse sentido, o sentimento de pertença é peça fundamental no processo de identificação, sentimento este do qual os povos latinos pouco comungam. Não se pretende aqui negar o contexto neoliberal e imperialista ao qual ainda estamos submetidos, mas chamar atenção para a necessidade de resgate do que nos constitui sociedades e indivíduos latinos. É preciso que nos situemos político-historicamente e culturalmente no contexto de América Latina, não só para o entendimento crítico de nossa realidade, como para a construção de uma nova realidade, haja vista que muitas são atrocidades por nós vividas e as práticas insurgentes por nós intentadas que nos aproximam e, portanto, nos identificam.

O futebol terminou se construindo, historicamente, como a expressão máxima de nossas intersecções culturais. Somente nos reconhecemos enquanto América Latina em tempos de Copa Mundial ou de outras competições a nível global. Tanto assim o é que um dos maiores símbolos de insurreição do bloco latino foi a imposição, por meio da raça e do talento flagrante que desempenhamos nos gramados, da inserção de nossas seleções na Copa do Mundo, antes disputada somente pelos países europeus, inventores do futebol. Não obstante, ainda deportamos nossos melhores jogadores para aqueles países, numa clara evidência de que o ciclo de dominação, mesmo no que diz respeito ao futebol, permanece.

Propõe-se, dessa forma, que nos apropriemos de nossa latinidade - tão caracterizada pela subjugação - e a transformemos em instrumento de luta e objeto de reconquista, para que o rompimento do ciclo de rebaixamento de nossa identidade seja possível. Nesse contexto, a AJP pode desenvolver papel estratégico, na medida em que incorpore às suas práticas e discussões as produções latinas peculiares às nossas vivências e caminhada histórica. Se hoje não temos acúmulo suficiente sobre nossos heróis, guerras, vitórias, retrocessos - tampouco sobre os processos de construção de ideologias que fundamentam a manutenção de privilégios que mantém a nós, latinos, às cegas - é porque essa insuficiência é reflexo direto dos esforços capitalistas em nos manter reprimidos e calados. Assim, é função basilar das práticas jurídicas críticas minimamente contribuir para que se faça luz sobre as obscuridades latino-americanas, especialmente no que tange às experiências de mobilização para a superação das camadas populares de suas opressões.

Nesse contexto, urge a construção de um novo sistema jurídico e de teorias para uma nova cultura de direitos eminentemente latina, de produção horizontal e popular, uma vez que o arcabouço jurídico posto e por nós assimilado é mero produto de exportação do capital cultural e jurídico estrangeiros. Aqui, mais uma vez, vislumbra-se a importância da AJP como fomentadora deste debate de consolidação coletiva da nossa identidade latina, quando da sua proposta de sistematização de teorias e experiências críticas afetas à nossa realidade, tais como o pluralismo jurídico, bem como a contribuição de Warat e sua proposta de ruptura das estruturas jurídicas vigentes por meio da carnavalização do direito (teoria que nos sugere a prática jurídica tomada por uma das expressões máximas da cultura brasileira).

Intenta-se, por fim, enfatizar a função incontestável da Assessoria Jurídica Popular de formação política, emancipatória e transformadora a partir do conhecimento e da desmitificação dos processos de exploração e intimidação desumanos (e de seus legados históricos) aos quais os povos latino-americanos encontram-se amarrados, bem como da retomada de sua dignidade política e cultural, por meio da paixão e da fraternidade que faz de nós, latino-americanos, “hermanos” para além do futebol e unidos em torno de nossas utopias, por nós apreendidas como combustíveis de nossa caminhada rumo a outro mundo.