A coluna AJP na Universidade dessa
semana nos traz uma reflexão sobre as relações entre a prática da assessoria
jurídica popular e a pesquisa participante enquanto método utilizado nessa
atuação, pautando também alguns cuidados que devem ser tomados durante a
intervenção dos assessores populares. A autora, Anna Carolina Lucca Sandri,
graduanda em direito pela UFPR e integrante do MAJUP Isabel da Silva, produziu
o texto especialmente para a disciplina tópica “Assessoria Jurídica Popular”.
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Pesquisa participante como método utilizado
pela Assessoria Jurídica Popular na percepção dos temas-geradores
Anna Carolina Lucca Sandri
Na atuação com a comunidade é fundamental a percepção do tema gerador, pois significa abordar uma temática que sensibilize e mobilize a comunidade. Porém, isso é algo muito complexo, pois implica perceber as “situações-limites” que são momentos da realidade daquelas pessoas que aparecem como obstáculos insuperáveis, porém, é necessário que os homens e as mulheres as percebam e ultrapassem para alcançar o “inédito viável”, ou seja, alcancem a possibilidade de libertação, que ainda não é realidade, mas pode se tornar realidade. É importante considerar que é pressuposto na descoberta de temas geradores que se considera a mulher e o homem como seres capazes de transformar o mundo, transformarem a si mesmo, libertando-se das opressões que sofrem. Ou seja, é essencial acreditam que as pessoas podem se libertar, sendo que os oprimidos são responsáveis pela sua própria libertação. Sob essa perspectiva, é fundamental pensar que para uma proposta de pesquisa libertadora participante é importante que a comunidade pesquisada também seja um participante ativo, na busca por identificar seus próprios problemas. Sendo também fundamental que tenha por objetivo a superação dos problemas que a comunidade enfrenta. Seria estabelecido determinado tema gerador a ser trabalhado com a comunidade, se eventualmente fosse resolvido, poderia conduzir ao desdobramento em outros temas-geradores, que por sua vez seriam investigados e conduzidos a uma nova intervenção na realidade. Na pesquisa participante, a comunidade também decide sobre como será a pesquisa, e sendo que seu objetivo é auxiliar no seu processo de libertação. Muito diferente de outros métodos de pesquisa, que o pesquisador vai até a comunidade, faz seu trabalho e a comunidade não tem nenhum retorno. A pesquisa participante é realizada também através de conversas em grupo com os moradores, em que são apontados os problemas que consideram mais presente. Ou seja, a partir daí pode surgir o tema gerador que provavelmente seria o problema que a comunidade sente como mais latente, e que com maior chance de mobilizar as pessoas. A pesquisa-ação também requer um estudo preliminar do lugar, das condições socioeconômicas o que é essencial para inserir as condições concretas da comunidade, em uma perspectiva de totalidade, ou seja, ver que a comunidade é influenciada por muitos fatores “externos” a ela, como situação econômica, conjuntura de mobilizações nacional. Também permite analisar a conjuntura da comunidade, as forças políticas que atuam ali, o grau de mobilização, o que permite pensar em atuar estrategicamente em como atuar na comunidade, considerar qual a melhor tática para a comunidade enfrentar seu problema. Isso é essencial para as ajupianas e os ajupianos, pois enfatiza a necessidade de uma atuação responsável, com um propósito definido, e que perceba que a intervenção na comunidade deve ser algo pensado cuidadosamente e pode ter um profundo impacto.
Depois de muito tempo
sem escrever neste blogue, retorno trazendo o relato das atividades
que estamos desenvolvendo aqui no Planalto Central, a partir da
Assessoria Jurídica Universitária Popular (AJUP) Roberto Lyra
Filho.
Nossa AJUP pode ser
considerada uma feliz convergência, começando por seu nome, que
congrega a sigla da experiência de Pressburguer e Baldez no RJ
(AJUP) com o nome daquele que é talvez a maior referência do
pensamento jurídico crítico no Brasil, Roberto Lyra Filho, prata da
casa, da Universidade de Brasília (UnB).
A AJUP é também a
convergência de um grupo de advoga@s
populares que, desde o final de 2011, passou a se organizar para
atuar voluntária e coletivamente na defesa jurídica de movimentos
sociais no Distrito Federal. Tudo começou com o apoio ao acampamento
Gildo Rocha, do Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST), passou
pelo acampamento 8 de Março do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), e também acompanhou casos de despejos na Cidade
Estrutural (região administrativa que cresceu em torno do Lixão de
Brasília) e a luta dos índios Fulniô-Tapuya contra a destruição
do seu Santuário dos Pajés pelo capital imobiliário, em virtude da
construção do chamado “Setor Noroeste”.
No início as
dificuldades foram imensas, tendo em vista por vezes a nossa
inexperiência, mas especialmente a falta de organização. Com o
tempo, foi possível estreitar contatos e atuar de forma preventiva,
antecipando conflitos que se avizinhavam. No entanto, a falta de um
apoio institucional e a falta de contato com os estudantes da UnB
gerava dúvidas sobre a continuidade dos trabalhos. Outro problema
identificado era que a atuação se restringia à advocacia popular,
sem congregar atividades de educação popular, e que ainda por cima
assumia muitas vezes uma perspectiva imediatista, “apagando
os incêndios” dos conflitos cotidianos.
Felizmente, foi posível
congregar um grupo de estudantes da Faculdade de Direito da UnB e de
outros cursos jurídicos de Brasília, e, com o apoio do professor
José Geraldo de Sousa Júnior, coordenador da AJUP, foi possível a
sua formalização no Decanato de Extensão da UnB como Projeto de
Extensão de Ação Contínua (PEAC). Com isso foi possível obter
apoios na forma de bolsas e fomentos, impulsionados ainda pelo apoio
do Núcleo de Prática Jurídica (NPJ), no qual o projeto possui
atualmente um espaço para sua organização.
A assessoria jurídica
popular era até então relativamente desconhecida na FD-UnB, cuja
trajetória é forte na construção de projetos de extensão que
atuam na educação popular em direitos humanos, sempre sob a
perspectiva do Direito Achado na Rua, mas sem maior experiência no
campo da advocacia popular (a maior experiência nesse sentido havia ocorrido no caso da Vila Telebrasília, no início dos anos 1990). A AJUP veio portanto para se somar às
iniciativas de extensão popular, com o diferencial de buscar
articular 3 eixos de atuação: (i) advocacia popular; (ii) educação
popular; e (iii) fortalecimento político dos movimentos populares.
A advocacia popular é
entendida não apenas como a atuação jurídica perante o Poder
Judiciário, mas também como assessoria técnica aos movimentos
populares nas negociações que ocorrem cotidianamente com o Poder
Executivo, no acompanhamento de projetos de lei em tramitação no
Poder Legislativo, na promoção de debates com outros agentes do
sistema de justiça (Defensoria Pública, Ministério Público etc),
e muitas outras atividades que surgem no cotidiano da atuação.
Já a educação
popular é vista como o meio para a construção do diálogo com o
movimento popular, desde as lideranças até as suas bases, buscando
socializar as informações geralmente “codificadas” pela
linguagem jurídica e por todos os seus aspectos técnicos. Trata-se
de um trabalho de tradução, além de uma atividade de
pesquisa-ação, já que, na interação com a comunidade, é
possível extrair, junto com ela, os principais problemas enfrentados
no cotidiano da luta política e social.
O fortalecimento dos
movimentos populares é promovido pelas atividades de advocacia e de
educação popular, compreendendo que o papel d@
assessor@ jurídic@ popular não é o de liderar ou organizar @s trabalhador@s,
mas contribuir para processos autônomos de organização popular,
fortalecendo os movimentos já organizados, inclusive com a inserção
de novas pessoas e de novas comunidades nessas organizações. Não
há, portanto, uma dicotomia entre atuação na comunidade e atuação
no movimento social, mas uma necessária articulação entre ambos os
aspectos.
Talvez um dos maiores
desafios enfrentados atualmente pela AJUP seja a construção de um
equilíbrio dialético entre seus 3 pilares, já que não há na
verdade uma separação estanque entre eles. Na prática, foi
possível compreender o quão pedagógica pode ser uma luta política,
motivo pelo qual a atividade de advocacia popular, quando impulsiona
essa luta, pode ser considerada também uma atividade pedagógica (exemplo disso pode ser encontrado no video abaixo).
Por outro lado, a advocacia permite a construção de laços de
confiança com os movimentos populares, tornando os contatos e as
atividades de educação popular mais propícias ao debate franco
entretrabalhador@s
e integrantes do projeto.
Atualmente, a AJUP está
organizada em 3 frentes de atuação. Uma frente atua com o MTST;
outra com os movimentos que compõem a Via Campesina; e a terceira com @s catador@s
de materiais recicláveis da Cidade Estrutural e também com o
Movimento Popular por uma Ceilândia Melhor (MOPOCEM). Não há
portanto uma organização interna do projeto com base nos chamados
“ramos jurídicos”, mas sim a partir dos movimentos sociais
concretos com os quais o grupo se propôs a atuar. Assim, @s
integrantes de cada frente buscam construir relações orgânicas de
confiança com as organizações populares, propondo-se a
assessorá-las nos temas considerados problemáticos e sobre os quais
a AJUP pode dar contribuições efetivas.
O fato de ter em todas
as frentes a congregação de advogad@s
e estudantes, não apenas do Direito mas de diversos outros cursos
(Psicologia, Comunicação Social, Ciência Política etc), faz com
que a AJUP tenha uma atuação diferenciada. Não seria exagero dizer
que o projeto é pioneiro nesse sentido, considerando o modo de
atuação dos demais projetos e programas de AJP atualmente
existentes no país, pois supera na prática a velha dicotomia entre "assessoria X assistência". Não à toa, em menos de 5 meses de criação, a
AJUP já havia se tornado uma importante referência junto aos
movimentos populares do DF.
Os desafios colocados
para a AJUP hoje são inúmeros e imensos. Construir novos estatutos
jurídicos de forma democrática e dialogada com @s catador@s
de material reciclável, enfrentando o interesse de atravessadores
locais e das grandes empresas do setor; pressionar junto com o movimento sem-teto o Poder
Legislativo distrital pela aprovação de projeto de lei que
impulsione a construção de moradias populares; pressionar o Poder
Executivo distrital e federal a destravar a reforma agrária junto com a Via Campesina; ampliar
o número de estudantes, sobretudo de outros cursos, nas frentes do
projeto; construir novas frentes de atuação que dêem conta de
outras demandas atualmente não contempladas (como nas áreas de
saúde, educação, transporte, trabalho etc); construir uma política
de comunicação interna no projeto e de divulgação mais efetiva
aos eventuais interessados...
Essas são apenas
algumas das tarefas e dos desafios colocados para o próximo período,
que devem estar necessariamente vinculados à atividade de
pesquisa-ação, para a qual a construção do Instituto de Pesquisa,Direitos e Movimentos Sociais (IPDMS) poderá prestar uma
contribuição fundamental.
Estivesse vivo hoje,
Roberto certamente estaria feliz e empolgado com o futuro da AJUP que
leva seu nome. Vida longa à AJUP Roberto Lyra Filho!