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domingo, 10 de julho de 2011

Sánchez Vázquez: renovação marxista, utopia e estética


Si el árbol de la sangre se secara
y el corazón, ya seco y sin latido,
fuera polvo total, norte abolido
que nadie en este mundo recordara;

si el alma sin soporte se quedara
y la tierra, materia del olvido,
de muertos se cubriera y lo podrido
en un bosque de heridas germinara;

si el crimen no tuviera más oficio
que escarbar en la tierra desolada
para dejar al mundo su simiente,

la dulce brisa, el leve precipicio
tornaríanse, al fin, en cuchillada
o en abismo mortal para tu frente.

(Sentencia, de Adolfo Sánchez Vázquez)

Na última hora, resolvi mudar o tema desta postagem. Como sabem nossos leitores, aos domingos, quinzenalmente, a Coluna Prestes aparece discutindo política, filosofia, direito, antropologia ou arte. Neste domingo não poderia ser diferente, mas fui pego de surpresa: o falecimento de Sánchez Vázquez.


Em 1994, o cubano-alemão Raúl Fornet-Betancourt trouxe a público um grande ensaio que tinha por objetivo passar a limpo e em linhas gerais “O marxismo na América Latina”. Seguindo o caminho da marxologia, Fornet-Betancourt nos proporcionou uma visão panorâmica da recepção da teoria marxista em nossa América, estabelecendo as grandes fases do seu desenvolvimento entre nós. Desde o impacto do pensamento utópico e dos primeiros influxos do marxismo no século XIX até a revolução cubana de 1959, o autor se dedicou a assinalar os grandes pensadores do marxismo latino-americano e, para a fase pós-1959, resolveu destacar quatro grandes teóricos, dentre eles Adolfo Sánchez Vázquez.

Ernesto Che Guevara, Juan David García Bacca, Adolfo Sánchez Vázquez e Enrique Dussel são considerados, assim, do resgate criativo do marxismo na América Latina, na melhor tradição iniciada por Mariátegui, ainda na década de 1920. Depois do falecimento de “El Amauta” – o sábio, como ficaria conhecido o peruano José Carlos Mariátegui – o continente teria assistido a uma profunda estagnação do pensamento marxista e só viria a se renovar com o período quente das revoluções cubana e nicaragüense, para não falar no episódio chileno, a partir das quais se forjaria uma arejada e consistente produção teórica inspirada no pensamento de Marx.

Neste contexto, Sánchez Vázquez é uma figura ímpar. Tendo nascido em Cádiz, em 1915, literalmente vivenciaria a guerra civil espanhola, na qual cerrara fileiras contra o ditador Franco e, com a derrota das forças resistentes, se exilaria no México onde arquitetaria sua trajetória de intelectual crítico e engajado.

Justamente no correr da década de 1960 é que Sánchez Vázquez executaria uma virada crítica em sua interpretação marxista da realidade, guinada esta que culminaria com sua obra clássica, inclusive no Brasil, intitulada “Filosofia da práxis”. Contumaz crítico da “esclerose e dogmatismo” que o “movimento comunista mundial” seguia – como se refere nos prólogos deste seu livro –, sua tese central ficou assim esculpida: “o marxismo é, acima de tudo, uma filosofia da práxis e não uma nova práxis da filosofia”. Quer dizer, para ele, “a constituição do marxismo como ciência diante da ideologia ou da utopia é, certamente, fundamental, mas só se explica por seu caráter prático; isto é, só a partir da, na e pela práxis”.

Isto demonstra a força de seu pensamento, renovando sem trair, o espírito mais profundo das teses revolucionárias que Marx e Engels proporcionaram ao movimento dos trabalhadores para mudar, agora e mais que nunca, o mundo. A práxis é seu grande legado. Sánchez Vázquez, para consolidar tal herança, dialoga com os predecessores de Marx e seus continuadores: Hegel, Feuerbach e Lênin são os preferidos quanto ao problema da “práxis”.

No entanto, a tese central de sua obra maior também é um diálogo crítico com Althusser, a quem dedica mesmo um livro, chamado “Ciência e revolução”, e cujo resultado é encontrar “dois Althusser” e valorizar aquele que encontra na práxis a síntese histórica para o marxismo e seu caráter revolucionário.

Sánchez Vázquez, contudo, foi um ícone do marxismo latino-americano porque o abriu para a renovação e duas são as marcas deste arejo: a estética e a utopia. Dedicando-se à estética, em obras como “As idéias estéticas de Marx” ou “Convite à estética”, tomou-lhe o seu quinhão prático e o historicizou na vida dos homens. O belo, o sublime e o cômico, ou seus contrários, são reais, antes que ideais, ainda que ambos possam construir uma relação potente. Talvez aí resida sua conexão moral, desenvolvida pelo pensador em um livro dos mais divulgados no Brasil, “Ética”, em que caracteriza a especificidade deste campo.

Pelo lado da utopia, realizou pujante profecia: a utopia resiste e seu caráter socialista é um dever-ser para homens e mulheres que queiram construir um novo mundo. Dessa forma, a utopia socialista permanece “não só porque continua sendo necessária, desejável, possível e realizável, embora não inevitável, como também porque, dado seu conteúdo moral de justiça, dignidade, liberdade e igualdade, esta utopia – seja ou não no futuro – deve ser”. Este é o arrebatador fechamento do livro que compila vários de seus artigos e que recebeu o nome de “Entre a realidade e a utopia”.


Daí o resgate do “Valor do socialismo”, título de um de seus últimos livros publicados em português, que se reencaminha para o devir utópico, com a força criativa da realidade latino-americana, e que se apresenta como alternativa atual e necessidade histórica para superar a contínua barbárie do capital.



Sánchez Vázquez e o direito


Devido à natureza deste nosso blogue, não poderia passar em branco pelos dois momentos em que Sánchez Vázquez toca a problemática do “direito”. Ao teorizar sobre a ciência da moral – na “Ética” – o autor fixa os limites desta com o âmbito jurídico: “a moral e o direito possuem elementos comuns e mostram, por sua vez, diferenças essenciais, mas estas relações, que ao mesmo tempo possuem um caráter histórico, baseiam-se na natureza do direito como comportamento humano sancionado pelo estado e na natureza moral como comportamento que não exige esta sanção estatal e se apóia exclusivamente na autoridade da comunidade, expressa em normas e acatada voluntariamente”.

Sem dúvida, nada de novo em relação a qualquer manual de introdução ao direito, não fosse o fundo marxista que fundamenta a asserção. Quando apresenta, igualmente, a fronteira entre moral e política, Sánchez Vázquez é sensivelmente lúcido: “numa sociedade superior, suas relações devem caracterizar-se por sua concordância, sem abdicar do seu âmbito respectivo”. Ora, em uma sociedade superior, a comunista ou até mesmo a socialista, pode não haver estado mas haverá política, pode não haver direito mas haverá parâmetros morais. Esta simples exposição desfaz vários nós – mormente os preconceituosos – contra o marxismo como filosofia da práxis que possa dar conta de uma realidade social sem os obstáculos estruturais e superestruturais erigidos pelo modo de produção capitalista. Mas, é claro, a especificidade desta nova realidade social não tem balizas perfeitas ainda, mas é coerente, diz-nos Sánchez Vázquez, pensá-las.

Interessante ainda é notar que o marxista espanhol-mexicano, em 1976, elaborou um pequeno estudo que serviu de prefácio à obra “Teoria geral do direito e marxismo” de Pachucânis, que recebeu o título de “O direito na transição ao socialismo”. Texto publicado pela editora Expressão Popular no livro já citado “O valor do socialismo”, resgata o jurista soviético e põe os pingos-nos-is da crítica jurídica: sem resolvermos o debate da Rússia revolucionária quanto ao direito, protagonizada pelo Comissariado do Povo para a Justiça, não daremos passos autoconscientes em nossa alternatividade, pluralidade e insurgência, pois é como sacramenta Sánchez Vázquez: “a obra de Pashukanis continua tendo uma vitalidade que justifica colocá-la no centro de nossa atenção para avaliar seus méritos e seus defeitos e limitações”, ou seja, “não se pretende torná-los objeto de uma nova sacralização ou demonização, mas pura e simplesmente colocá-los em seu lugar, do qual nunca deveriam ter saído, como objetos de serena reflexão e de crítica fundada”.

Eis que o falecimento de Adolfo Sánchez Vázquez, aos 95 anos, na manhã da sexta-feira, dia 08 de julho de 2011, deixa uma grande lacuna para o marxismo criativo e crítico do continente, porém é um depoimento histórico de que podemos, e devemos, seguir na construção de uma nova realidade social a partir de uma teoria irredenta, sensível e utopicamente possível!


Conferir:

quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

Com tristeza, Luis, adeus!


"Lamentamos informar que Luis Alberto Warat no está más con nosotros" (16/12/2010).

Assim se inicia a postagem do blogue de WARAT, nesta quinta-feira. E, praticamente, é assim que termina. Creio seja o suficiente.

Falece um dos maiores teóricos críticos do direito que o Brasil pôde conhecer. Muito polêmico e contraditório, o argentino exilado no Brasil por conta da repressão em seu país tornou-se, junto a nomes como o de Roberto Lira Filho ou Luiz Fernando Coelho, pioneiro do pensamento jurídico crítico entre nós. Só por isso, vale a lembrança desta figura que a tantos foi capaz de influenciar, sendo seu legado de ludicidade para o direito bastante inspirador ainda hoje.

A partir do final da tarde, todas as listas de grupos virtuais se estremeceram, com as mensagens acerca do falecimento do cronópio-Vará. Para fazer ressoar estas mensagens, reproduzamo-las aqui no blogue, afinal incontáveis são os assessores jurídicos populares envolvidos pelo pensamento varatiano:

Leopoldo Fidyka, às 17:57 h.

Queridos amigos/as:


Algunos ya sabian que Luis no está bien de salud los últimos días, pero lamento comunicar esta noticia: Luis ya no está más con nosotros, hoy hace muy pocas horas murió, partió y nos seguirá acompañando desde otro lado.

Sus restos serán velados hoy jueves 16 a partir de las 19 hs y hasta mañana, en la calle Malabia 1662 (Palermo) Buenos Aires. Por favor avisen a todas las personas que consideren oportuno que sepa esta noticia. Pondré información en el blog

Un abrazo enorme,

Leopoldo


Wilson Levy, às 17:46 h.

Prezados,

Escrevo para informá-los que faleceu hoje o Prof. Luis Alberto Warat,
em Buenos Aires.

Pa
ra quem o conheceu pessoalmente, um exemplo de ser humano e, porque não dizer, o "cronópio-mor" de Cortazar.

Para quem se inspirou em suas ideias, foi e é certamente um dos mais lúcidos referenciais teóricos do ensino jurídico, da linguagem jurídica, da teoria do direito. E, ao menos desde a última década, um crítico ferrenho do espaço de poder e ego que se transformou o espaço universitário, e que deslocou o eixo da produção de saberes orientados à emancipação para outros não tão dignos de nota.

A ABEDi e muitos de nós certamente deve muito a ele, que deixou muitos filhos e filhas espalhados por aí, com seu Cabaret Macunaíma, o senso comum teórico dos juristas, o surrealismo jurídico, e milhares de ideias que contribuíram para transformar muitas concepções decadentes de Direito em nosso país.

Wilson Levy
Universidade de São Paulo

Mesmo aqueles que não se identificam com sua postura teórica e seus quefazeres práticos, mesmo estes, sentiram a perda. É mais um referencial que a crítica jurídica perde. E se algo de bom fica disso é que precisamos nos esforçar por superá-lo, o que, por si, é uma tarefa tapuia (para não dizer homérica) para uma vida.
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Eu, que tanto impacto sofri ao ler, nos primeiros anos da faculdade, a obra de Vará, ainda que hoje não me identifique tanto assim com ela, devo dizer: que fique nosso reconhecimento a figura tão importante para a crítica ao direito.

Finalizo com um trecho de sua obra clássica, "A ciência jurídica e seus dois maridos", em que lamenta a morte de Cortázar, num 13 de fevereiro. Vará era apaixonado por Cortázar e sua literatura. Creio que é justo homenageá-lo com essa lembrança.

"2.9. 13 de fevereiro. São dez tristes, chuvosas horas da manhã, em uma cidade que, quando lhe tiram o sol de verão, fica perdida. Estou escrevendo devagar e com torpor, com a ressaca de um resfriado que me embota as idéias. Minha irmã traz a notícia de que Cortázar morreu. Deixo este quebra-cabeças que estava tentando consertar, peço para comprarem os jornais e, enquanto espero, sinto a necessidade de dizer por escrito adeus ao homem que me mostrou, com impecável perícia, como se deve viajar em direção ao fantástico, para poder ter as realidades e evidências por enigmas; como poder transmutar em loucas as razões, para poder sobreviver socialmente a tantos monstros que, nobre, militar e sensatamente nos governam.

Ainda adolescente aprendi em Cortázar a horrorizar-me das antinomias e a gostar dos textos que transpirassem, por todos seus poros, uma vitalidade ardentemente exposta e comprometida. Durante todos estes anos, cada vez que, como nesta manhã, me sentia lento e entorpecido frente a uma folha de papel em branco, recorria a Cortázar, porque sabia que teria uma leitura inspiradora. Junto com Barthes, é o autor mais anonimamente citado em meus trabalhos. Os dois são minha gramática do desejo.

Chegam os jornais. Júlio Cortázar morreu ontem em Paris, ficando, desde agora, só Cortázar nos outros. Daqui em diante, unicamente de nós dependerá que seu modo de iluminar tudo o que olhava, descobrindo o que nós não víamos, ou víamos cheio de lugares-comuns, não se perca como um lugar literário.

Acabamos de perder um grande cientista social que, como diz Vargas Llosa [sic], soube combinar um tipo de literatura cotidiana, baseada na experiência comum das pessoas com elementos fantásticos, com o elemento imaginativo mais audaz e insólito. As palavras de Vargas Llosa [sic] encerram uma preciosa definição do que é romanesco carnavalizado, como expressão do compromisso das linguagens com a democracia. A obra de Cortázar responde bastante ao ideal de linguagem política tal como a pode ver um Barthes ou a vê Lefort, Eco e Morin.

Foi um cronista do caos, das imobilidades cotidianas, do fantástico e da ilusão. Foi um cronista do insólito.

Sinto um certo mal-estar nos ecos de sua morte. Borges, por exemplo, fala mais dele e de sua irmã do que de Cortázar. O jornal 'La Nación' diz que é inaceitável para um homem de seu talento haver aderido ideologicamente aos movimentos esquerdistas da América Latina, sem medir as razões daqueles que exerceram o terrorismo. Aflorou muita raiva contida em uma nota que fala muito mais das infelicidades de um jornal, para entender um homem que viveu fora dos 'clichês', que precisamente, através de diários como esse, prepararam o terreno para muitas das pátrias militares que assolaram este continente. A este jornal, cabe-lhe direitinho este verso de Cortázar: 'Sube cayendo hasta la nada'.

Na televisão está passando uma entrevista que Cortázar concedeu em sua fugaz passagem por Buenos Aires (alguns dias antes da entrega do poder a Alfonsin). Neste momento ouço-o dizer que a democracia não pode ser uma palavra, e sim uma vivência. Pego outro fragmento da entrevista, onde Cortázar fala de nossos imobilismos, dos engarrafamentos de nossa vida, de como nossas ilusões, nossos costumes, nossos lugares-comuns nos paralisam, nos deixam atolados enquanto dura a vida. Por que não pensar então também em como as leis, como as verdades que escrevemos com 'maiúscula' (para afirmá-las melhor), como o sentido adquirido da ordem é o uso juridicista da palavra democracia, imobiliza-nos e deixa-nos politicamente atolados. Em um dia 13 que não é nem sexta-feira, está me chegando a notícia da morte de Cortázar. Lendo os jornais, sinto que eu também com Cortázar começo a morrer. Ele é uma de minhas mortes moleculares. Hoje todos os cronópios estão chorando. Morreu um de seus grandes. Hoje, em algum lugar cotidiano do fantástico, um gato muito parecido a Teodoro W. Adorno tem um olhar perdido no ar, certamente porque haverá encontrado a imagem de um Júlio que, desde um domingo 12 de fevereiro, é definitivaente o 'ponto vêlico' da narrativa latino-americana contemporânea.

Com tristeza, Júlio, ADEUS!"