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quinta-feira, 9 de abril de 2015

Um corpo caído e a luta da advocacia popular

A coluna AJP na Universidade desta semana traz o irredento relato de uma advogada popular de Rondônia, em seu incansável compromisso com os trabalhadores que lutam pela reforma agrária. 3 anos após o assassinato de Renato Nathan Gonçalves Pereira, liderança camponesa rondoniense, Lenir Coelho relembra sua luta e sua trágica morte. Em memória de Renato e de tantos que como ele tombaram, o blogue da AJP se solidariza com a luta dos camponeses brasileiros pela terra. O texto foi produzido para a disciplina de “Teorias Críticas do Direito e Assessoria Jurídica Popular”, da Especialização em Direitos Sociais do Campo da UFG, na Cidade de Goiás.

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CORPO CAÍDO NÃO IMPEDE A LUTA

Lenir Correia Coelho
Advogada popular em Rondônia, membro da RENAP,
estudante da Turma de Especialização em Direitos Sociais do Campo - Residência Agrária (UFG)

Aquele poderia ter sido um dia igual a qualquer outro em Jacinópolis/RO se não fossem as dezenas de viaturas passando por aquela estrada da zona rural, se não houvesse um corpo caído e esse corpo não fosse de uma liderança camponesa.

Foi assim no dia 09 de abril de 2012, quando o corpo caído na estrada foi objeto da negligência da Polícia Civil e Militar e houve desrespeito da ordem natural da investigação – onde se exige, no mínimo, que a polícia isole a área, tire fotos do local, faça a perícia, identifique o corpo e o libere para os familiares; mas, não foi isso que aconteceu com esse corpo, tirado do local sem perícia, identificado e em seguida sua casa invadida e seus bens espalhados, pisados e recolhidos. Esse corpo era de um camponês, uma liderança local, um organizador do povo e da luta pela terra.

Procurar o assassino ou os assassinos do camponês, investigar, provar, é o que se espera da polícia, mas não foi o que houve. Depois da invasão violenta na casa do “corpo”, passou-se a um processo difamatório assombroso de exibição na imprensa de que o corpo era guerrilheiro, bandido, invasor de terras e tudo mais. Como prova da periculosidade do “corpo”: livros como a Arte da Guerra, Porecatu, Médicos Sem Fronteiras, mapas, não havia sequer uma faca – faquinha ou facão –, arma branca que se preste como prova. Saber ler e ler livros foi o motivo que levou a polícia a considerar o “corpo” guerrilheiro. Num país onde boa parte da população é analfabeta funcional, realmente, entender o que está escrito deve ser muito revolucionário.

Os camponeses que ousaram impor ao Estado uma derrota estrutural na região de Jacinópolis/RO – ocupando a terra, cortando-a, distribuindo-a entre os camponeses, plantando, garantindo a segurança das terras, fazendo estradas, construindo escolas, promovendo o comércio, entre outras atividades sociais e econômicas sem a interferência ou contribuição do Estado – sofrem as penalidades dessa ousadia. (TSE TUNG, 1982).

A ousadia dos camponeses teve como consequência a visibilidade do assassinato de sua liderança, sem apuração do crime e com claro indício de que os assassinos foram agentes do Estado, que se escondem atrás dos portes de armas e da inércia do inquérito para não apurarem as responsabilidades de seus pares, somando-se a isso o poder concentrado e excessivo que exercem na região fazendo com que os camponeses não queiram ser testemunhas sob pena de caírem no chão sem vidas (AGAMBEN, 2004).

O corpo caído se confunde com o espaço social de conflito de disputa de terras, o Estado pouco interfere, a não ser para reprimir os camponeses, impondo a estes as forças dos órgãos da repressão: Polícia Militar, Polícia Civil, SEDAM, IBAMA, entre outros, que impedem que o acesso à terra cumpra a sua função social, numa clara demonstração de que predomina na região o Estado de Exceção, com forte presença do Estado, porém, concentrada em uma única vertente, nesse caso, somente a força repressiva é utilizada e isso, em tese, tem sido utilizado como justificativa para se cometer todas as arbitrariedades em nome deste mesmo Estado (AGAMBEN, 2004). Dentre tais arbitrariedades, a soma de muitos corpos de camponeses tombados na região, mas, não um “corpo” como aquele. Aquele era diferente, como diferente era sua sina, pois, caído ao chão, foi capaz de mostrar que não acabou a luta pela terra.

Os familiares pediram e a CPT/RO ingressou no inquérito, apontando as contradições, enfatizando a falta de investigação, responsabilizando a polícia por ter invadido desnecessariamente a casa do camponês, por ter retido indevidamente os bens do camponês e, mais ainda, reafirmando que os elementos que envolvem o assassinato e a investigação policial apontam para o fato de que agentes do Estado é que cometeram o crime.

Não precisa ter formação acadêmica jurídica para ver claramente que a falta de vontade de investigar o assassinato está mais relacionada a uma decisão política do que a condições materiais, pois, os delegados do inquérito continuam afirmando que o camponês é guerrilheiro, sem sequer apresentarem uma prova concreta – fato que não faz a menor diferença, já que a obrigação da polícia era investigar quem teria cometido o assassinato. A impressão que se tem é que já se sabe quem cometeu o crime, mas o criminoso está sendo protegido, tanto que sequer se fez exame cadavérico adequado do “corpo”, sequer se periciou as projéteis retirados do “corpo” – aliás, eles já se perderam na Delegacia de Polícia.

Não se espera muito do Estado Burguês, porém, espera-se, no mínimo, uma aparente boa vontade em apontar os verdadeiros assassinos ou assassino do “corpo”, que o mesmo seja considerado pelos órgãos públicos como vítima e não como criminoso, e que, como vítima, aos seus familiares seja garantido o direito de saber quem ceifou a sua vida. 

Enquanto o inquérito se arrasta é importante manter viva a memória do “corpo” e de todos os camponeses que tombam diariamente na luta por Reforma Agrária e Justiça Social, portanto é necessário manter o acompanhamento do inquérito policial. Nesse aspecto, várias intervenções foram construídas, entre elas realização de ato público, realização de audiência pública, peticionamento para que MPE e MPF interfiram no inquérito, enfim, pedido de intervenção Estatal Brasileira e, em não sendo esta suficiente ou em sendo inerte, pedido de intervenção internacional, pois a morte de um camponês implica o aumento da violência no campo, a criminalização da luta pela terra e a desesperança de milhares de camponeses que esperam e sonham com um lugar para plantar, colher e cuidar de sua família. A ousadia da advocacia popular, ao acompanhar o inquérito, implica explicar, paciente e pedagogicamente, para cada camponês e familiares o quanto o Estado é inerte quando se trata de apurar a morte de uma liderança camponesa.

Ah! Esse “corpo” tem nome e seu nome foi homenageado em duas ocupações de terras no estado de Rondônia após seu assassinato, mostrando que se pode tirar o homem da terra, mas não se pode tirar a luta do homem, principalmente se essa luta tiver uma história regada a sangue, suor e compromisso social: RENATO NATHAN GONÇALVES PEREIRA! Presente!

Referências

AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. Trad. POLETI, Iraci D. São Paulo: Boitempo, 2004.
BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Critica do Direito Penal. 3 ed., Rio de Janeiro: Ed. Revan, 1999.
LABICA, Georges. Democracia e Revolução. São Paulo: Expressão Popular, 2009.
REVISTA DA AATR. Movimentos sociais, democracia e Poder Judiciário. Ano 3, n.º 3, Dezembro, 2005.
TSE TUNG, Mao. A Carta Chinesa: a grande batalha ideológica que o Brasil não viu. Minas Gerais: Terra Editora Gráfica, 2003.
_____ . Política. São Paulo: Ática, 1982.

Depoimento de Renato Nathan no encontro estadual do PRONERA, em 2007, na Universidade Federal de Rondônia

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Leia também:

quinta-feira, 14 de julho de 2011

Júri de assassinato de sem terra, no Paraná


Mesmo que com a ressalva dos abolicionistas radicais, que chamam a atenção para a necessidade de extinção do direito penal, é preciso estar bastante atento para os descaminhos do júri que irá acontecer dia 27 de julho de 2011, quando será julgado em Curitiba um representante do grande capital latifundiário. Testemunha sofre ameaças e o clima de tensão marca este episódio.

Segue notícia divulgada na página da Terra de Direitos:

sábado, 18 de setembro de 2010

O latifúndio matou mais um trabalhador sem-terra no Pará



No último dia 03.09, mais um trabalhador rural foi vítima da violência do latifúndio no Brasil, e mais uma vez no estado do Pará, onde os conflitos agrários são ainda mais encarniçados devido a uma combinação de elementos como:
  • a manutenção do poder político nas mãos do velho latifúndio coronelista;
  • a introdução acelerada do moderno agronegócio capitalista neocolonial, que atua de forma dependente e subordinada a interesses econômicos externos;
  • o verdadeiro caos social gerado por este modelo sócio-econômico, que nas últimas décadas tem expulsado grandes levas de camponeses para as cidades grandes e médias da região, sob a forma de uma urbanização caótica sob condições de desemprego, superexploração e miséria;
  • a conivência das autoridades políticas e judiciais em relação a pistolagem;
  • o grande caos fundiário promovido pela grilagem no Estado.

José Valmeristo Soares, conhecido como Caribé, foi torturado e executado por pistoleiros a soldo da família do ex-Deputado Federal Josué Bengstson (PTB), que renunciou ao mandato anos atrás para fugir da cassação por envolvimento na Máfia das Sanguessugas. Bengstson é novamente candidato a deputado federal, e conclama em seus programas pelo voto da "família paraense", pois sua principal bandeira no Congresso será a manutenção da proibição do aborto no país...

Por sorte, João Batista Galdino de Souza, outro trabalhador que havia sido capturado e torturado pelos pistoleiros, conseguiu fugir e sobreviveu.

Compreendendo melhor o caso

Caribé era uma das lideranças de uma comunidade de camponeses que era historicamente base da FETAGRI-PA (Federação dos Trabalhadores na Agricultura), que reúne centenas de sindicatos de trabalhadores rurais no estado. Cansados da demora em relação a alguma providência do governo no sentido de conquistar seu direito a terra, os trabalhadores decidiram por ocupar a Fazenda Cambará, em Santa Luzia do Pará (nordeste do estado), devido a sua condição de terra improdutiva e grilada. Para isso, romperam com o grupo político que controla a FETAGRI e aderiram ao MST, que os apoiou na ocupação da fazenda.

A reação do latifúndio e do Estado foi imediata. No mesmo dia da ocupação, prontamente a polícia militar foi requisitada e promoveu o despejo, com um mandado de reintegração de posse que já fora utilizado em outro despejo que os trabalhadores haviam sofrido da mesma fazenda, no final de 2009. Como de praxe, os trabalhadores foram xingados, humilhados e intimidados pelos policiais, e, não tendo para onde ir, permaneceram a beira da fazenda, mantendo sua disposição de permanecer na terra, onde já tinham inclusive seus roçados.

A partir de então, a pressão psicológica só fez aumentar. Todos os órgãos competentes (polícia, INCRA, ITERPA, Ouvidoria Agrária etc) foram comunicados da situação, que já indicava que uma tragédia ocorreria se nenhuma medida fosse tomada. A morte de Caribé teve, portanto, vários cúmplices por omissão.

Um detalhe curioso é que o crime foi cometido alguns dias antes de um grande Fórum promovido pelo CNJ e pelo TJ-PA. O MST e várias entidades organizaram um ato que tentava sensibilizar os participantes para o conflito, mas não foi permitido que entrassem no local do evento. Lá dentro, uma grande "feira de exposições" (?) de diversas entidades trazendo sua contribuição para a redução dos conflitos no campo. Segundo as resoluções aprovadas no final do encontro, a medida mais importante e urgente é a regularização fundiária, o que na verdade interessa mais aos grileiros, que são efetivamente aqueles que estão em situação irregular. Nada se disse sobre reforma agrária...

Os trabalhadores se dirigiram então ao INCRA, onde ficaram ocupados até que as autoridades competentes pela reforma agrária do governo do estado e do governo federal se comprometessem em desapropriar a área e destiná-la à reforma agrária. Tomado o compromisso, os camponeses retornaram à Fazenda Cambará no último dia 16.09, onde seguem na luta até a conquista final do direito a terra. A reocupação obviamente não foi pacífica, e, sob o argumento de retirar da fazenda máquinas, tratores e outros pertences dos proprietários, a polícia tentou mais uma vez pressionar psicologicamente os camponeses para que abandonassem a área, uniformizados e pesadamente armados que estavam (vide foto acima). O grupo manteve, porém, sua disposição em permanecer na terra e não permitir que a morte de seu companheiro fosse em vão. Igualmente essencial foi o apoio da SDDH (Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos) e da Defensoria Agrária, para que mais um despejo ilegal não ocorresse.

Cabe a cada um refletir sobre tantos debates que se misturam na complexidade de um caso real como este. Deixo, apenas, algumas perguntas provocativas, para reflexão (e me contendo para não faze-las a certos setores "democrático-populares" que se calam nesses momentos em que a vida exige uma tomada de posição):
  • para os acadêmicos: o que explica o fato de as universidades e os intelectuais, especialmente no estado do Pará, sequer repercutirem, e quanto mais discutirem sobre mais este caso de grave violação de direitos humanos? Será que "direitos humanos" é um tema meramente acadêmico?
  • para os pós-modernos: este conflito é produto de uma sociedade "plural e diversa", ou marcado por classes sociais antagônicas em luta permanente?
  • para os positivistas: não há relação entre direito e política, direito e moral? a diferença entre o "ser e dever-ser" conseguirá trazer de volta mais um trabalhador assassinado pelo latifúndio?
  • para os militantes e assessores jurídicos populares: que fazer para colaborar, propagar, impulsionar as lutas do nosso povo?