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Em tempos atuais, muito se ouve falar, e até mesmo se diz, acerca de uma teoria da dependência, desenvolvida na América Latina, justamente nos tempos das trevas ditatoriais por que passou o continente. Tristemente, porém, pouca apropriação há do debate em sua totalidade, o que se verifica pela canonização do texto de Fernando Henrique Cardoso e Enzo Faleto, "Dependência e desenvolvimento na América Latina".
O texto de Cardoso e Faleto tem sua importância, mas como um dos possíveis aportes sobre o problema. Na tradição teórica brasileira, outra visão se concretizaria e traria interpretações originalíssimas a partir de outras bases de análise. De fato, a teoria marxista da dependência não pode se confundir com os teóricos da dependência em geral. E, neste ponto, convém resgatar dos mais importantes nomes da análise marxista sobre a dependência, o do brasileiro Rui Mauro Maríni.
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Maríni é daqueles intelectuais que, desgraçadamente, encontra-se exilado, até hoje, das principais discussões em torno da interpretação do Brasil e da América Latina, apesar de ter retornado a sua terra natal após o processo de "anistia" (vindo a falecer no Brasil em 1997). Sua história vai da graduação em direito (que não concluiu) e da graduação em administração até a atividade docente na UnB, ao mesmo tempo em que, por decorrência da intensa militância estudantil, funda a POLOP - Política Operária. A partir do grupo da POLOP é que se originariam vários importantes nomes da teoria marxista da dependência brasileira, como Teotônio dos Santos e Vânia Bambirra, dentre outros. Além de a POLOP, de crucial importância foi o grupo de estudos sobre "O capital", na Universidade de Brasília. Toda esta militância, na prática e na teoria, renderia a Maríni a prisão e a tortura em 1965, já que a POLOP tentaria efetuar a resistência armada, por meio de uma guerrilha rural, e seria descoberta pelos órgãos de inteligência e segurança nacional da ditadura de 1964. Seu exílio se passaria quase todo no México, onde viria a ser professor da UNAM - Universidade Nacional Autônoma do México, à exceção do período do governo de Salvador Alende em que Maríni viveria no Chile. Diga-se, desde logo, que quase toda a obra de Rui Mauro Maríni está disponível em uma página da UNAM destinada a seus escritos, em espanhol.
Sua produção teórica se articula ao debate do dependentismo de autores da periferia do capitalismo, em especial André Gúnder Franque e Aníbal Quijano, dentre outros, além de os já citados Teotônio e Vânia. E neste contexto é que formula vários conceitos bastante fecundos para a análise da realidade do subdesenvolvimento capitalista. Assim é que surgem as teorizações sobre a dialética da dependência, a superexploração do trabalho, o subimperialismo e a noção de classe operária.
Ao contrário das vertentes veberianas, a teoria da dependência de um Maríni centrava-se no motor histórico da luta de classes e não acreditava em um desenvolvimento possível e com bem-estar a partir dos avanços tecnológicos do capitalismo, pois se fazia necessária uma ruptura cabal com este modo de produção, o que se anunciava pela necessidade da revolução socialista no continente. Em boa medida, esta é a briga que envolve os teóricos da dependência, em que, de um lado, estavam os marxistas como Maríni e Tetônio dos Santos e, de outro, os antimarxistas como FHC e José Serra (ver o texto "As razões do neodesenvolvimentismo", de Maríni, polemizando abertamente com Cardoso e Serra).
Sendo suas grandes contribuições para a teoria da dependência a continuação da interpretação do materialismo histórico para a América Latina, a partir não só de Marx mas de todo o debate aberto após as teses sobre o imperialismo, de Lênin e Rosa Luxemburgo, ou das concepções de desenvolvimento e subdesenvolvimento em Trótsqui, Paul Baran e Paul Sweezy, ademais de as críticas históricas ao desenvolvimentismo da CEPAL e ao etapismo dos partidos comunistas influenciados pela III Internacional; sendo assim, caberia empreender alguma aproximação de seu pensamento com o que nos toca a todos neste blogue: a contribuição da teoria crítica para o direito em sua inter (ou, em alguns momentos, até trans) disciplinaridade.
Sem dúvida, os temas da superexploração do trabalho e do subimperialismo rendem muitas discussões e polêmicas até hoje (onde se conserva a discussão sobre o pensamento de Maríni) e, por isso mesmo, colocam pontos de apoio importantes para se pensar a dependência dos países subdesenvolvidos sob o signo do capital.
Para Maríni, "o fundamento da dependência é a superexploração do trabalho" e esta, em último caso, se dá a partir do aprofundamento de relações sociais que levem o trabalho subordinado das periferias a serem regidos segundo a lei da extração da mais-valia em seu sentido absoluto, ou seja, em conformidade com a contra-mão da história de avanços e conquistas das classes trabalhadoras por maiores salários e menores cargas horárias de trabalho. No centro do capitalismo, a mais-valia relativa poderia, assim, grassar sem problemas. Na dialética da dependância, portanto, a submissão das periferias ao(s) centro(s) se faz pela aliança das burguesias nacionais com as forças imperialistas e, desta forma, o trabalhador resta superexplorado (ver livro "Dialética da dependência").
Mais do que isso, porém, a contribuição de Maríni também se constata no plano da complexificação das relações de poder no âmbito internacional. Daí a forte crítica ao papel do Brasil neste campo, cuja figura resplandesceria com seu subimperialismo. Eis que "nações de composição orgânica intermediária" passam também a se beneficiar da concentração e centralização tendencial do capital, de acordo com a nova divisão internacional do trabalho e com as características básicas das economias nacionais dependentes, a destacar-se a superexploração do capital, ainda que não só (ver o prefácio a "Subdesenvolvimento e revolução").
Pois bem, para além de tais desenvolvimentos teóricos, Maríni também indicou o alargamento do conceito de classe operária a partir das realidades dependentes, a fim de oxigenar esta reflexão e estabelecer novas mediações para a luta de classes (como já discutido aqui no blogue, em: "Os sujeitos históricos da transformação: organização político-jurídica e antropologia"; de Maríni, ver: "O conceito de trabalho produtivo").
Por fim, cabe aduzir estas construções teóricas ao âmbito jurídico-político. Ao tempo das discussões sobre a nova constituição brasileira, Maríni escreveu um texto colocando seu ponto de vista sobre o assunto, embotado que estava, como todos (ou quase todos!) os intelectuais e políticos brasileiros à época, pela necessidade da nova constituição. Como se sabe, uma constituição é sempre política mas nem por isso determina o ser de uma sociedade. Por isso é que Maríni indicava a necessidade dela mas não deixava de fazer suas críticas e propostas: continuava a deblaterar contra o estatismo político (ainda que isto não significasse anti-estatismo econômico), com o intuito de que as organizações populares, do campo e da cidade, ganhassem autonomia para poderem realizar um grande passo: "o que se impõe não é suprimir a regulação estatal, mas submetê-la mais diretamente à influência das massas". Talvez seja justamente neste sentido que se justifique a "função pedagógica do direito" atribuída por Maríni no momento preparatório da assembléia constituinte. Para seu tempo, uma necessidade; e, para o nosso, um uso tático, ainda que isto não possa corroborar uma tese universalista para a existência do direito. Com esta ressalva, terminemos com as palavras de nosso teórico marxista da dependência:
"brotando da vida real, do húmus fecundo da economia e da luta de classes, o direito é algo mais que o reconhecimento dos fatos; ele é também a previsão ou o desejo de que estes evoluam neste ou naquele sentido e contém, por isto mesmo, em semente, a visão do que pode ser o desenvolvimento futuro da sociedade. Neste sentido, o direito tem um caráter educativo, que, mais que qualquer outra lei, a Constituição deve captar e expressar" (do artigo "Possibilidades e limites da assembléia constituinte", não disponível na internet).
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Conferir ainda:
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- blogue do Teotônio dos Santos;
- blogue Missão Rui Mauro Maríni;
- artigo meu sobre "Alguns problemas para uma teoria política marxista em nossa América".