
Há mais de um ano, a instância máxima do direito estatal brasileiro - o STF - declarou a existência de repercussão geral quanto ao problema da constitucionalidade ou não do exame de ordem para inscrição de bacharéis em direito nos quadros da advocacia da Ordem dos Advogados do Brasil. Logo, haverá uma decisão "definitiva" (dentro da definição cabível para um órgão de decisões político-jurídicas) para o caso. Isto se deveu a um dos muitos recursos feitos por bacharéis em direito que contestam a legitimidade e a legalidade mesma do referido exame. No caso, repercutiu o recurso extraordinário levado a conhecimento do judiciário por um bacharel gaúcho que questiona os vários dispositivos normativos que asseguram a feitura da famosa prova da Ordem (ver: STF reconhece repercussão geral de recurso contra o Exame de Ordem)
. Portanto, aqui, o problema está colocado em termos de adequação ou não do exame à constituição da república - quer dizer, um horizonte constitucionalista para a questão.
Desde a promulgação do estatuto da advocacia e OAB, em 1994, pela
lei 8.906, vem sendo recorrente o debate acerca da pertinência sociológica e jurídica de uma avaliação dos formados em direito para que possam ingressar na carreira causídica. Curiosamente, a exigência de teste para os bacharéis em direito se deu no mesmo momento histórico em que houve a estupefante abertura de novas faculdades de ensino superior, sendo que a tradição jurídica bacharelista brasileira se fez sentir rapidamente, tornando-se a bandeirante-mor deste processo.
Mas o que a assessoria jurídica popular tem a dizer sobre o exame da OAB?
Certamente, pelo menos dois caminhos podem ser tomados para se decidir a questão: um, o da inconstitucionalidade; outro, o da ilegitimidade. O primeiro, sem dúvida, coloca-se no âmbito da positividade de combate, em que se pode lançar mão do instrumental constitucional para mostrar os vícios insanáveis do conteúdo legal. Já o segundo refere-se a uma postura mais radicalizada e que intenta questionar o próprio monopólio da justiça e da organização política que detém o estado e as classes e segmentos de classe que o envolvem.
1. Da inconstitucionalidade. O sentido mais pragmático - e obviamente o que pode gerar mais efeitos práticos no atual estágio da discussão - é o da argüição de inconstitucionalidade do exame da OAB, a partir da demonstração de total inadequação dos preceitos do regime constitucional brasileiro com o arcabouço legal que regulamenta e autoriza a prova.
Neste quadrante, basta dispor na mesa as várias cartas do jogo, amiúde esquecidas em sua inteira significância. Além de o advogado ser essencial à administração da justiça (como reza o artigo 133 da
constituição) e nenhum cidadão poder se escusar da letra da lei por ignorância (como quer o artigo 3º da
LICC), o que em si já se apresenta como uma contradição grandiloqüentemente sistêmica, não pode o Poder Público (com as mais que ululantes e evidentes maiúsculas do artigo 209, da constituição) delegar o seu papel na "autorização e avaliação de qualidade" quanto ao ensino, mesmo que livre à iniciativa privada. Assim, se se propõe que nunca se pode se fazer de desinformado perante a lei é porque se parte de um pressuposto claro, qual seja, o de que todos têm “educação” suficiente para conhecer a letra legal sem intermediações necessárias; no entanto, se se pondera que existam advogados é para que eles auxiliem quem não tenha capacidade por não ter tido instrução bastante para fazer valer por si mesmo seus direitos. Não há, que essa, maior contradição! E, não bastasse isto, a exigência de um exame de ordem faz com que se regule ("autorização e avaliação") a qualidade do ensino superior por meio de uma entidade corporativa, como é a Ordem.
A princípio, estamos diante de um caso de pluralismo jurídico intra-estatal. O estado permite apenas a colaboração da sociedade na promoção e incentivo da educação (conforme o constitucional artigo 205). A OAB está no liame entre estado e sociedade, para fazer uso da velha dicotomia hegeliana. Na verdade, entidade corporativa, com poderes públicos. Apesar de ter algum passado "glorioso" em defesa da democracia liberal, hoje apresenta-se no mais aferrado momento egoístico-passional de sua existência. Os críticos são quase unânimes: a corporação de ofício defende seus interesses corporativos e sendo nossa sociedade uma tal abalroada pela instância transcendental do mercado (ainda que absolutamente respaldada pela produção da mais-valia), o que se confirma inclusive pelo texto constitucional, os interesses corporativos de uma corporação de ofício são os de reserva de mercado. No entanto, esta reserva não é assegurada pelo ímpeto liberalizante de nosso regime constitucional, o qual apregoa a defesa do trabalho também.
Seria até de se questionar se a associação compulsória de todos os advogados à OAB é constitucional. Dentre os direitos e garantias fundamentais do povo brasileiro está a liberdade de associação e o livre exercício das profissões (art. 5º, incisos XX e XIII). Não parece clara a necessidade de um monismo societal privado, mesmo que seja claro o monismo estatal, pela interpretação de nosso ordenamento naquilo que tem de mais superficial. Constranger um profissional a associar-se a uma única entidade representativa e ainda fazer desta a condição para o livre exercício de sua profissão é, para dizer o menos, um devaneio por águas mais barrentas e caudalosas que as de uma pororoca no delta do Rio Nilo...
Mas, sem embargos de qualquer ordem, o mais significativo dos óbices que podem ser postos ao exame da ordem é o da seleção pluralista do direito que a OAB faz ao erigir a sua avaliação aquela que determina quem, dentre os bacharéis em direito, pode ser um profissional ou não. Se há faculdades de direito autorizadas a formar bacharéis, qual a justificativa para expurgá-los do mercado de trabalho? Costuma-se responder: "os limites da lei..." Quer dizer, a lei alberga limites e neles se encontra um procedimento probatório de capacidade para o exercício da advocacia. No entanto, esta fronteira está significativamente alargada, e os limites da lei se tornam a ilimitada violação da própria constitucionalidade. Só o Poder Público pode avaliar o ensino livre e a
lei 9.394, de 1996, que estabelece as bases e diretrizes para a educação nacional, está aí para comprová-lo em seus artigos 7º, 9º e 46. Na sua contramão, o estatuto da advocacia, em seus artigos 8º, 58 e 84, junto aos provimentos
81/1996,
105/2005 e
136/2009, do Conselho Federal da OAB.
E o pior de tudo é que basta compulsar a "lei". É a atividade de um leguleio que no-lo diz!
2. Da ilegitimidade. Mais do que nos contentarmos com os limites que a constituição impõe à realização do exame de ordem, em seus moldes atuais, é preciso questionar os próprios limites que a constituição representa para uma sociedade verdadeiramente livre e justa. Uma sociedade de iguais e em que todos atendem a suas necessidades a partir de suas capacidades não pode querer dirimir conflitos a partir de castas sacerdotais ou corporativas. A própria figura do advogado, como um profissional dentro do amplo processo histórico de especialização e tecnificação do conhecimento que a sociedade ocidental conheceu desde o surgimento das primeiras universidade medievais, apresenta-se como morbidamente destoante.
Ao final do questionamento da constitucionalidade do exame de ordem, dizíamos que havia um arcabouço legal contrastivo. E terminávamos citando os provimentos da OAB. Neles se repetem dois dispositivos que dizem o seguinte:
Art. 1º A aprovação em Exame de Ordem constitui requisito para admissão do bacharel em Direito no quadro de advogados (Lei n.º 8.906/1994, art. 8º, IV).
...
Art. 2º O Exame de Ordem é prestado pelo bacharel em Direito, formado em instituição credenciada pelo MEC, na Seccional do estado onde concluiu seu curso de graduação em Direito ou na sede de seu domicílio eleitoral.
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Pois bem, a exclusividade auferida ao bacharel em direito para que se possa tornar advogado coloca um problema muito grave no mundo da vida de todos os que se deparam com o direito burguês: se as faculdades não habilitam, quem habilita ao exercício da advocacia? Resposta usual: o estudo do bacharel. Mas o bacharel "que não estudou" acaba ficando à deriva de sua profissão, algo que não ocorre aos demais profissionais. Mais do que isso, porém: o que se testa no teste da OAB? Definitivamente, uma visão bastante antiquada, tecnicista e castradora do pensamento jurídico-político.
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Daí podermos entrar na seara do ensino (ou educação!) jurídica (ou jurídico-política!). Muito temos tentado debater neste campo, mas uma coisa fica marcada: a seletividade do vestibular é reproduzida na seletividade do exame de ordem, o que faz com que conhecimento e profissão sejam alijados das grandes massas populares. Este timbre cacofônico de nossa sociedade, que soa não de hoje, evidencia em que plano de educação estamos trabalhando. Infelizmente, não é a educação popular. A educação formalista e cada vez menos humanista (o que, para nosso contexto, é uma lástima) demonstra que não resolvemos o problema denunciando a reserva de mercado da corporação de advogados. Colocar-se contra tal reserva não pode significar a legitimação do discurso da democratização do acesso ao ensino superior por meio das grandes empresas educacionais, que nos últimos 20 anos receberam várias benesses do estado brasileiro e de seus governos. Por isso, a imprescindível discussão sobre o processo de ensino e aprendizagem do estudante do direito e da própria organização do conhecimento na universidade burguesa, que estanca as áreas de atuação em nome de questões mercadológicas e produtivas.

Esta ilegitimidade se avulta quando vemos se formarem movimentos tais quais o
Movimento Nacional dos Bacharéis de Direito - MNDB. Sintoma de nosso tempo, o movimento coloca-se nos estritos limites da ordem e do pacifismo, que tanto molesta nosso povo carente de explosões revolucionárias. Apesar de seu caráter eminentemente conservador, o MNDB institui a organização de uma reivindicação importante, que nos faz pensar sobre o papel mesmo do educador jurídico, do advogado, do estudante e bacharel e de todo cidadão constrangido pela letra da lei.
Não há que se duvidar: a assessoria jurídica popular tem de apontar para a desnecessidade histórica da especialização do conhecimento jurídico a um segmento classista, uma vez que direito é acima de tudo política e a política não pode estar distante, naquilo que tem de mais constitutivo (e não constitucional) na vida das pessoas: a capacidade de auto-organização e reflexão crítica sobre sua própria intersubjetividade. Daí a figura dos rábulas - juristas leigos - talvez vir a ser um exemplo histórico a ser estudado e implementado nas fissuras do sistema jurídico-político presente. Da inconstitucionalidade à ilegitimidade do exame de ordem, chegamos à organização política que nasce do povo, que em um momento de transição revolucionária haverá de ser um direito insurgente.