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segunda-feira, 14 de novembro de 2016

O fantasma colonial do infanticídio indígena

Um fantasma colonial atormenta os povos indígenas do Brasil desde a edição, em 2005, do Projeto de Lei nº. 1057 pela Câmara dos Deputados do Congresso Nacional: a acusação de que maltratam suas crianças, e que isto seria uma questão cultural ou de "práticas tradicionais".



No centro das acusações e motivações está o alegado "infanticídio indígena", ainda que outras práticas tradicionais adjetivadas de "nocivas" também apareçam como "verdades incontesteis" a serem reguladas pelo Estado brasileiro para a defesa dos direitos das crianças. Atualmente, o antigo PL está registrado pelo número 119 de 2015, e tramita no Senado Federal, sendo que hoje, 14 de novembro de 2016, será alvo de debate em audiência pública da Comissão de Direitos Humanod o Senado Federal, convocada para discutir a temática.

Como já disse outras vezes, esta é mais uma tentativa de criminalizar os povos indígenas com alegações que não conseguem sustentar-se em dados consistentes, tampouco na forma como pretende abordar o assunto: via a violência policial-judicial e a imposição de valores. Para desconstruir essa falácia da proposta do PL, e apontar para horizontes em que o diálogo intercultural e o respeito às diferenças culturais impere, resgato o texto abaixo, de autoria de Washington Castilho e colaboração de Fábio Grotz, publicado no site do Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos (CLAM), em que a questão é debate com olhares de pesquisadores, militantes e indígenas.


"O olhar do outro

por Washington Castilhos
colaborou Fábio Grotz

O denominado “infanticídio indígena” foi destacado no último mapa da violência do Ministério da Justiça brasileiro, por conta da prática Yanomâmi de dar direito a mães e pais de matarem recém-nascidos em casos de crianças que nasçam com deficiência. Segundo reportagem do programa dominical Fantástico do final de 2014, a prática teria engrossado os índices de violência da cidade de Caracarai (em Roraima, onde está localizada a maior reserva Yanomâmi do país), colocando-a como campeã de homicídios em 2012 no Mapa da Violência lançado em 2014.

A prática Yanomâmi foi alçada ao status de questão nacional em agosto de 2007, quando o deputado federal Henrique Afonso apresentou o projeto de lei 1057 – conhecido como Lei Muwaji – para“combater práticas tradicionais nocivas à proteção dos direitos fundamentais de crianças indígenas”, e logo em seguida a Revista Veja publicou reportagem (sob o tendencioso título “Crimes na Floresta – Muitas tribos brasileiras ainda matam crianças e a Funai nada faz para impedir o infanticídio”, edição 2021, de 15/08/2007) em que o ato era detalhadamente discutido. Desde então, o tema tem sido ocasionalmente abordado pelos diversos meios de comunicação brasileiros, sempre imerso em valores culturais e considerando unicamente a verdade moral ocidental acerca do que é a vida, do que são os povos indígenas e de como os agentes não indígenas podem resolver tais situações, com “nossos” aparatos e valores, assumindo uma supremacia sobre as cosmovisões desses povos.

Por ser este um tema inquietante desde sua denominação – o ato pode ser chamado "infanticídio"? –, fomos ouvir pesquisadores que desenvolvem estudos com recorte nas temáticas dos direitos humanos e étnicos nas áreas da Antropologia e do Direito, a fim de saber como estes avaliam a significação do (dito) “infanticídio indígena” como “problema social” e seu enquadramento nas estatísticas de violência produzidas pelo estado. Compreender a prática Yanomami torna-se complicado em uma sociedade cujas crianças têm cada vez mais seus direitos sujeitos à tutela do Estado e onde o conceito de vida é tão valorado e sacralizado.

“Todas as vezes que se classifica esta prática como ‘infanticídio’, cai-se num duplo equívoco: o primeiro deles é a redução da possibilidade de entendimento do que representa tal ato pela lógica ou olhar do povo Yanomami, pois a sua tipificação automática como infanticídio permite a intervenção estatal drástica, via esfera penal, ou ações de organismos privados, como missionários e ONGs, que têm por base uma leitura do bem jurídico ‘vida’ diferente daquela formulada pelos Yanomami, sobretudo na compreensão de quando se reconhece de fato um ser enquanto pessoa. O segundo equívoco é a inadequação do uso do tipo penal ‘infanticídio’, inserido no artigo 123 do Código Penal, para a compreensão do que de fato ocorreu em tais situações, posto que para o infanticídio seria necessária a existência de ‘estado puerperal’ que corresponderia à perturbação emocional da parturiente que motiva o ato, ou seja, existe um fator psicológico que explicaria o alegado crime. A prática Yanomamiseria melhor traduzida como o não reconhecimento coletivo de transformação do ser em pessoa e, consequentemente, em criança”, analisam Jane Felipe Beltrão, professora no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal do Pará (UFPA), e Assis da Costa Oliveira, Mestre em Direito, professor de Direitos Humanos e coordenador do Curso de Etnodesenvolvimento da Faculdade de Etnodiversidade, também da UFPA – campus de Altamira. Assis recentemente lançou o livro “Indígenas Crianças, Crianças Indígenas: perspectivas para construção da Doutrina da Proteção Plural” (Editora Juruá), no qual aborda o assunto..

Segundo os pesquisadores John D. Early e John F. Peters, que realizaram estudos junto aosYanomami na década de 1990, o que “nós” classificamos como “infanticídio” é visto por eles como “aborto terminal”, não como homicídio. Muito mais do que um ato ou uma decisão, trata-se de um processo cultural com fundamentação complexa e coerente internamente à aldeia, que não pode ser visto como ato de barbárie, primitivo ou comparado ao “estado puerperal”, na tentativa de defini-los como loucos ou como grupo que desconsidera a vida, pois é esta justamente o que está em jogo.

“Para uma comunidade indígena, o valor da vida é algo fundamental. Não há qualquer intenção, do ponto de vista deles, de agredir esse valor. O que há é uma demonstração de seus limites, freqüentemente cristalizados em valores e modelos de ação social. Nessas horas, uma negociação em diálogo com as crenças locais pode permitir soluções mais felizes. Mas uma ação do Estado, por sua natureza genérica e sua dita impessoalidade, que não consegue flexibilizar suas ações em contexto algum, não vai conseguir produzir soluções felizes. Ele vai impor normas de forma arbitrária”, afirma o antropólogo João Pacheco de Oliveira, professor titular do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional (UFRJ) e coordenador de assuntos indígenas da Associação Brasileira de Antropologia (ABA).

Para a pesquisadora Rita de Cássia Melo Santos, doutoranda em Antropologia Social no PPGAS/MN/UFRJ, a ideia de tomar a prática indígena como um “problema social” diz respeito à forma como a sua origem e abrangência foram problematizadas pelo legislativo brasileiro.
“Segundo os órgãos indigenistas e movimentos indígenas, trata-se de uma prática isolada, ritual, realizada em comunidades específicas e em vias de extinção. A cultura é dinâmica, ela está em constante processo de transformação, inclusive no que concerne às populações indígenas. Logo, tratar a questão do infanticídio indígena como um problema para o qual se faz necessário um projeto de lei nacional, abre uma frente de homogeneização em relação a essas populações bastante perigosa. Muito tem se falado sobre infanticídio e sempre há uma recorrência a casos muito específicos e pontuais, ao mesmo tempo em que os assassinatos das lideranças indígenas, a usurpação dos seus territórios e a morosidade no atendimento às suas demandas pouco têm espaço na mídia. Estou certa que o projeto de lei do infanticídio corresponde a mais um braço da campanha orquestrada contra os direitos indígenas, muito mais do que uma questão de proteção às suas crianças. Para isso, temos a alteração do Estatuto da Criança e do Adolescente em 2009, que incluiu um artigo específico sobre as crianças indígenas, e o apoio do movimento indígena e dos órgãos de ação indigenista”, avalia Rita Santos, autora do artigo Sentidos e usos sociais do infanticídio indígena em alguns veículos da mídia brasileira. que compõe a coletânea “O fazer e o desfazer dos direitos” (E-papers, 2013).

Vale lembrar que, mesmo entre as diversas etnias indígenas, há diferenças. Os Guarani, por exemplo, além dos nascidos com deficiência, descartam um dos recém-nascidos em caso de gêmeos.
Jane Beltrão e Assis Oliveira lembram que certa vez ouviram um líder Guarani interpelar uma Procuradora da República que defendia a “vida pela vida” independente do contexto social, dizendo: “A senhora e sua gente nos ensinaram a não eliminar os gêmeos e os nascidos com deficiência a partir da ‘cartilha católica’, mas quando a aldeia se encheu de pessoas com deficiência, ninguém apareceu para oferecer vida confortável àqueles Guarani que deixamos viver sem garantia de uma vida boa”.

“Em outras palavras, o líder informou à autoridade que não há vida sem que seja possível viver bem, e que apesar do alarde pela vida, o Estado ‘deixa’ morrer por não atender. Até que ponto alguém pensa nesta correlação? Os Guarani, como os Yanomami, pensam a vida com condições de ser pessoa e usufruir da condição de humano com garantias”, salientam os pesquisadores.
Rita Santos concorda com o peso que têm os fatores sociais, como o difícil acesso dos povos a bens e serviços de saúde ofertados pelo Estado. “O infanticídio tem sido largamente utilizado como um elemento de ofuscamento das reais necessidades dos povos indígenas hoje, como a demarcação e desintrusão de seus territórios; e o acesso à educação e à saúde diferenciados”, diz ela.

Vida: o que é, quando começa e para que serve
Para os Yanomâmi, a vida tem início após a primeira mamada: o momento crucial de transmissão da alma é o aleitamento. Até então, o recém-nascido é um corpo como qualquer animal, assim o “descarte” dos que não são reconhecidos coletivamente como ‘pessoa’ não é repudiado. Deste modo, a discussão sobre a prática relativiza valores e coloca em evidência as possibilidades de ressignificar o que é vida e quando esta começa.

“Há uma tendência no pensamento ocidental de tornar todos os princípios rígidos, impositivos e, assim, perdem as conexões, ao não serem nunca consideradas em seus aspectos contraditórios e ambíguos, bem como ignoradas as suas repercussões positivas. Assim, eles, os índios, se transformam em monstros”, ressalta o antropólogo João Pacheco.

Mas é interessante notar o quanto na sociedade brasileira a questão da vida (ou de quando ela começa) não é um consenso. No Supremo Tribunal Federal (STF), os julgamentos quanto ao uso de células-tronco e ao aborto de fetos anencefálicos, ocorridos nos últimos anos, revelaram posições jurisprudenciais e doutrinárias bem diversas do que seria o direito à vida, isto sem falar da posição dos movimentos feministas e das religiões (não apenas as cristãs, por certo), entre outros segmentos da sociedade.

“Logo, nem ‘entre nós’ há consenso sobre quando começa ou quando e com que critérios é possível interrompê-la, o que está colocado fortemente na discussão sobre a regulamentação e/ou legalização do aborto. Desse modo, também é possível empreender a análise de que, no caso do povo Yanomami, assim como dos mais de 200 povos indígenas, está-se diante de uma diversidade de modos de compreender o que, desde quando e para que serve a vida, cujas disputas também são feitas internamente dentro desses grupos e no diálogo com outros grupos e com a sociedade nacional”, afirmam Jane Beltrão e Assis Oliveira.

Para João Pacheco, “as pessoas que vivem aquela cultura têm a capacidade de elaborar outras soluções, a cultura não é como nosso código legal, fechado e amarrado. Ela é reinterpretada pelas pessoas. Se houver liberdade para que elas reelaborem, se houver respeito em relação à cultura, se ela não for tratada como uma manifestação de primitivismo, de ignorância, as pessoas vão caminhar para soluções que sejam possíveis”, afirma o antropólogo do Museu Nacional, citando como exemplo uma prática dos índios Tikuna, no Alto Solimões, etnia estudada por ele em suas pesquisas.

“Eles têm um ritual chamado ‘festa da pelação’, em princípio realizado com todos os jovens que passavam pela época da iniciação, da puberdade, ora restrito às mulheres. É um ritual no qual se arranca os cabelos da menina, que depois é reapresentada à comunidade em uma nova condição. A partir daquele momento, ela é considerada um ser possível de casar, de ter relações sexuais, uma adulta. Antes disso, qualquer ação sexual realizada contra ela é considerada um ato patológico, que será punido como um crime monstruoso. Então, o ritual é um ponto fundamental. A visão que os regionais têm sobre isso é a de um ato cruel, e eles fazem pressão em relação a isso. A tendência dos índios hoje não é mais de arrancar os cabelos como eles faziam manualmente, tufo por tufo. Eles usam a tesoura, e às vezes tiram um tufo para a menina ter a ideia da dor. As velhas dizem que as moças precisam ter ideia da dor, porque o parto é uma coisa muito dolorosa, e se ela não for capaz de passar pelo ritual, não conseguirá ter uma criança”, relata o coordenador de assuntos indígenas da ABA.

De acordo com as fontes entrevistadas, a diversidade cultural de mais de 200 povos indígenas, somente no Brasil, nos diz, acima de tudo, que é necessário entender melhor tais situações, quem as realizam e por quais motivos.

“Não se pode generalizar o ‘infanticídio’ como elemento cultural de todos os povos indígenas, tampouco reduzir seu entendimento a mera ‘questão penal’, pois sua existência interroga, antes de tudo, a nossa ‘zona de conforto’ sobre o que somos, sobre nossos valores e direitos, mostrando-nos que há um campo de representação plural da vida que precisamos saber entender antes de querer intervir”, ressaltam Jane Beltrão e Assis Oliveira.

No Congresso Nacional tramitam atualmente vários projetos nocivos aos indígenas, grande parte confluindo para a questão da terra. Nesse sentido, o grande projeto em discussão é a chamada PEC 215, que visa transferir do Executivo para o Legislativo (o Congresso) a demarcação de terras indígenas, e a transformaria em um negócio a ser discutido entre bancadas e interesses regionais, sem mais usar qualquer critério técnico para demarcação de terras. Tiraria a Funai, os antropólogos e a Procuradoria da República de qualquer interveniência. Na prática, a PEC, se aprovada, pararia para sempre qualquer novo reconhecimento territorial e abriria espaço para a revisão dos territórios já demarcados.

Todas as propostas de intervenção judicial ou legislativa – a exemplo do Projeto de Lei 1057/2007, conhecido como Lei Muwaji – se fundamentam na ideia de criminalização dos indígenas, da pretensa incapacidade cultural de alguns povos tradicionais em saberem cuidar de suas crianças, de que são pessoas más, que querem muita terra e invadem propriedade privada. Tal fundamentação é sustentada pela ideia de que determinados costumes e práticas indígenas ignoram o valor da vida, da dignidade e da infância, colocando-se como atos bárbaros ou selvagens, em suma, de sujeitos de uma humanidade “abaixo da nossa”, e, por isso mesmo, passíveis de toda sorte de intervenção, seja para convertê-los (como fazem os missionários) ou para puni-los (como querem os legisladores ou juízes).

“Se compreendermos que a vida e a infância são valores culturalmente construídos e, portanto, interculturalmente significados de maneira plural, se reconhecermos a capacidade civil plena e a cidadania diferenciada garantidas pela Constituição Federal de 1988, em seus artigos 231 e 232, e se tivermos a preocupação em analisar tais situações (ditas) de ‘infanticídio’ com cautela e com atenção, buscando apreendê-las pelo ‘olhar do outro’ e dialogar sem impor os ‘nossos valores’, pensamos ser um bom começo, um procedimento que não busca relativizar valores, mas torná-los, efetivamente, multiculturais”, defendem Jane Beltrão e Assis Oliveira.

É preciso, segundo os pesquisadores, deslocar o foco para os problemas históricos e estruturais que afetam os povos indígenas, como os relativos à terra, à educação e à saúde.

“É necessário analisar as discussões sobre o dito ‘infanticídio indígena’ paralelamente a situações de genocídio explícito de índios, como existe em Mato Grosso do Sul, onde eles vivem na beira da estrada, sendo atropelados, violentados por donos de fazendas de soja, pelo governo do estado. No sul da Bahia, casas indígenas sendo incendiadas aparecem no jornal como exemplo. Os casos das ditas ‘práticas infanticidas’ – na maioria das vezes meras acusações carentes de confirmação – são infinitamente menores em relação aos casos existentes de violência contra os indígenas”, observa João Pacheco.

Artigo de Rita Segato, com base em pesquisa empírica desenvolvida entre os Suruahá, verificou que dos 143 membros deste povo houve, entre 2003 e 2005, 23 suicídios, dois “infanticídios” e uma morte por doença, ou seja, a ampla maioria dos casos de morte foram decorrentes de suicídio, isto sem contar os casos de desnutrição e pobreza. Compreender a diferença e produzir respeito aos povos indígenas, é o que a diversidade nos ensina.

Publicada em: 24/02/2015"

sábado, 18 de junho de 2016

Resistir para quê?

Por Uwira Xakriabá*

Na manhã de anteontem (14/06/2016) o Conselho Aty Guasu informou que, segundo o Cacique Lopes, a Comunidade do Tekoha Pyelito Kue, no município de Iguatemi-MS, passou a noite sem dormir por conta dos tiroteios, tentando se proteger dos pistoleiros que cercavam a aldeia. Ao mesmo tempo, mais de 70 fazendeiros e seus pistoleiros atacaram a tiros as comunidade Guarani e Kaiowa ferindo mais de dez indígenas e matando o jovem agente de saúde indígena Claudionor Souza. Enquanto isso, no Congresso Nacional, deputados pediam ao presidente interino da república, Michel Temer, que revogasse as portarias de demarcação de várias terras indígenas.

Na manhã de ontem (15/06/2016), com o nascer do sol veio a notícia de Santa Isabel, no Araguaia, do suicídio de mais um jovem Iny de apenas 17 anos. Enquanto isso discutimos em nossas redes sociais se apoiamos os parentes A, B ou C para ocupar cargos políticos no governo que não só permite, como financia direta e indiretamente o massacre de nosso povo. Enchemos o peito com o orgulho dos meninos para dizer que somos guerreiros, que vamos resistir. E aí me vem a pergunta que gera esse texto: Resistir para quê?

Se a nossa resistência não visar a resiliência ela não significará nada além do adiamento e da perpetuação do etnocídio de nossos povos colocado em curso desde a truculenta invasão e ocupação colonizatória portuguesa iniciada em 1.500. Não somos mais povos guerreiros! Pelo menos não temos sido! Somos a reserva técnica de gente para o abate com vistas a alimentar e acimentar com nosso próprio sangue o processo colonizatório ainda em curso no que se convencionou chamar de Brasil.

O Estado Colonizador Brasileiro a cada dia declara de forma mais aberta seu intento de nos dizimar à prestação, seja legitimando e financiando o agrocrime, que nos mata dia a dia impunemente, seja desrespeitando suas próprias leis que nos garantem alguns direitos. Fortes, resistimos, mas para que resistimos? Para assistir ao esbulho da Constituição Federal de 1988 que um dia reconhecemos? Para morrer sem terras num país com tanta terra que foi tomada? Ou para morrermos por desassistência na saúde, na educação e na manutenção de nossas culturas?

Resistimos hoje para morrer amanhã ou para assistirmos impotentes aos suicídios de nossos jovens sem perspectivas de um futuro que lhes permita viver como aquilo são, povos indígenas, que temos línguas, costumes e culturas próprios. Nossa resistência precisa tomar o rumo da resiliência, da reconstrução da autonomia roubada, da retomada de nossos territórios. Não somos nós os invasores, não somos nós que formamos milícias, não somos nós que invadimos as cidades para matar os “brancos”, não fomos nós que cruzamos um oceano com o intuito de destruir povos e tomar suas terras. Seríamos nós os bárbaros? Os selvagens? 

Tem o Estado Democrático de Direito Brasileiro lugar para nossos povos? Que lugar é esse? Se as leis dos “brancos” só servem para criminalizar a nós e nossos parceiros, mas não serve para punir quem nos mata? O etnocídio no Brasil tem o brasão da república como símbolo de morte para nós e escudo para os assassinos poderosos que nos vitimam com sede insaciável de sangue indígena. O BNDES que financia o agronegócio, ao fazê-lo, subfinancia o etnocídio no Brasil.

O relatório Figueiredo está repleto de crimes de etnocídio contra nós, mas ninguém foi punido, não é, e não será, porque o etnocídio é um dos instrumentos de dominação e controle do Estado sobre nós. Não adianta ocuparmos cargos políticos no governo, não adianta assumir a FUNAI se o Ministério é da Injustiça para nós. Não adianta participarmos de conselhos e órgãos colegiados se essa participação só tem servido até aqui para legitimar ações contra nós mesmos. Qual a saída então?

A saída é esse país sem-vergonha fazer cumprir as leis que votou, punir nossos opressores assassinos, demarcar nossas terras como já deveria ter feito e nos garantir o direito de continuarmos existindo como povos. Às avessa do brado da ditadura gritamos agora nós povos indígenas: Brasil! Ame-nos ou deixe-nos!!

Qualquer coisa menos que isso nos dá o direito de rompermos com esse Estado, que se ilegítima ao não cumprir suas próprias leis e atentar contra nossa existência. Nos dá o direito de, resilientes, pensarmos em uma pátria indígena livre da opressão colonizatória. Se não fazemos parte do projeto chamado Brasil, se nosso lugar em sua história está apenas no passado, a partir do estupro de nossas mulheres para dar filhos mestiços aos colonizadores, não queremos mais pactuar com esse projeto de nação que não tem lugar para nosso povo.

Antes que saiam a dizer que não passo de um índio louco a pregar o rompimento com o Estado Brasileiro e a utopia de um Estado Nacional Indígena é necessário que reflitam nos fatos e pensem se a cada dia o Estado Brasileiro em suas ações, inações e omissões não nos declara a todos nós indígenas que vivemos aqui, antes mesmo do Brasil existir, guerra e guerra de extermínio!

Ou talvez eu seja realmente apenas um índio louco, figura de um passado remoto nacional fadado à extinção, talvez eu seja Y Jucá Pirama, que será assassinado na calada da noite, covardemente, traiçoeiramente, como tem sido a sina de meus irmãos Guarani, Kaiowa e tantos outros, todos vítimas do Brasil!

* Uwira Xakriabá é educador da etnia Xakriabá, vive entre os Asuriní do Xingu desde o final da década de 1990. Docente do Curso de Licenciatura e Bacharelado em Etnodesenvolvimento do Campus de Altamira da UFPA, realizando Mestrado em Antropologia junto ao Programa de Pós Graduação em Antropologia (PPGA) na UFPA. É presidente do Conselho Distrital de Saúde Indígena (CONDISI) de Altamira e Coordenador Adjunto do Fórum Nacional de Presidentes de CONDISI.