sexta-feira, 5 de agosto de 2016

Para que a Justiça brasileira existe?


Rodrigo de Medeiros Silva
Texto publicado na página Estado de Direito, na Coluna Advocacia popular e as lutas sociais


Poder Judiciário

Parece uma pergunta de fácil resposta, mas analisando o ordenamento jurídico e a realidade das decisões judiciais não se chega a tão fácil conclusão. Vendo o art. 2º , da Constituição Federal, podemos concluir, primeiramente, que o Judiciário é um dos três Poderes constituídos, junto com o Legislativo e o Executivo. Sendo Poder, presume-se que emana do povo, da população, como diz o parágrafo único, do art. 1º, da Constituição. Mas isto ainda não explica para que serve o Judiciário.
A República Federativa do Brasil, a qual todo poder emana do povo, tem como objetivos fundamentais, dentre outros, a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, bem como, a erradicação da pobreza e da marginalização, e a redução das desigualdades sociais e regionais (Art. 3º, da CF). Se fizermos, então, o exercício lógico de silogismo que, se o Judiciário é um Poder desta República, deste Estado, entenderemos que ele também possui estes objetivos.

Outros dirão que nem precisava fazer tanta volta. O art. 5º, XXXV, da CF, é claro ao estabelecer que a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito. Sendo assim, o Judiciário existiria para resguardar direitos. Contudo, boa parte da população negra e pobre do país poderia dizer, fundamentada no art. 5º, LXI, da CF, que a Justiça serve para prender, tendo em vista que só se poderia ser preso em flagrante ou poder ordem judicial. Estudo publicado pelo Ministério da Justiça lançado, em 2015, por exemplo, colaboraria com esta assertiva, pois constatou que 67,1% dos presos são negros. Mas seguindo o texto constitucional, cabe também dizer que à autoridade judiciária se incumbe relaxar a prisão ilegal (art. 5º, LXV, da CF).

Texto Constitucional

Mas se formos seguir assim o texto constitucional poderemos cair em tantas questões e fugirmos do real e principal escopo do Judiciário. Então, é melhor ficarmos no capítulo dos direitos e deveres individuais e coletivos da Carta Magna. Até porque o capítulo da Constituição intitulado “Do Poder Judiciário” vai tratar de organização administrativa, competência processual, de direitos e garantias de seus membros, não colaborando muito para este debate. Descendo a esfera infraconstitucional da mesma forma. A Lei Orgânica da Magistratura também não esclarece muita coisa na perspectiva finalística.

Como é comum ver em discursos e em sentenças judiciais, ou votos de desembargadores e ministros, de forma mais objetiva poderia se entender a Justiça, ou o Judiciário, melhor dizendo, como o defensor, o guardião da Constituição, do ordenamento jurídico como um todo. Caberia, então, a defesa dos direitos sociais estabelecidos pelo art. 6º, da CF: educação, saúde, alimentação, trabalho, moradia, transporte, lazer, segurança, previdência social, proteção à maternidade e à infância, assistência aos desamparados. Isto também ficaria coerente com o disposto no art. 5º, XXXV, da CF, que estabelece que a Justiça existe para a proteção de direitos; como também com o art. 3º, da CF, quando fala dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil.

Parece-nos que não seria forçoso entender que a assistência aos desamparados acima citada (art. 6º, da CF) tem certa identidade com a assistência social. Esta, diferente do Judiciário, tem seus objetivos descritos na Constituição de forma clara, no art. 203:  proteção à família, maternidade, infância, adolescência e velhice; amparo às crianças e adolescentes carentes; promoção da integração ao mercado de trabalho; habilitação e reabilitação das pessoas portadoras de deficiência e promoção de sua integração à vida comunitária; garantia de um salário mínimo de benefício mensal à pessoa portadora de deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover à própria manutenção ou de tê-la provida por sua família, conforme dispuser a lei.

Assistência Social

A assistência social ainda possui lei específica na qual diz que a assistência social é direito do cidadão e dever do Estado, sendo Política de Seguridade Social não contributiva, e que provê os mínimos sociais, realizada através de um conjunto integrado de ações de iniciativa pública e da sociedade, para garantir o atendimento às necessidades básicas (art. 1º, da Lei nº 8.742/1993).

O direito à moradia, por exemplo, pressupõe-se uma necessidade básica. A Lei ainda acrescenta aos objetivos dispostos na Constituição Federal, os que seguem: vigilância socioassistencial, que visa a analisar territorialmente a capacidade protetiva das famílias e nela a ocorrência de vulnerabilidades, de ameaças, de vitimizações e danos; e defesa de direitos, que visa a garantir o pleno acesso aos direitos no conjunto das provisões socioassistenciais (art. 2º, II e III).

Contudo, apesar de tudo isto acima exposto, num recente conflito fundiário na periferia de Porto Alegre-RS, ocorrido numa Ocupação denominada de Campo Grande, a decisão judicial sobre o assunto afirmou que:

“Não cabe ao Poder Judiciário, neste feito, realizar a função de assistência social”. A própria decisão, em sede de agravo de instrumento, reconhece a demanda por moradia das famílias ali presentes e que é “evidente a situação precária dos ocupantes”.

Mas, mesmo assim, ao final ratifica a decisão de primeiro grau, reafirmando o uso da força policial para a realização da desocupação, sem nenhuma medida que garantisse a assistência aos desamparados e o direito à moradia (art. 6º, da CF).


Por fim, neste caso, o Estado, Judiciário e Executivo (Brigada Militar), contradisseram os entendimentos acima, ou melhor, o restringiram para somente a defesa e proteção de um direito, o de propriedade. Seguindo esta linha, exclui-se da Justiça o papel de guardiã da Constituição como um todo, do ordenamento jurídico, fica longe o Judiciário dos objetivos fundamentais da República, nega-se, assim, um perfil de realizador do bem comum. Para que a Justiça existe, então continua confuso, mas seguindo esta decisão, para quem ela existe, se sabe que não é para os 33 milhões de pessoas sem moradia no Brasil (Relatório do Programa das Nações Unidas para Assentamentos Humanos, de 2014).