segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

Nota de falecimento de Sebastião Bezerra

Divulgamos mais uma notícia urgente. Esta sobre o assassinato do advogado Sebastião Bezerra da Silva, divulgada na página do Movimentos Nacional de Direitos Humanos - MNDH.

Companheiro Sebastião, presente! Agora e sempre!

Segue a nota de pesar na íntegra:

Nota de Pesar - Defensor de DH é assassinado em Tocantins
28-Fev-2011
É com o mais profundo pesar e a mais profunda consternação que o Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH) registra o assassinato, no Estado de Tocantins, do advogado Sebastião Bezerra da Silva, coordenador do Centro de Direitos Humanos de Cristalândia (TO) e secretário do Regional Centro-Oeste do MNDH.
O corpo de Sebastião Bezerra da Silva, 40 anos, foi encontrado na madrugada desta segunda, 28 de fevereiro, na fazenda Caridade, em Dueré, sul do Estado. 
Sebastião Bezerra da Silva foi torturado antes de ser morto e o assassino ou os assassinos tentaram enterrar apressadamente seu corpo. 
Neste momento de dor e de pesar, o Movimento Nacional de Direitos Humanos vem solidarizar-se com a família de Sebastião Bezerra da Silva e com todos os seus companheiros do Regional Centro-Oeste do MNDH.
Desde o momento em que soube do acontecido, o MNDH vem acompanhando pormenorizada e intensivamente as informações a respeito do assassinato. 
Confiamos que as autoridades policiais do Estado de Tocantins realizem um trabalho diligente na apuração dos fatos, e confiamos, igualmente, na transparência das investigações para que este crime contra um defensor dos Direitos Humanos não fique impune.
Brasília-DF, 28 de Fevereiro de 2011.


Coordenação Nacional do MNDH

Denúncia: Famílias sem-teto completam 10 dias morando na calçada, na região metropolitana de Curitiba

Mil policiais, em cem viaturas, contra famílias sem casa (foto: Diário de Piraquara)

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O carnaval se aproxima e a festa inebria a todos. Ou melhor, a quase todos. A situação urbana do país é caótica e o desrespeito para com milhares de pessoas corre solto. Em Piraquara, região metropolitana de Curitiba, o direito à cidade é mera promessa. A propriedade privada dos meios de produção e as sentinelas políticas deste modo de produzir a vida vão "ressuscitar", em 2011, o sucesso do carnaval carioca de 1934, cantado por Noel Rosa (abaixo a notícia de hoje sobre a situação em Piraquara):

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O orvalho vem caindo (Noel Rosa e Kid Pepe)

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O orvalho vem caindo

Vai molhar o meu chapéu

E também vão sumindo

As estrelas lá no céu

Tenho passado tão mal

A minha cama é uma folha de jornal

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Meu cortinado é o vasto céu de anil

E o meu despertador

É o guarda-civil

Que o salário ainda não viu

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A minha terra dá banana e aipim

Meu trabalho é achar

Quem descasque por mim

Vivo triste mesmo assim

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A minha sopa não tem osso nem tem sal

Se um dia passo bem,

Dois e três passo mal

Isto é muito natural

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O meu chapéu vai de mal para pior

E o meu terno pertenceu

A um defunto maior

Dez tostões no Belchior

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Ver a notícia de hoje, 28/02/2011:

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Famílias de Piraquara (PR) completam dez dias na rua

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Despejadas de um abrigo da Prefeitura, cerca de quarenta pessoas, entre adultos e crianças, aguardam solução para a moradia.

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Cerca de 15 famílias de Piraquara, na Região Metropolitana de Curitiba, completam hoje dez dias morando na rua. Na sexta-feira 18 de fevereiro, as famílias foram despejadas do abrigo em que se encontravam desde dezembro, um ginásio pertencente à Prefeitura e anexo a uma escola no bairro Guarituba. Participaram da operação de despejo quatro viaturas da Polícia Militar do Paraná, agentes à paisana do serviço de inteligência da corporação (PM-2) e o Secretário do Meio Ambiente de Piraquara, Gilmar Clavisso (PT).

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Segundo a Prefeitura, que havia cedido provisoriamente o imóvel aos sem-teto, o Município não tem responsabilidade habitacional pelas famílias. A juíza que decretou a reintegração de posse, Diocélia Mesquita Fávaro, acolheu o argumento, considerando, em audiência, que Piraquara não pode atender aos “filhos de outros municípios”.

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Em dezembro, as famílias já haviam sido despejadas de terreno localizado às margens da Rodovia Leopoldo Jacomel, em ação que contou com cerca de 1.000 homens da PM-PR. Na ocasião, o Ministério Público do Paraná, representado pelo Promotor Marcelo Luiz Beck, requereu o despejo em ação judicial, alegando que a ocupação do terreno destruiria o meio-ambiente, prejudicando os mananciais da região. Logo após a remoção das famílias, porém, a Prefeitura anunciou a construção de um areial no terreno, empreendimento destinado à extração de areia para construção civil, muito comum na região.

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O Prefeito Gabriel Jorge Samaha, o Gabão (PPS), chegou a estar presente no ginásio em dezembro, prometendo aos moradores que trabalharia por uma solução junto ao Estado e ao Município. O presidente da Companhia de Habitação do Paraná, Nelson Roberto Justus (DEM), empresa responsável pela habitação social no Estado, declarou que, por mais emergencial que seja a situação das famílias, o cadastro da Cohapar deve ser respeitado.

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Drama habitacional

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O Guarituba é a maior ocupação irregular do sul do Brasil, com cerca de 55 mil habitantes. Desde 2006, o Governo Federal tem implementado, em consórcio com a Prefeitura de Piraquara e a Cohapar, o PAC Guarituba, obra de regularização fundiária que, na primeira etapa, despendeu 98 milhões de reais. As obras previam saneamento básico, ligações de água e luz, asfaltamento e a construção de 800 casas, destinadas à relocação das famílias que moram dentro da faixa de preservação dos rios.

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No entanto, a regularização avança a passos lentos – as casas, com menos de 40 m2 em média, estão em construção há dois anos, as ações de usucapião ainda não ultrapassaram a primeira fase e somente duas ou três ruas foram asfaltadas no Guarituba. No fim de 2010, denúncias de corrupção levaram à criação da CPI dos barracões na Câmara dos Vereadores de Piraquara. Entre os moradores do Guarituba, é forte a suspeita de desvio das verbas do PAC. “Estas ruas foram todas roubadas, é por isso que não foram asfaltadas”, relata um líder comunitário local, que preferiu não se identificar.

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(fonte: blogue do PSOL-Curitiba)

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Para quem quiser acompanhar o histórico da situação em Piraquara, algumas notícias:

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- Famílias permanecem sem abrigo e Relatoria do Direito Humano à Cidade se manifesta (Plataforma Dhesca Brasil);

- Famílias acampadas na rua sofrem ameaças (PSOL-Curitiba);

- Famílias do Guarituba na iminência de novo despejo (O Estado do Paraná);

- Famílias abrigadas em ginásio sofrem despejo forçado (Brasil de Fato);

- Reintegração adiada em Piraquara (O Estado do Paraná);

- Famílias alojadas em ginásio seguem apreensivas (O Estado do Paraná);

- Meio ambiente, pretexto para criminalizar comunidades (Brasil de Fato);

- A terra treme na beira do Iraí (ENEPEA);

- Ânimos quentes no Guarituba (Gazeta do Povo).

domingo, 27 de fevereiro de 2011

Rui Mauro Maríni, a teoria marxista da dependência e a função pedagógica do direito

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Em tempos atuais, muito se ouve falar, e até mesmo se diz, acerca de uma teoria da dependência, desenvolvida na América Latina, justamente nos tempos das trevas ditatoriais por que passou o continente. Tristemente, porém, pouca apropriação há do debate em sua totalidade, o que se verifica pela canonização do texto de Fernando Henrique Cardoso e Enzo Faleto, "Dependência e desenvolvimento na América Latina".

O texto de Cardoso e Faleto tem sua importância, mas como um dos possíveis aportes sobre o problema. Na tradição teórica brasileira, outra visão se concretizaria e traria interpretações originalíssimas a partir de outras bases de análise. De fato, a teoria marxista da dependência não pode se confundir com os teóricos da dependência em geral. E, neste ponto, convém resgatar dos mais importantes nomes da análise marxista sobre a dependência, o do brasileiro Rui Mauro Maríni.
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Maríni é daqueles intelectuais que, desgraçadamente, encontra-se exilado, até hoje, das principais discussões em torno da interpretação do Brasil e da América Latina, apesar de ter retornado a sua terra natal após o processo de "anistia" (vindo a falecer no Brasil em 1997). Sua história vai da graduação em direito (que não concluiu) e da graduação em administração até a atividade docente na UnB, ao mesmo tempo em que, por decorrência da intensa militância estudantil, funda a POLOP - Política Operária. A partir do grupo da POLOP é que se originariam vários importantes nomes da teoria marxista da dependência brasileira, como Teotônio dos Santos e Vânia Bambirra, dentre outros. Além de a POLOP, de crucial importância foi o grupo de estudos sobre "O capital", na Universidade de Brasília. Toda esta militância, na prática e na teoria, renderia a Maríni a prisão e a tortura em 1965, já que a POLOP tentaria efetuar a resistência armada, por meio de uma guerrilha rural, e seria descoberta pelos órgãos de inteligência e segurança nacional da ditadura de 1964. Seu exílio se passaria quase todo no México, onde viria a ser professor da UNAM - Universidade Nacional Autônoma do México, à exceção do período do governo de Salvador Alende em que Maríni viveria no Chile. Diga-se, desde logo, que quase toda a obra de Rui Mauro Maríni está disponível em uma página da UNAM destinada a seus escritos, em espanhol.

Sua produção teórica se articula ao debate do dependentismo de autores da periferia do capitalismo, em especial André Gúnder Franque e Aníbal Quijano, dentre outros, além de os já citados Teotônio e Vânia. E neste contexto é que formula vários conceitos bastante fecundos para a análise da realidade do subdesenvolvimento capitalista. Assim é que surgem as teorizações sobre a dialética da dependência, a superexploração do trabalho, o subimperialismo e a noção de classe operária.

Ao contrário das vertentes veberianas, a teoria da dependência de um Maríni centrava-se no motor histórico da luta de classes e não acreditava em um desenvolvimento possível e com bem-estar a partir dos avanços tecnológicos do capitalismo, pois se fazia necessária uma ruptura cabal com este modo de produção, o que se anunciava pela necessidade da revolução socialista no continente. Em boa medida, esta é a briga que envolve os teóricos da dependência, em que, de um lado, estavam os marxistas como Maríni e Tetônio dos Santos e, de outro, os antimarxistas como FHC e José Serra (ver o texto "As razões do neodesenvolvimentismo", de Maríni, polemizando abertamente com Cardoso e Serra).

Sendo suas grandes contribuições para a teoria da dependência a continuação da interpretação do materialismo histórico para a América Latina, a partir não só de Marx mas de todo o debate aberto após as teses sobre o imperialismo, de Lênin e Rosa Luxemburgo, ou das concepções de desenvolvimento e subdesenvolvimento em Trótsqui, Paul Baran e Paul Sweezy, ademais de as críticas históricas ao desenvolvimentismo da CEPAL e ao etapismo dos partidos comunistas influenciados pela III Internacional; sendo assim, caberia empreender alguma aproximação de seu pensamento com o que nos toca a todos neste blogue: a contribuição da teoria crítica para o direito em sua inter (ou, em alguns momentos, até trans) disciplinaridade.

Sem dúvida, os temas da superexploração do trabalho e do subimperialismo rendem muitas discussões e polêmicas até hoje (onde se conserva a discussão sobre o pensamento de Maríni) e, por isso mesmo, colocam pontos de apoio importantes para se pensar a dependência dos países subdesenvolvidos sob o signo do capital.

Para Maríni, "o fundamento da dependência é a superexploração do trabalho" e esta, em último caso, se dá a partir do aprofundamento de relações sociais que levem o trabalho subordinado das periferias a serem regidos segundo a lei da extração da mais-valia em seu sentido absoluto, ou seja, em conformidade com a contra-mão da história de avanços e conquistas das classes trabalhadoras por maiores salários e menores cargas horárias de trabalho. No centro do capitalismo, a mais-valia relativa poderia, assim, grassar sem problemas. Na dialética da dependância, portanto, a submissão das periferias ao(s) centro(s) se faz pela aliança das burguesias nacionais com as forças imperialistas e, desta forma, o trabalhador resta superexplorado (ver livro "Dialética da dependência").

Mais do que isso, porém, a contribuição de Maríni também se constata no plano da complexificação das relações de poder no âmbito internacional. Daí a forte crítica ao papel do Brasil neste campo, cuja figura resplandesceria com seu subimperialismo. Eis que "nações de composição orgânica intermediária" passam também a se beneficiar da concentração e centralização tendencial do capital, de acordo com a nova divisão internacional do trabalho e com as características básicas das economias nacionais dependentes, a destacar-se a superexploração do capital, ainda que não só (ver o prefácio a "Subdesenvolvimento e revolução").

Pois bem, para além de tais desenvolvimentos teóricos, Maríni também indicou o alargamento do conceito de classe operária a partir das realidades dependentes, a fim de oxigenar esta reflexão e estabelecer novas mediações para a luta de classes (como já discutido aqui no blogue, em: "Os sujeitos históricos da transformação: organização político-jurídica e antropologia"; de Maríni, ver: "O conceito de trabalho produtivo").

Por fim, cabe aduzir estas construções teóricas ao âmbito jurídico-político. Ao tempo das discussões sobre a nova constituição brasileira, Maríni escreveu um texto colocando seu ponto de vista sobre o assunto, embotado que estava, como todos (ou quase todos!) os intelectuais e políticos brasileiros à época, pela necessidade da nova constituição. Como se sabe, uma constituição é sempre política mas nem por isso determina o ser de uma sociedade. Por isso é que Maríni indicava a necessidade dela mas não deixava de fazer suas críticas e propostas: continuava a deblaterar contra o estatismo político (ainda que isto não significasse anti-estatismo econômico), com o intuito de que as organizações populares, do campo e da cidade, ganhassem autonomia para poderem realizar um grande passo: "o que se impõe não é suprimir a regulação estatal, mas submetê-la mais diretamente à influência das massas". Talvez seja justamente neste sentido que se justifique a "função pedagógica do direito" atribuída por Maríni no momento preparatório da assembléia constituinte. Para seu tempo, uma necessidade; e, para o nosso, um uso tático, ainda que isto não possa corroborar uma tese universalista para a existência do direito. Com esta ressalva, terminemos com as palavras de nosso teórico marxista da dependência:

"brotando da vida real, do húmus fecundo da economia e da luta de classes, o direito é algo mais que o reconhecimento dos fatos; ele é também a previsão ou o desejo de que estes evoluam neste ou naquele sentido e contém, por isto mesmo, em semente, a visão do que pode ser o desenvolvimento futuro da sociedade. Neste sentido, o direito tem um caráter educativo, que, mais que qualquer outra lei, a Constituição deve captar e expressar" (do artigo "Possibilidades e limites da assembléia constituinte", não disponível na internet).
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Conferir ainda:
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quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

Negro coração de Alegre Corrêa e Raul Boeira

Hoje, para contemplar nossa linha lúdica, apresento a letra e a música "Negro Coração", de Raul Boeira e Alegre Corrêa.

Boeira e Corrêa na África-Nação.


Negro Coração
Alegre Corrêa/Raul Boeira

Quem dera não fosse tão longe a Bahia
quem dera acordar no balanço do mar
tivesse o meu samba a batida, a magia
a ginga, a malícia do samba de lá

Não fosse o dono da capitania
ruim da cabeca e doente do pé

Soubesse o valor que tem esssa alegria 
não abafaria o couro do bumbo do zé

Soubesse o gosto da folia
mandava importar da bahia 
o tempero do canbomblé

Bate o tambor do continente
negro coração, negro coração
América morena filha
D'África nação, D'Africa nação

domingo, 20 de fevereiro de 2011

A revolução do Jasmim e a praça Libertação: o estado de rebelião revolucionária na Tunísia e no Egito


Plantando democracia na Praça Tahrir, de Carlos Latuf


Em seu famoso "Discurso sobre o colonialismo", da década de 1950, o martinicano Aimé Césaire sentenciou: "a Europa é indefensável". Mas o que queria dizer o famoso anticolonialista? Referia-se justamente aos dois problemas abertos pela conquista européia e conseqüente "globalização" do capitalismo: o que ele chamou de "problema do proletariado" e "problema colonial". Nenhum discurso liberal, nenhum argumento burguês, nada conseguiu suturar este rombo no pavilhão do modo de produção hegemônico. Daí a indefensabilidade européia, uma metonímia geopolítica .

Quando assistimos, de fins de janeiro até agora, às insurgências que pululam no Magreb africano, parece que aquela sentença revigora, ainda que com outras palavras: "o imperialismo é indefensável". Se os Estados Unidos da América Anglo-Saxã tomaram o lugar da Europa, fizeram-no aperfeiçoando suas técnicas de domínio estrangeiro. A hiperexpansão capitalista no Oriente Médio, por exemplo, é uma mostra histórica disso.

Ainda que a complexidade da questão religiosa se coloque de maneira quase avassaladora, esta não passa de mais um dos dados que a realidade complexíssima do mundo árabe alberga. Desde 1917, um grande espectro rondou a indefensável Europa (e por Europa entendamos todo o capitalismo avançado!) e ameaçou a expansão indicada, a tal ponto que se colocou como alternativa mundial. Ocorreu isto especialmente a partir da guerra fria e do quase inevitável movimento das colônias africanas e asiáticas em buscar sua emancipação política, algo que já se havia apresentado na América Latina do século XIX.

As descolonizações, com forte influência soviética, chinesa ou até mesmo cubana, sempre preocuparam o imperialismo do capital, sendo que a derrocada das repúblicas soviéticas nada mais fez do que requentar a frieza da guerra com a instauração do famigerado "choque de civilizações", ideado já na década de 1970, pelos intelectuais orgânicos do estado de coisas, arregimentados em torno da Comissão Trilateral. A década de 1990, porém, trouxe consigo o auge do globalismo capitalista e as antes recônditas regiões do Oriente Médio rapidamente apareceram para o mundo, não só pela fonte de riquezas que representavam, mas também por sua expressividade cultural que não passaria despercebida frente aos grandes meios de comunicação articulados, com o despontar da internet.

Tudo isso não era lá muito nítido até que o 11 de setembro ressignificou discursos e práticas, mobilizando exércitos e teorias de segurança reacionárias. Veio para o centro da ribalta o terrorismo associado ao fundamentalismo, notadamente o islâmico. O choque de civilizações, à Huntington, cerra as mesmas fileiras do já decenal "fim da história", de Fucuiama, e dessa forma se acentua o conflito ocidente-oriente como se isto nada tivesse a ver com o enfrentamento norte-sul ou com o problema dos modos de vida - capitalismo ou barbárie (os demais modos de vida).

Se ao tempo da descolonização africana e asiática, Angola, Filipinas ou Cuba se tornaram comunistas, pouca valia isso tem para os centros difusores de conhecimento e informação, a Europa metonímica. A teoria política continua a se valer dos esquemas eurocêntricos para medir a dinâmica do poder no mundo; e se na Europa metonímica a revolução é impensável, logo o é para todo o mundo. Bom, dois erros. E dois erros que têm a ver com os dois problemas que fez com que Césaire sentenciasse: "a Europa é indefensável". Tanto a revolução é possível de ser pensada no centro do mundo, ainda que os maiores exemplos apareçam em suas franjas irlandesas, bascas e gregas, como este discurso reativo não resolveu o problema da contradição entre o capital e o trabalho entre os operários franceses, alemães ou estadunidenses, por exemplo.

No flanco do colonialismo, renovado hoje na esfera de países já formalmente independentes, ainda que muitos outros ainda estejam sob o jugo da dominação estrangeira (basta pensar na Guiana Francesa ou em Porto Rico), os acontecimentos do norte da África são eloqüentes.

E quanto a isso, é necessário ponderar algo. Todas as tendências das esquerdas têm concordado em relatar e disseminar a contagem dos eventos magrebinos a fim de mostrarem ao mundo que a história não acabou e que as massas têm muito potencial para impor suas formas de ver o mundo. Entretanto, igualmente concordam - e de forma surpreendente até - que o trem da história puxado pelas revoluções tunisiana e egípcia não aponta necessariamente para uma estação popular. Da esquerda chomsquiana às interpretações maoístas, passando pelos projetos socialista e popular na América Latina, todos demonstram preocupação e um certo gosto de perda de oportunidade histórica na boca, uma vez que os protestos e mobilizações populares da África árabe se ressentem de organização popular consolidada, com movimentos cristalizados e partidos revolucionários que possam modificar não só as estruturas políticas mas também as econômicas dos países da região. Ainda assim, o rastilho aceso e chegadiço à Argélia, Barêin, Sudão, Irã, Iêmen, Líbia e Jordânia, para não falar em Iraque e Afeganistão, faz com que tenhamos de ficar atentos para os próximos movimentos do imperialismo e dos subimperialismos (e aqui a Europa-metonímica precisa ceder espaço aos nomes dos bois: EUAAS, Israel, China e Europa ocidental).

Muitos pontos poderiam ser destacados na verdadeira simbologia que as revoluções na Tunísia e no Egito aportam. A revolução do jasmim tunisiana, como a dos cravos portuguesa, permite a nós, brasileiros, usar o título de uma velha canção de protesto: no meio de toda a insurgência falo do jasmim ou do cravo "pra não dizer que não falei das flores". Já a multidão de egípcios em plena Praça Libertação (Tahrir), lembra a discussão latino-americana, em busca da produção de um conhecimento próprio e não colonizado. No entanto, as flores e o povo na rua têm seu preço: muitas vidas ceifadas contra os ditadores e suas estruturas de poder nacional. Zineel Adine Ben Ali, na Tunísia, e Hosni Mubarac, no Egito, deixam seus postos pela força da pressão popular. Os dias 14 de janeiro e 11 de fevereiro, respectivamente, entram para a história das datas, oferecendo razão ao filósofo latino-americano Enrique Dússel que diz ser do povo, ontologicamente, o poder. Apenas o poder institucional pode ser alienado, fetichizado e corrompido; logo, tomado.





Revolução do jasmim, na Tunísia: "Pra não dizer que não falei das flores"


No Egito, os mais de 300 mortos e, na Tunísia, os mais de 100, seguidos dos 7 mártires suicidas (dentre os quais o desempregado com título universitário Mohamed Bouazizi que, após ser humilhado e roubado pela polícia local por exercer comérico ambulante, deu cabo à própria vida a 17 de dezembro marcando o início dos protestos que derrubaram a ditadura), apenas demonstram que a compreensão hipermoderna da política não se restringe a modelos de comportamento absenteístas e apassivados, pois a insurgência envolve a vida e não apenas a razão politológica dos atores envolvidos, sejam individuais sejam coletivos. Daí ganhar relevo a recente opinião de Dússel, assentada no artigo "Estado de rebelião egípcia?". Diz-nos o filósofo:

Carl Schmitt, para criticar el estado de derecho liberal puramente legal y vacío, sin convicción subjetiva sustancial del ciudadano, propuso repensar elestado de excepción, para mostrar que el primero, que se encuentra dentro de un sistema de legitimación como la estructura democrático-legal, estaba fundado en una voluntad (en último término del pueblo, pero en el caso de Schmitt sin expresión institucional consistente) que podía dejar al orden legal sin efecto en casos de extrema necesidad (como la institución de la dictadura en el imperio romano). La voluntad (del gobernante con autoridad y del pueblo) está detrás de las leyes, dándole un fundamento. Lo que Schmitt no imaginó, y Giorgio Agamben lo sugiere sin extenderse como sería conveniente, es que, por su parte, el propio estado de excepción puede ser dejado sin efecto, pero en este caso por el pueblo mismo, como única sede, y última instancia, del poder político. Esto nos recuerda aquel 20 de diciembre de 2001 en el que el pueblo argentino no respetando el toque de queda decretado por el gobierno salió a las calle y de hecho depuso a Fernando de la Rúa. Gritaba el pueblo: ¡Que se vayan todos! Las instituciones habían perdido legitimidad y el pueblo se lo recordaba a los representantes que corruptamente habían pretendido ejercer el poder delegado, pero a su servicio. De ese levantamiento surgió el gobierno de Néstor Kirchner que alcanzó mayor legitimidad. Se trata del mismo caso ahora en Egipto.


Logo se percebe o que para nós depõe a experiência egípcia e tunisiana. A teoria político-jurídica do estado tem em Ximite um lastro, assim como o conceito de direito é teoricamente impulsionado por Quélsen. Não há que negar tais contribuições, a não ser naquilo que falseiam a realidade. Mas naquilo que explicam-na, ainda que pelo lado da aparência, merece nossa atenção. Ocorre que a crítica ao estado liberal não é suficiente. É preciso ir até a vida-nua e mais além - a vida concretamente desnuda, na concepção dusseliana. O povo (ou, para contemplarmos nossa discussão interna ao blogue: a classe-que-vive-do-trabalho), como instância última de poder, pode desativar o estado de exceção das classes dominantes. Sim, poder estatal é poder, mas não precisa ser sempre poder das minorias e elites. Daí o estado de rebelião como conceito concreto para as realidades revolucionárias da periferia:

El estado de rebelión es un acto supremo por el que un pueblo manifiesta legítimamente (contra la legalidad presente y ante toda la futura) que las instituciones (y las leyes) por él instauradas han dejado de tener efecto por alguna causa grave (corrupción extrema, despotismo contra la voluntad del pueblo, violencia en sumo grado, etcétera).

[...]

El pueblo entonces aparece como el actor colectivo, no metafísico sino coyuntural, como un bloque social de los oprimidos (diría Antonio Gramsci) pero ahora con conciencia política, con un como hiper-poder renovado que estaba debajo del silencio sufriente y aparentemente paciente, un poder que de pronto irrumpe desde abajo en la praxis de liberación ante la dominación ya insoportable, que lanza las instituciones fetichizadas al aire como cuando expande la lava el volcán en erupción.

Nesse sentido, as duas últimas décadas teriam oferecido vários exemplos: além do episódio argentino, da revolução do jasmim e da revolução egípcia, também a experiência chiapaneca, ainda que parcialmente, e a bolivariana, no Caracazo e depois nos governos do socialismo do século XXI, em perspectiva geral.

Sem dúvida, não podemos nem devemos romantizar tais eventos históricos. Há uma forte tendência para que eles se acomodem a novas formas de dominação, na associação entre império e elites nacionais. No entanto, seu aparecimento é testemunho histórico que transcende, de longe, a capacidade da mobilização via redes sociais ou meios eletrônicos. Significa a ascensão da autoconsciência coletiva do povo, sua irmanação central com os trabalhadores organizados e em greve, com o condão histórico da acelarada pauperização das maiorias (ver editorial do jornal Brasil de Fato: "As revoluções reaparecem no século 21"). A estratégica de mobilização das massas em praça pública com a atividade dos trabalhadores organizados é a pólvora armazenada no paiol; basta colocá-la nas armas que a revolução vem, ainda que seus desdobramentos dependam dos homens e mulheres concretos em suas organizações locais, nacionais e internacionais. Que os bons ventos espalhem essa pólvora e a depositem nos lugares corretos, assim como os pássaros fecundam outras flores ao se alimentarem em alguns jasmins.


Conferir também:

- artigo “Revoltas se espalham pela região” (Brasil de Fato)
- artigo de Reginaldo Nasser “O fantasma da revolução” (Luís Nassif Online)
- artigo “Lutas de Libertação Nacional” (A Nova Democracia)
- artigo de Slavoj Zizek “Revoltas na Tunísia e Egito” (Polichinello)
- artigo de Ignacio Ramonet "Tunísia, Egito, Marrocos: essas ditaduras amigas" (Vermelho)
- entrevista “Chomsky: a reforma migratória, Egito e Obama” (Carta Maior)

sábado, 19 de fevereiro de 2011

Livro Justiça e Direitos Humanos sobre experiências de assessoria jurídica popular

Extraído na íntegra da página da Terra de Direitos: Organização de Direitos Humanos

A Terra de Direitos disponibiliza o arquivo completo da publicação “Justiça e Direitos Humanos: experiências de assessoria jurídica popular”. A obra contém 11 artigos sobre o tema, que trazem experiências concretas sobre o tema, com prefácio do jurista português Boaventura de Souza Santos. O livro também pode ser lido no próprio site, em sua versão digital.


Publicação Justiça e Direitos Humanos

Mais sobre a obra:

A publicação “Justiça e Direitos Humanos” começou a ser construída em 2008, quando a Terra de Direitos realizou uma oficina sobre Justiciabilidade dos Direitos Humanos, com a participação de diversas organizações que realizam litigância estratégica. Durante esse encontro foi reafirmada a importância de reunir em um livro as diversas experiências vivenciadas pelas assessorias jurídicas das organizações.

Com o apoio da Fundação Ford, o livro foi publicado neste ano, composto por nove artigos que abordam casos concretos sobre Justiça e Direitos Humanos. Além disso, a obra conta com um artigo sobre a atuação das organizações da sociedade civil nesse campo, além de uma reflexão sobre o sentido da assessoria jurídica popular em Direitos Humanos. O prefácio do livro foi escrito pelo jus-sociólogo português Boaventura de Sousa Santos.

Acompanhe os temas e os autores de cada artigo:

ÍNDICE:

PREFÁCIO
Boaventura de Souza Santos

INTRODUÇÃO

Conceito e sentido da assessoria jurídica popular em Direitos Humanos
Leandro Franklin Gorsdorf (Terra de Direitos)

ARTIGOS

1 Direitos Humanos no Brasil: a atuação de organizações da sociedade civil em defesa dos direitos sociais e ambientais – Sergio Leitão e Ana Valéria Araújo

2 “O grande atoleiro de carne”: mulheres, cervejas e Gilberto Freyre – Rebeca Oliveira Duarte (Observatório Negro)

3 Advocacy feminista para o acesso à Justiça – Elena Erling Severo e Rubia Abs Da Cruz (Themis)

4 Litigância estratégica em Direitos Humanos – A atuação da sociedade civil no acesso a medicamentos no Brasil – Renata Reis (ABIA) e Marcela Fogaça Vieira (Conectas)

5 Alimentos transgênicos, Direitos Humanos e o Poder Judiciário – Andrea Lazzarini Salazar e Karina Bozola Grou (Idec)

6 Litigância estratégica para a promoção de políticas públicas: as ações em defesa do direito à educação infantil em São Paulo – Ester Rizzi e Salomão Ximenes (Ação Educativa)

7 Plano Diretor e efetiva participação popular: a “revisão” do plano estratégico de São Paulo – Nelson Saule Jr., Karina Uzzo, Luciana Bedeschi, Vanessa Koetz, Stacy Torres e Isabel Ginters (Instituto Pólis)

8 A construção das hidroelétricas como afronta aos direitos de comunidades rurais – Rafael Filippin (Liga Ambiental)

9 A reafirmação da Raposa Serra do Sol e novos desafios – Joenia Wapichana (CIR)

10 Justiciabilidade dos Direitos Humanos e territorialidade quilombola:  experiências e reflexões sobre a assessoria jurídica popular na litigância – Fernando G. V. Prioste (Terra de Direitos)

11 O Acampamento Elias de Meura e uma experiência de assessoria jurídica popular na defesa dos direitos humanos dos trabalhadores rurais sem terra – Luciana C. F. Pivato (Terra de Direitos)

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

As veias abertas da Amazônia: uma contribuição ao debate

Diz a lenda que o Rio Amazonas foi criado com as lágrimas da lua...

Gostaria hoje de fazer uma pequena homenagem à Amazônia e ao seu povo, com toda sua exuberância, seu calor humano e seu inspirador espírito de luta. Faço isso como registro pessoal, já que é minha última postagem em terras amazônidas, ao menos por um bom tempo...

Creio que a melhor forma de fazê-lo é “colocando o dedo na ferida”, ou melhor, mostrando onde estão as veias abertas da Amazônia, qual é a profundidade do corte, e quem são os “vampiros” que dela se beneficiam. Essas veias abertas, no entanto, não são puramente “econômicas”, mas também ecológicas, culturais, ideológicas.

Para onde correm as veias abertas da Amazônia?

Começo por estas últimas, que se apresentam como as mais difíceis de transpor, especialmente para alguém que não vive na região, e é massacrado todos os dias com os conceitos manipuladores sobre a Amazônia, produzidos pelos centros de produção ideológica do atual sistema-mundo vigente, e reproduzidos ad nauseam pelos monopólios dos meios de comunicação.

Por exemplo, a noção do “arcaico”, do “atrasado”, da “selvageria” que muitas vezes se associa com o povo da região. Há quem romanticamente aceite tal conceito, considerando os traços de subdesenvolvimento que assolam e dizimam a população da região como “provas cabais” de sua inadaptação ao modo de produção capitalista, o que supostamente seria “bom” (por mais estranha que seja, essa opinião é mais comum do que se imagina, especialmente entre parte de uma juventude pequeno-burguesa mais propensa a conceitos “anticapitalistas” de corte pós-moderno). Há outros que se valem destas noções como “provas irrefutáveis” da “incapacidade” do povo da região em determinar seu próprio destino, e, especialmente, em se relacionar com a monumental biodiversidade amazônica.

Se a primeira noção é útil ao sistema-mundo hegemônico, pois legitima o abandono do povo ao “deus-dará”; a segunda é essencial para a legitimação das brutais intervenções sobre a região, explorando sua força de trabalho e saqueando suas riquezas naturais em prol do Deus-Capital. Essa, como aponta Dussel em “1492: o encobrimento do Outro”, é a essência do mito sacrificial da Modernidade, ideologicamente violenta pois procura transformar a razão do Outro (na verdade, o “absolutamente Outro”, o inassimilável e impossível dentro do sistema hegemônico, o que na Amazônia corresponde, especial, mas não exclusivamente, ao índio) em não-razão, de forma a legitimar sua própria razão (irracional, bárbara, violenta) como a única possível e racional.

Das veias ecológicas abertas me parece que todos conhecem; ou melhor: conhecem a ponta do iceberg. Sabemos da ação destrutiva do avanço do agronegócio na Amazônia (os monocultivos de grãos, o avanço da pecuária extensiva etc), que jura não ser a responsável pelo “arco do desmatamento” mas não conta que sua ação é articulada com a dos madeireiros, rotulados como os “únicos e grandes vilões” na questão (e ainda que não sejam os únicos, são também responsáveis pela destruição da floresta). Sabemos disso especialmente porque os movimentos ambientalistas nos contam, e nisso prestam um grande favor à natureza e à sociedade. Favor ainda maior prestariam se nos contassem quem são seus financiadores, e o que efetivamente propõem para a região...

Uma das mais duras constatações a que cheguei estudando a Amazônia nesses 2 anos refere-se ao papel de muitas organizações ambientalistas (quase todas, e especialmente as maiores, chamadas por Diegues de “as multinacionais da conservação”), e do próprio Direito Ambiental no que se refere à Amazônia. Em geral, estas organizações lutam contra o avanço do agronegócio na região (no caso das mais “radicais”), ou por seu controle estrito (no caso das mais “moderadas”), não em virtude das conseqüências para os povos da região, mas sob uma preocupação puramente preservacionista. E o preservacionismo (cuja vertente mais radical e conhecida é a “ecologia profunda”) é uma ideologia ambientalista criada nos EEUU na mesma linha e época da filantropia burguesa (só que aplicada aos animais e às plantas, como as “sociedades protetoras”, “salvem os golfinhos” etc etc), que se tornou um aporte útil ao Impérialismo a partir da crise econômica de 1969-74, e também da 3ªRevolução Tecnológica.

Fui e continuarei sendo muito criticado por esta conclusão, a que cheguei e apresentei em minha dissertação de mestrado, na qual busquei apresentar os limites e as possibilidades jurídicas que alguns espaços territoriais especialmente protegidos oferecem aos povos da Amazônia diante do avanço do agronegócio e da transgenia (não sem antes buscar os fundamentos estruturais e históricos que permeiam essa questão). Considero, porém, que ela foi e é necessária para evitar que abramos ainda mais uma veia ao tentarmos fechar outra. De nada adianta “salvar” a Amazônia do avanço do agronegócio, e entregá-la de mão beijada ao Império criando “áreas protegidas” que nada mais são que "armazéns de biodiversidade", estoques de matéria-prima barata para as indústrias da 3ª Revolução Tecnológica (farmacêuticas, cosméticas, de biotecnologia etc). Não que todas as áreas protegidas tenham esse perfil, mas, mesmo nos casos de áreas juridicamente criadas a partir da luta dos movimentos socioambientalistas, o que se vê na prática é uma atuação do Poder Público que criminaliza, restringe e afinal inviabiliza as formas de vida das populações nessas áreas.

Fica claro então que as veias abertas ideológicas, culturais, ecológicas etc estão ligadas entre si, e, em especial, com as propriamente econômicas. Não porque queiramos que assim seja, ou que nosso método aponte para essa conclusão, mas porque a dinâmica da realidade concreta aponta nesse sentido. A biopirataria é a forma típica de veia econômica aberta pelas indústrias da 3ª Revolução Tecnológica. O agronegócio é outra veia aberta, que alimenta multinacionais do ramo alimentício (de capital brasileiro ou estrangeiro), ao mesmo tempo em que a fome ainda não foi erradicada na região. A madeira é uma veia da qual já sangrou tanto, que a fonte já começa a escassear, sendo ainda explorada por parasitas menores. A geração de energia elétrica é outra veia aberta que alimenta construtoras e empresas de mineração e siderurgia, que se aproveitam hoje da mais profunda veia aberta da Amazônia.

Caminhões, trens, navios: tudo serve para sugar as veias abertas

Não é de agora que as veias abertas da Amazônia jorram imensas riquezas (e já dizia Eduardo Galeano que talvez a grande miséria da América Latina tenha sido justamente toda a sua riqueza). Já era assim desde seu en-cobrimento, com a escravização do índio para a coleta de drogas-do-sertão e o corte de madeira, e foi assim com o famoso período da borracha. Não se trata porém de uma “sina”, de um “destino manifesto”, nem de incapacidade do povo em ser livre. A disposição de luta do povo amazônida está gravada na História com a famosa Cabanagem, e também com revoltas que a historiografia oficial não atribui maior importância. Essa disposição não ficou presa aos antepassados, mas segue hoje nas radicalizadas greves dos operários da construção civil, nas paralisações freqüentes dos servidores públicos, nas freqüentes lutas de barricadas que ocorrem nos bairros em protesto contra a falta de serviços públicos; isso sem contar as lutas dos movimentos indígenas, quilombolas, campesinos etc.

"No seu meio, o amazônida nativo é imbatível"

Digo sem medo de errar: os responsáveis pelo saque da Amazônia e pela miséria de seu povo são, em associação com o Imperialismo e as transnacionais, os “ilustres” membros da classe dominante local (os Maiorana, os Barbalho, os fazendeiros com trabalho escravo, os empreiteiros de prédios de papel etc), uma verdadeira lumpen-burguesia a qual se associam profissionais e técnicos a soldo destes, dentro dos quais se inclui toda uma camarilha de juristas que os cercam, nos tribunais e nos escritórios. A intelectualidade, encastelada na Universidade, é de um silêncio ensurdecedor e conivente, com raras e dignas exceções. Uma delas, o professor Aluizio Lins Leal, economista marxista e historiador amazônida, nos diz em sua Sinopse histórica da Amazônia: “no seu meio, o amazônida nativo é imbatível – e pode libertar-se desde que tenha consigo um projeto político”.

Um dia, as veias abertas serão fechadas. E não há de demorar.

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Ano recomeça com nova linguagem

Parece que o ano finalmente começou. Basta passearmos pela internete e percebermos o retorno de muitas pessoas para o trabalho e para o dia-a-dia da política.

Nosso colunista Jacques Alfonsin escreveu "Sobre uma crítica tão grosseira quanto infundada contra o 'Conselhão' do RS", no blogue RS Urgente, em que destaca seus objetivos na participação no referido conselho e responde a críticas direcionadas aos seus componentes, pelo jornal Zero Hora. Uma contribuição sobre a participação popular e seu histórico nos últimos governos. Uma boa oportunidade para compararmos com o modelo de participação do Conselho Popular, iniciativa carioca que conta com a assessoria jurídico-política de Miguel Baldéz, e seu princípio da presentação.

Importante o resgate feito por Venicio de Lima no blogue "Fezendo Media" sobre a "Comunicação e cultura em Paulo Freire: 30 anos depois", em que destaca o reconhecimento internacional do autor e a sua importância no estudo da comunicação. Podemos aqui retornar a alguns debates já feitos neste sentido, como "A comunicação e o apoio popular", ou então "O círculo de cultura de Paulo Freire".

Os blogues terão poções mágicas para encarar o monopólio dos meios de comunicação?

Excelente o artigo de Antonio Bastos, membro do Movimento e do blogue "Direito para quem?", intitulado "O Iraque é aqui", em que nos previne para uma triste realidade que ainda está por vir com os grandes eventos esportivos no Brasil, além de fazer um importante resgate dos principais fatos históricos que caracterizam este momento de consternação e reflexão sobre a crescente violência do Estado na favelas. Oportunidade para lembrarmos de debates realizados por aqui, como o proposto por mim na postagem "Violência no Rio: Estado e constitucionalismo de fachada", também pelo Adriano Oliveira em "Sobre a tragédia no Rio" e o "Manifesto do Conselho Popular contra ditadura aos pobres" do Conselho Popular do Rio de Janeiro.

Muito legal o blogue "Informativo Mapuche Werken Kvrvf", que significa "Mensageiro do Vento", e tem como objetivo apoiar o processo de reconstrução e autonomia da Nação Mapuche e demais povos originários. Oportunidade para lembrar debates propostos por nossos colunistas, como Roberta Cunha Oliveira em "América Latina dos abismos", Assis Oliveira em "AJP/AJUP com povos indígenas?" e Ricardo Prestes Pazello em "O giro descolonial e o direito: três cortes estruturais da colonialidade do poder".

Por fim, a notícia "MST e Imbituba" enviada pelo colaborador Ezequiel Antonio de Moura, da Brigada Mitico do MST-SC, veiculada no jornal Diário Catarinense sobre um ano das prisões em Imbituba-SC. Relembrando uma série de notícias sobre Imbituba veiculadas neste blogue, que inclusive algumas constituíram-se em furos de reportagem nos jornais locais de Imbituba e Florianópolis.

Por hoje é isto, encerro esta coluna com um sentimento de que a linguagem dos blogues proporciona um outro olhar sobre o mundo e a comunicação.

domingo, 13 de fevereiro de 2011

A questão agrária na América Latina: questionamentos iniciais


"O lavrador de café" (1934), de Cândido Portinári


Há muito, os movimentos sociais populares vêm aumentando sua atenção para a construção de uma teoria que realmente consiga explicar a realidade na qual vivemos, em conformidade com os aspectos estruturais que nos condicionam e com as necessidades subjetivas que nos acometem. Neste sentido, o resgate das mais variadas interpretações do materialismo histórico é algo bastante compreensível e, aliás, não poderia ser diferente.

No entanto, este resgate não pode esquecer-se de seu contexto. O entorno no qual se insere a interpretação marxista na América Latina é fundamental para situarmos bem o nosso problema histórico em seu conjunto complexo de articulações. Apenas e tão somente desta forma é que poderemos avançar rumo a uma teoria que respalde nossa prática, ainda mais se propusermos que se trate de uma práxis atrelada aos movimentos populares.

Tanto o método quanto a crítica da economia política empreendida por Marx e a tradição que o seguiu não podem ser vistos distanciadamente com relação aos problemas históricos que nos afligem, desde o lado de cá do Atlântico.

Dessa forma é que se torna fundamental para nós, latino-americanos, a questão agrária e as implicações deste questionamento dentro do rol de problematizações oferecidas pela crítica marxista. E daí fazer muito sentido, também, a construção de um marxismo latino-americano, não com a intenção de isolá-lo do debate europeu, por exemplo, mas antes com o fito de criar uma mediação geopolítica, concreta e necessária, para a interpretação de nossa realidade.

Assim, se a questão agrária é muito mais que um problema voltado para índices de produtividade ou preços de itens produzidos no campo (o que se costumou chamar de “questão agrícola”), ela implica uma análise qualitativa que não pode descurar de um instrumental teórico potente. A questão agrária se volta para problemas da ordem das relações de produção, o que faz com que tenhamos de nos preocupar com a organização do trabalho efetivado no meio campesino, assim como a inserção deste problema dentro do quadro maior da organização da produção em toda nossa sociedade, a qual tem o signo histórico do capitalismo.

O modo de produção capitalista é regido pela junção de relações de produção com o desdobramento das forças produtivas, as quais se denotam por um critério básico quanto aos agentes nelas envolvidos: a propriedade ou não dos meios de produção. A não propriedade dos meios de produção representa a propriedade apenas da força de trabalho individual, a qual pode ser livremente vendida no mercado de trabalho com as garantias do direito moderno e suas formas jurídicas, em especial as contratuais.

Eis que, desse jeito, chegamos ao encontro do conceito universal-abstrato do modo de produção com a questão agrária, já que esta envolve justamente relações de produção no campo. E é a partir deste encontro que o debate se amplia e se complexifica, já que, na América Latina, a forma histórica da acumulação primitiva do capital se deu de um modo distinto daquele empreendido no capitalismo central.

Na verdade, em torno disso houve - e há ainda - toda uma discussão exegética para se saber qual o papel desempenhado pelo continente conquistado e colonizado ao tempo do expansionismo marítimo europeu. Se, por um lado, a acumulação primitiva do capital se deu de modo a operar uma ruptura com a feudalidade e suas características laborais peculiares, tais quais as relações de servidão, pertença à terra e integração do trabalhador com seus meios de produção; por outro lado, ela só se tornou possível com as riquezas metálicas e mercantis propiciadas pela exploração do chamado novo mundo. A colonização das Américas é o outro lado da moeda do nascedouro do modo de produção capitalista. Outro lado da moeda, outro lado da moenda... de gente.

É o que, então, se coloca como grande problema para interpretação de nossa realidade: diante da impossibilidade de se aceitar o caráter feudal ou semi-feudal de nosso continente (ainda que muitos de nossos bons intérpretes, e não só os maus, tenham lançado mão desta concepção eurocêntrica), como caracterizar o nosso modo de produção a partir da questão agrária que sempre nos acompanhou e continua a nos acompanhar?

A teoria da dependência, seguindo uma série de reflexões críticas e marxistas do continente feitas até então, preferiram designar o nosso modo de produção como sendo capitalista, sim. Mas com a peculiaridade do colonialismo. Um capitalismo colonial, portanto. O que deveria ser o óbvio, em verdade, foi o ponto de chegada de todo um embate que ficaria sendo conhecido como o “estéril debate sobre o caráter feudal da América Latina”.

Decorrência das interpretações “feudalizantes” da formação histórica da América Latina foram, dentre outras, a compreensão de que para ultrapassar a situação do subdesenvolvimento seria necessário conspirar para o avanço das forças produtivas da burguesia nacional, frente ao semi-feudalismo imperante; a visualização de sociedades duais no continente, em que, em uma banda, estariam regiões modernas e, em outra, regiões atrasadas e primitivas que deveriam ser absorvidas pelas modernas; e, ainda, a conjuração do caráter revolucionário do campesinato, em seus setores populares.

O problema do campesinato é central para se compreender a América Latina, em especial sua força revolucionária. E mais: não sendo, as nossas, sociedades duais, trabalhadores do campo e da cidade têm uma relação inextricável. Sem desprezar, logicamente, suas diferenças, é preciso notar que todas as lutas do continente não puderam passar ao largo das guerras camponesas, inseridas ululantemente na conflito de classes que move nossas sociedades periféricas. Se, entre os soviéticos, os termos da discussão de davam em volta de se saber se os camponeses formavam parte de um modo de produção próprio (Chaianov) ou se eram uma transição para o capitalismo a partir dos resquícios do modo de produção feudal (Lênin), entre nós este debate deve se renovar a um ponto tal que possamos estabelecer as relações entre o camponês e a organização do trabalho, especialmente se aqui não grassam as massas campesinas de proprietários de terra e meios de produção em geral. Afinal de contas, cabe o questonamento (como tentativa de esclarecimento a partir do debate empreendido em torno do texto postado há duas semanas, “A ‘classe-que-vive-do-trabalho’: e o que a AJP tem a ver com isso?”, por Diego Augusto Diehl, aqui no blogue): qual o conceito de campesinato que devemos utilizar e o que nos deve fazer concluir que não se tratam de setores das classes populares que integram a “classe-que-vive-do-trabalho”?

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

Luiz Otávio Ribas e a advocacia popular no Rio e Porto Alegre

Dissertação de Luiz Otávio Ribas, professor e assessor universitário, intitulada "Direito insurgente e pluralismo jurídico: assessoria jurídica de movimentos populares em Porto Alegre e no Rio de Janeiro (1960-2000)", do curso de Mestrado em Filosofia e Teoria do Direito na Universidade Federal de Santa Catarina.

Resumo:
Procura-se problematizar a teoria do direito insurgente no contexto do pluralismo jurídico. Analisa-se a experiência de advogados populares na assessoria jurídica de movimentos populares nas décadas de 1960 a 2000 no Brasil. A questão colocada é a relação dessa atividade com o pluralismo jurídico e a produção de uma cultura jurídica popular e insurgente, especialmente quanto ao trabalho de formação de assessores jurídicos e conscientização de direitos. Parte-se do estudo das atividades de dois grupos: o Acesso – Direitos Humanos e Cidadania, de Porto Alegre, e o Instituto Apoio Jurídico Popular, do Rio de Janeiro. A metodologia para a coleta dos dados é por observação participante enfatizando, num grupo, a observação e, em outro, entrevistas em profundidade e história de vida. Na segunda etapa da pesquisa revisaram-se trabalhos acadêmicos, publicações na internet, revistas especializadas, entre outros. Seguiu-se um estudo teórico que contribuiu para fundamentar a prática, principalmente para a memória das reflexões de Jacques Távora Alfonsin, Thomaz Miguel Pressburger e Miguel Lanzellotti Baldéz.

Palavras-chave: Direito insurgente. Pluralismo jurídico. Movimentos populares. Assessoria jurídica popular. Educação popular.

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

Miguel Lanzellotti Baldéz e a presentação

Vale a pena conferir a entrevista de Miguel Baldéz no seu blogue próprio intitulado "A luta pela terra".

Para contribuir com o resgate histórico de vida deste advogado popular deixo a minha contribuição biográfica.

Nascido em 1930, o advogado popular carioca Miguel Lanzellotti Baldéz trabalha principalmente com movimentos de ocupação urbana e rural no estado do Rio de Janeiro. É fruto da militância sindical: na década de 1960, junto ao Comando Geral de Trabalhadores, e na década de 1980, na luta sindical dos professores. Em 1982, trabalhou no Núcleo de Regularização de Loteamentos Clandestinos e Irregulares da Procuradoria Geral do Estado, que depois passou a integrar a procuradoria do município. Auxiliou, ainda, a organização do Núcleo de Terras na Procuradoria do estado, com os assentamentos em Nova Iguaçu, Paracambi, Piraí, entre outros. Na década de 1990 foi idealizador do Curso de Direito Social do Programa de Cidadania e Direitos Humanos da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, com a temática da violência institucional no campo e na cidade. Hoje participa da criação do Conselho Popular do Município do Rio de Janeiro, iniciativa de movimentos sociais e entidades, é assessor jurídico de movimentos de luta pela terra urbanos e rurais, como a Articulação Nacional do Solo Urbano e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. É professor de direito no IBMEC; participa do Núcleo de Apoio Jurídico Popular (Najup).
Muitas das informações acima foram coletadas na página do Grupo "Tortura Nunca Mais”.

No período em que trabalhou no Instituto Apoio Jurídico Popular (AJUP) costumava acompanhar conflitos possessórios por todo o Brasil, permanecendo por semanas em ocupações para assessorar juridicamente os movimentos. Trabalhou com o MST, com quilombolas e, de forma muito restrita, com indígenas. Sobre sua formação teórica, reivindica-se um marxista e atualmente estuda história e direito.

domingo, 6 de fevereiro de 2011

Uma história de Domingos: um naco de história do direito no Brasil

Guerra dos Palmares, de Manuel Victor

É Zambi no açoite, ei, ei, é Zambi

É Zambi tui, tui, tui, tui, é Zambi

É Zambi na noite, ei, ei, é Zambi

É Zambi tui, tui, tui, tui, é Zambi

Chega de sofrer, ei!

Zambi gritou

Sangue a correr

É a mesma cor

É o mesmo adeus

É a mesma dor

É Zambi se armando, ei, ei, é Zambi

É Zambi tui, tui, tui, tui, é Zambi

É Zambi lutando, ei, ei, é Zambi

É Zambi tui, tui, tui, tui, é Zambi

Chega de viver, ê

Na escravidão

É o mesmo céu

O mesmo chão

O mesmo amor

Mesma paixão

Ganga-zumba, ei, ei, ei, vai fugir

Vai lutar, tui, tui, tui, tui, com Zambi

E Zambi, gritou ei, ei, meu irmão

Mesmo céu, tui, tui, tui, tui

Mesmo chão

Vem filho meu

Meu capitão

Ganga-zumba

Liberdade

Liberdade

Liberdade

Vem meu filho

É Zambi morrendo, ei, ei, é Zambi

É Zambi, tui, tui, tui, tui, é Zambi

Ganga Zumba, ei, ei, ei, vem aí

Ganga Zumba, tui, tui, tui, é Zambi

(Zambi, de Vinicius de Moraes e Edu Lobo)


Conhecer o Brasil é conhecer a história de suas resistências aliada ao seu quotidiano. E não há como passar ileso por elas, afinal exalam contradições até o último fio de barba em molho do crítico social. Basta conhecer um filho da tribo xavante, que hoje habita o Mato Grosso (mas que, passando por Goiás e Minas Gerais, já esteve no litoral), um agricultor que planta mandioca e butiá no litoral sul de Santa Catarina, um morador de ocupação anarquista do interior do Rio Grande do Sul, uma mulher da federação das favelas do Rio de Janeiro ou um acampado sem-terra dos planaltos do Paraná. É possível sentir algo similar, ainda que com sensíveis diferenças, com um intelectual que defende os direitos humanos na Paraíba ou um estudante universitário engajado nas lutas locais do Piauí.

A Coluna Prestes de hoje tem a missão de, reflexivamente, trazer à tona um testemunho de sua marcha possível pelo Brasil. De Passo Fundo a Teresina, de Imbituba a Uberaba, do Rio de Janeiro a João Pessoa, tudo mostra com uma crueza incrível o que nos faz Brasil. Um só Brasil, envolto em milhares de Brasis. Aliás, a mesma crueza que nos faz uma América Latina integrada. A luta de classes e a opressão do povo em cada monumento colonial de Buenos Aires, em cada banco de Montevidéo ou em cada supermercado de São Paulo. As marcas do capitalismo fazem jus a seu nome: marcam cada cidade, cada morador, cada história.

Em termos de Brasil, voltando a nosso país-continente, é sempre de tirar o fôlego ouvir falar de Palmares. O reino negro palmarino, lembrado na peça "Arena conta Zumbi", da década de 1960, pela pena de Guarniéri e Boal, pelos acordes de Edu Lobo e pelas caras e bocas de seus primeiros intérpretes, é uma marca muito grande para ser ofuscada por todas as demais que nos trouxe o capitalismo do século XX.

E que fôlego é este que falta ao se ouvir sobre Palmares? É exatamente o que decorre da ambigüidade de sua história quando contada nos dias de hoje: a briga de Ganga-Zumba com Zumbi, o suicídio de Zumbi ou a sua morte em plena resistência e, dentre outros, os direitos de Domingos Jorge Velho.

Lendo o livro "Piauhy: das origens à nova capital", de Cid de Castro Gomes, vem a perplexidade. Apesar das anotações sobre as atrocidades do bandeirante Domingos Jorge Velho, o autor abre um despretensioso e bastante contraditório subitem no capítulo dedicado ao pacificador de Palmares: "Domingos Jorge Velho luta por seus direitos". O bandeirante paulista ganha tanta importância para a história piauiense porque teria sido o seu primeiro colonizador não autóctone, junto a Domingos Mafrense.

Dedicado a matar a índios - o que era de sua especialidade - ficaria para a história sua fama de assassino e destruidor de Palmares, um reino negro com 9 a 50 mil habitantes, conforme a fonte, muito sincretismo, além de mais de 30 mil quilômetros quadrados de extensão entre os atuais estados de Pernambuco e Alagoas. Após a derrota do grande quilombo, entre 1695 e 1697, teria de haver a partilha dos territórios conquistados em favor de Portugal, para quem a região era muito importante de ser pacificada, já que desde 1678 ingressava com negociações, tendo inclusive recebido uma delegação de Palmares com ares de embaixada para conciliações.

Pois bem, Jorge Velho fora contratado para desbaratar Palmares e, juridicamente, seu contrato previa várias benesses caso resultasse exitosa sua expedição. Diz-nos o historiador moderno:

"nos seus últimos anos de vida, travou uma intensa batalha jurídica para fazer valer os termos do contrato assinado com o governo de Pernambuco, que lhe assegurava muitos títulos e patentes, quando terminada a guerra dos Palmares. Por sua forte personalidade, arranjara vários inimigos, incluisve a igreja e o próprio governador Melo Castro, com quem se desentendera. Outros governos se sucederam sem que fossem reconhecidos seus direitos. O velho bandeirante resolve apelar diretamente ao rei de Portugal".

O bandeirante (palavra que vem de bandeira e lembra bando, bandoleiro e bandido) pleiteava 1.060 léguas de terra para ele e para os seus oficiais, mas só viria a conseguir 400 delas, além de fundar uma vila. Trocando em miúdos: para assegurar o Brasil-continente de hoje, muito sangue resistente teve de rolar; e para os integradores nacionais, da mesma estirpe de um Duque de Caxias ou de um Raposo Tavares, sobraram-lhes honrarias de todo tipo, terras, cidades, riquezas e algumas pendências jurídicas, é claro (pois como já resgatamos o comentário da lavra do filósofo Vieira Pinto, o direito colonial, imperial e, por que não?, republicano, sempre serviu, por intermédio de seus bacharéis, para resolver os conflitos intestinos às classes dominantes). E o mais irônico: o futuro democrático lhes reservaria homenagens de todo o gênero, como patronato de forças armadas, nomes de rodovias nacionais e, no caso de Jorge Velho, até nome de escola. E é o óbvio: escola é escola e tem de exaltar os seus heróis; e herói é herói...

Para nossa discussão blogueira, o mais interessante continua sendo explorar a pergunta: o direito pode ser instrumento de emancipação? Mais importante do que responder a questão é aceitá-la ou não. Isto porque aceitar a "instrumentalidade" do direito é aceitar a tecnologização do convívio social: análoga à arma, o direito. Será realmente possível acolher, sem estranheza qualquer, este "universal" deontológico? Ainda que possa restar alguma reticência no fato de se estar colocando este pré-questionamento ("podemos/devemos fazer a questão 'o direito é instrumento?'?"), já que pragmaticamente seus desdobramentos são pouco palpáveis à primeira vista, tomar tal postura nos põe de sobreaviso. A tecnologia jurídica é a cibernética da sociabilidade. E quando assim é, despe-se-a da politicidade. Mas isto nos levaria a outros pagos de questionamentos: os instrumentos civilizacionais são políticos em si ou apenas seu uso o seria?

De todo modo, fica a questão, ilustrada aqui com os termos com que o Marquês de Montebelo contrata Domingos Jorge Velho para sua maior tarefa, heróica e escolar:

"Condições e Capítulos que o Governador João da Cunha Souto Maior concede ao Coronel Domingos Jorge Velho para conquistar, destruir e extinguir totalmente os negros dos Palmares [...]:

5 - Que depois de extinguidos os ditos negros se não poderão servir deles nestas Capitanias e será ele Domingos Jorge obrigado a mandar por nesta praça de Recife todas as presas para dela as mandar vender ao Rio de Janeiro, ou a Buenos Aires; e o Sr. Governador lhe disporá e que conformidades o há de fazer; e só poderão ficar nestas capitanias os negros filhos de Palmares de idade de sete anos até doze; que uns e outros serão vendidos por conta do dito Coronel e de sua gente; porque para eles será a sua valia.

[...]

14 - Que o Sr. Governador e Ouvidor Geral lhes concedem perdão geral dos crimes, que tiverem cometido não tendo parte nem sendo dos da primeira cabeça".

Valia, poder e direito (perdão) se unem aqui de uma maneira assombrosa. E a história das resistências políticas latino-americanas abre mais uma enorme porta para se compreender o direito entre nós, em seu colonialismo e tecnologização.